domingo, 20 de abril de 2003

Gabriel García Márquez, crítico de cinema 2


            No ano de 1954, Gabriel García Márquez começou a trabalhar no El Espectador de Bogotá. Nas suas memórias, Vivir para contarla (Buenos Aires, Sudamericana, 2002), lembra de sua iniciação num jornal que, fundado em 1887 por Gabriel Cano, ainda tinha nele e por determinação própria, um inquisidor implacável da redação. Marcava com tinta vermelha os tropeços de cada artigo e exibia num painel os recortes castigados com seus comentários demolidores. Seu neto, diretor do jornal aos vinte e três anos, leu o primeiro texto de Gabriel García Márquez, escrito para o jornal, fez-lhe algumas revisões e o publicou na página dos editoriais. Em menos de dois anos, Gabriel García Márquez iria,  ele diz, consumir a maior quantidade de papel de sua vida, entre reportagens, assuntos culturais, comentários e crítica de cinema. Nessa época, Ernesto Volkening, um escritor e crítico literário alemão, radicado em Bogotá, transmitia pela Rádio Nacional um comentário sobre os filmes que estreavam cujos ouvintes eram, sobretudo, conhecedores da sétima arte. Orientar, porém, um público sem maiores preparos para filmes de qualidade não era tarefa muito fácil, pois os exibidores mantinham sobre a imprensa a ameaça de negar-lhes, caso as críticas fossem adversas, a publicidade dos filmes  que significava uma boa fonte de entrada para os jornais. El Espectador foi o primeiro jornal da cidade que assumiu a arriscada tarefa, confiando-a a Gabriel Garcia Márquez. Os comentários iniciais, versando sobre uma exibição de filmes franceses, agradaram aos empresários de cinema. Quando, porém, comentários nem sempre laudatórios começaram a tratar do cinema, simplesmente, convencional, houve reações, entre as quais uma carta aberta de um dos exibidores, acusando o jornal de amendrar o público no intuito de prejudicá-lo. No dia seguinte, escrita pelo Diretor do jornal, a resposta dizia: Não se amendra o público nem muito menos se prejudicam os interesses de ninguém ao publicar na imprensa uma crítica cinematográfica séria e responsável que se assemelhe um pouco a de outros países e rompa as velhas e prejudiciais pautas do elogio desmedido ao bom, da mesma maneira que ao mau. E a coluna “Estréias da semana”, escrita por Gabriel García Márquez, continuou e não foram poucas as ressalvas que ele fez sobre os grandes filmes de ação e os dramas sentimentais, produzidos pelos norte-americanos para atrair o grande público. Porque, é evidente, não se deixou enganar pelas receitas que visam especialmente ou unicamente os lucros: os norte-americanos são mestres no cinema sem pretensões que até poderiam ser aceitáveis se Hollywood se conformasse em fazer filmes, na intenção de ganhar dinheiro honestamente sem enganar ninguém e sem pretender assombrar os que continuamos acreditando que o cinema é uma coisa importante. Convicção que norteará  as várias notas em que não poupa críticas e tampouco elogios. Estes, sem ressalvas, apenas para Hig Noon, On the waterfront e Louisiana Story. 



            High Noon (em espanhol A la hora señalada) de Fred Zinnemann, no seu entender, resiste, invulnerável, a ser vista seis vezes. Todos os elementos, ele diz, (a história, a direção, o roteiro, a música, a atuação de Gary Cooper, os efeitos sonoros) concorrem para fazer dele um filme excepcional cuja grandeza está numa simplicidade que é sublinhada pela fotografia de uma expressividade natural, sem efeitos espetaculares, sem rebuscamento, sem nenhum tipo de alarde mas notavelmente sábia no achado dos ângulos e enquadramentos. Parece-lhe que o propósito do diretor foi fazer um filme sem falhas  o que ele conseguiu, pois o filme resultou simples e blindado, como as grandes obras-primas.

            Igualmente, considera uma obra-prima do cinema, Nido de ratas, título espanhol para The Waterfront de Elia Kazan, o diretor norte-americano de origem turca. Exibido no Cine Club de Bogotá, também nele, García Márquez percebe que todos os elementos se unem para lhe dar um estranho grau de perfeição. Ao contrário do que faz habitualmente, ele se estende sobre o argumento – mais do que um drama individual, um drama social – e sobre a psicologia do personagem Terry, o único homem nos cais de Nova Iorque capaz de criar pombas. Constata que nenhum dos colaboradores de Elia Kazan se enganou quanto à intenção do filme: Borestein com sua bela e inesquecível música; Boris Kaufman com uma  fotografia, sábia, fortemente contratada, de uma crua expressividade [que] é equivalente ao drama psicológico de Terry. Mas, com certeza, o que mais o impressionou foi o quê de poético possui o filme: um fio de recôndita e legítima poesia está presente ao longo do drama com seu desenlace real, dolorosamente autêntico. Razão que o leva a prescindir de se deter nos aspectos técnicos do filme, reafirmando ter sido  realizado com uma assombrosa perfeição.

            Assaz longo se comparado aos breves comentários dedicados a outros filmes, o que escreve sobre Louisiana Story de Robert Flaherty, também exibido fora do circuito comercial. Antes de comentar o filme, excepcionalmente, ele traça o itinerário percorrido pelos diretor, desde o seu primeiro trabalho Nanook of the north em 1920-1921, um marco na sua vida ao lhe revelar a vocação e marco na história do cinema. O êxito do filme o irá impor a Hollywood e a ele irão se seguir A Romance of the Golden Age, White Shadows of the South Seas e Tabu. Em 1931, realiza, na Inglaterra o documentário Industrial Britain e Man of Aran que, em 1934, recebe o primeiro prêmio do Festival de Veneza. Na Índia, filma Elephant boy três anos depois e somente, então, irá filmar nos Estados Unidos. Entre 1939 e 1942, realiza The Land que foi proibido pelo Governo americano por considerar sua visão demasiado pessimista. Permanecia quatro anos sem filmar quando a Standard Oil Coompany o encarrega de fazer um filme sobre a exploração do petróleo. Submisso a um de seus princípios, o ambiente dá a história, na desembocadura do Mississipi encontrou o lugar adequado e os personagens para contar através de belíssimas imagens, a história da profanação da natureza pela máquina. No entanto, diz Gabriel García Márquez, o verdadeiro valor de Louisiana Story reside mais nos fatores humanos do que nos técnicos. É o viver primitivo e simples do principal intérprete (tão identificado com seus pântanos,  com suas árvores e os animais), descrito por Flaherty numa linguagem cinematográfica – imagens, seqüências, montagens – que expressa a poesia do mundo e dos seres. E faz dele, além de pai do documentário cinematográfico, um poeta do cinema.

            Como muitas outras, referentes às estréias de 1954 e 1955, essas três notas sobre filmes norte-americanos (publicadas no volume Entre cachacos, Bruguera, 1982, numa compilação de Jacques Gilard), constituem, por elogiosas, uma exceção. E mostram a propriedade com que o  então aprendiz de crítico de cinema,  soube discernir entre o trigo e o joio, essa avalanche de filmes medíocres, inexpressivos e irrelevantes, quando não reles, produzidos por Hollywood que visa, sempre, nada mais do que o lucro.

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