No
ano de 1954, Gabriel García Márquez começou a trabalhar no El Espectador de Bogotá. Nas suas memórias, Vivir para contarla (Buenos
Aires, Sudamericana, 2002), lembra de sua iniciação num jornal que, fundado em
1887 por Gabriel Cano, ainda tinha nele e por determinação própria, um inquisidor implacável da redação.
Marcava com tinta vermelha os tropeços
de cada artigo e exibia num painel os
recortes castigados com seus comentários demolidores. Seu neto, diretor do
jornal aos vinte e três anos, leu o primeiro texto de Gabriel García Márquez,
escrito para o jornal, fez-lhe algumas revisões e o publicou na página dos editoriais.
Em menos de dois anos, Gabriel García Márquez iria, ele diz, consumir a maior quantidade de papel de sua vida, entre reportagens,
assuntos culturais, comentários e crítica de cinema. Nessa época, Ernesto
Volkening, um escritor e crítico literário alemão, radicado em Bogotá,
transmitia pela Rádio Nacional um comentário sobre os filmes que estreavam
cujos ouvintes eram, sobretudo, conhecedores da sétima arte. Orientar, porém,
um público sem maiores preparos para filmes de qualidade não era tarefa muito
fácil, pois os exibidores mantinham sobre a imprensa a ameaça de negar-lhes,
caso as críticas fossem adversas, a publicidade dos filmes que significava uma boa fonte de entrada para
os jornais. El Espectador foi o primeiro jornal da cidade que assumiu a arriscada
tarefa, confiando-a a Gabriel Garcia Márquez. Os comentários iniciais, versando
sobre uma exibição de filmes franceses, agradaram aos empresários de cinema.
Quando, porém, comentários nem sempre laudatórios começaram a tratar do cinema,
simplesmente, convencional, houve reações, entre as quais uma carta aberta de
um dos exibidores, acusando o jornal de amendrar o público no intuito de
prejudicá-lo. No dia seguinte, escrita pelo Diretor do jornal, a resposta
dizia: Não se amendra o público nem muito
menos se prejudicam os interesses de ninguém ao publicar na imprensa uma
crítica cinematográfica séria e responsável que se assemelhe um pouco a de
outros países e rompa as velhas e prejudiciais pautas do elogio desmedido ao
bom, da mesma maneira que ao mau. E a coluna “Estréias da semana”, escrita
por Gabriel García Márquez, continuou e não foram poucas as ressalvas que ele
fez sobre os grandes filmes de ação e
os dramas sentimentais, produzidos pelos norte-americanos para atrair o grande
público. Porque, é evidente, não se deixou enganar pelas receitas que visam
especialmente ou unicamente os lucros: os
norte-americanos são mestres no cinema
sem pretensões que até poderiam ser aceitáveis se Hollywood se conformasse
em fazer filmes, na intenção de ganhar dinheiro honestamente sem enganar ninguém e sem pretender assombrar os que continuamos acreditando que
o cinema é uma coisa importante. Convicção que norteará as várias notas em que não poupa críticas e
tampouco elogios. Estes, sem ressalvas, apenas para Hig Noon, On the waterfront e Louisiana Story.
High Noon (em espanhol A la hora señalada) de Fred Zinnemann,
no seu entender, resiste, invulnerável, a ser vista seis vezes. Todos os
elementos, ele diz, (a história, a direção, o roteiro, a música, a atuação de
Gary Cooper, os efeitos sonoros) concorrem para fazer dele um filme excepcional
cuja grandeza está numa simplicidade que é sublinhada pela fotografia de uma expressividade natural, sem efeitos
espetaculares, sem rebuscamento, sem nenhum tipo de alarde mas notavelmente sábia no achado dos ângulos
e enquadramentos. Parece-lhe que o propósito do diretor foi fazer um filme
sem falhas o que ele conseguiu, pois o
filme resultou simples e blindado, como as grandes obras-primas.
Igualmente,
considera uma obra-prima do cinema, Nido
de ratas, título espanhol para The
Waterfront de Elia Kazan, o diretor
norte-americano de origem turca. Exibido no Cine Club de Bogotá, também nele,
García Márquez percebe que todos os elementos se unem para lhe dar um estranho grau de perfeição. Ao contrário
do que faz habitualmente, ele se estende sobre o argumento – mais do que um
drama individual, um drama social – e sobre a psicologia do personagem Terry, o
único homem nos cais de Nova Iorque capaz de criar pombas. Constata que nenhum
dos colaboradores de Elia Kazan se enganou quanto à intenção do filme:
Borestein com sua bela e inesquecível
música; Boris Kaufman com uma fotografia, sábia, fortemente contratada, de
uma crua expressividade [que] é equivalente
ao drama psicológico de Terry. Mas, com certeza, o que mais o impressionou
foi o quê de poético possui o filme: um
fio de recôndita e legítima poesia está
presente ao longo do drama com seu desenlace real, dolorosamente autêntico. Razão que o leva a prescindir de se deter
nos aspectos técnicos do filme, reafirmando ter sido realizado
com uma assombrosa perfeição.
Assaz
longo se comparado aos breves comentários dedicados a outros filmes, o que
escreve sobre Louisiana Story de
Robert Flaherty, também exibido fora do circuito comercial. Antes de comentar o
filme, excepcionalmente, ele traça o itinerário percorrido pelos diretor, desde
o seu primeiro trabalho Nanook of the
north em 1920-1921, um marco na sua vida ao lhe revelar a vocação e marco na
história do cinema. O êxito do filme o irá impor a Hollywood e a ele irão se
seguir A Romance of the Golden Age, White Shadows of the South Seas e Tabu. Em 1931, realiza, na Inglaterra o
documentário Industrial Britain e Man of Aran que, em 1934, recebe o
primeiro prêmio do Festival de Veneza. Na Índia, filma Elephant boy três anos depois e somente, então, irá filmar nos
Estados Unidos. Entre 1939 e 1942, realiza The
Land que foi proibido pelo Governo americano por considerar sua visão
demasiado pessimista. Permanecia quatro anos sem filmar quando a Standard Oil
Coompany o encarrega de fazer um filme sobre a exploração do petróleo. Submisso
a um de seus princípios, o ambiente dá a
história, na desembocadura do Mississipi encontrou o lugar adequado e os personagens
para contar através de belíssimas
imagens, a história da profanação da
natureza pela máquina. No entanto, diz Gabriel García Márquez, o verdadeiro
valor de Louisiana Story reside mais
nos fatores humanos do que nos técnicos. É o viver primitivo e simples do
principal intérprete (tão identificado
com seus pântanos, com suas árvores e os animais), descrito por Flaherty
numa linguagem cinematográfica – imagens, seqüências, montagens – que expressa
a poesia do mundo e dos seres. E faz dele, além de pai do documentário
cinematográfico, um poeta do cinema.
Como
muitas outras, referentes às estréias de 1954 e 1955, essas três notas sobre filmes
norte-americanos (publicadas no volume Entre
cachacos, Bruguera, 1982, numa compilação de Jacques Gilard), constituem,
por elogiosas, uma exceção. E mostram a propriedade com que o então aprendiz de crítico de cinema, soube discernir entre o trigo e o joio, essa
avalanche de filmes medíocres, inexpressivos e irrelevantes, quando não reles,
produzidos por Hollywood que visa, sempre, nada mais do que o lucro.

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