domingo, 27 de abril de 2003

García Márquez, crítico de cinema 3

            Foi um prêmio outorgado seriamente, mas parece ter sido uma piada, observa Gabriel García Márquez sobre o Oscar pelos melhores desenhos de vestidos, conferido a Sabrina. Sendo diretor, Samuel Wilder, na sua opinião, um dos melhores diretores de Hollywood, se faz difícil entender essa comédia insubstancial, tonta e vulgar, parada e imperdoável da qual o único a ser apreciado é a avassaladora graça de Andrey Hepburn e a desconcertante capacidade de Humphrey Bogart para dar conta de qualquer papel que lhe seja posto entre as mãos. Porque a história do filme se desenrola com um aborrecido encadear de lugares comuns, de diálogos baratos e de situações fáceis. Também A condessa descalça, realizado por Joseph Mankiewicz, diretor, do qual diz ter sabido manter uma decorosa linha de conduta, realizando filmes de qualidade, apesar das exigências comerciais lhe merece sérias restrições. Com argumento e roteiro próprios, ele realiza, nesse filme, uma radiografia de Hollywood, centrada na psicologia dos magnatas do cinema e Gabriel García Márquez até concede, se constituir o aspecto formal do filme, realmente admirável: assim essa pura escrita dos primeiros planos, os movimentos da câmara, o prodígio da cor num aproveitamento estético, a direção dos atores, entre os quais Ava Gardner, convence com sua compreensão, sua beleza e ainda com esse ligeiro toque de vulgaridade – comum a todas as suas atuações – que lhe convém nessa personagem. Mas, ao se deixar cair na tentação de querer fazer literatura no cinema, faltou talento ao diretor que só conseguiu, então, realizar uma obra insuportável.
            Tentando, igualmente, revelar como funciona a máquina publicitária, que faz nascer os mitos do cinema, George Cukor oferece a visão de um pessoal de Hollywood bem comportado e satisfeito com seu trabalho e os tipos humanos que retrata servem para uma análise psicológica assaz correta. A star is born pretende ser, principalmente, um alerta ao atores que não se submetem à férrea disciplina dos chefes da publicidade. O resultado, no entanto, foi um drama lento e aborrecido, sem nenhum colorido para tirar do brilhante tecnicolor e muitas canções longas e sentimentalismo e outras ervas aromáticas.

Outro filme que sob o ponto de vista técnico lhe chama a atenção é The Racers, do diretor Henry Hathaway que, habilmente, intercala cenas documentais de corridas de carro (o argumento pretende mostrar as emoções e sobressaltos de pilotos europeus) com cenas de estúdio. Mas o enfadonho principia, observa Gabriel García Márquez, quando o diretor afasta a sua atenção do esporte para se fixá-la na análise psicológica e Kirk Douglas começa a se converter em Kirk Douglas. O filme perde o ritmo e ao espectador cabe apenas esperar que termine a análise e comecem outra vez as carreiras.

            Se nesse caso o trabalho do ator ajudou a prejudicar o filme, em Carmen Jones e em The Country Girl a presença feminina, respectivamente, o valoriza e o salva do fracasso total. Otto Preminger de quem Gabriel García Márquez menciona The moon is Blue como inesquecível comédia, produz, em 1954, uma adaptação de Carmen, de Bizet. Aproveitando todos os seus conhecimentos de cinema, realizou uma extraordinária experiência e com uma eficácia admirável. Mas, ao ceder a uma inoportuna mostra de respeito pela ópera um diálogo cantado no instante mais patético da história, empobreceu o filme que, de verdadeiramente notável, possui a presença de Doroty Dandrige, um asfixiante e esgotante fenômeno de Sex-appeal [...], uma excelente atriz, uma excelente cantora e uma das poucas verdadeiras mulheres de carne e osso que pode oferecer o cinema norte americano.

            The country girl, - em espanhol recebeu um título folhetinesco, A que voltou por seu amor, -  que Gabriel García Márquez julgou bastante apropriado para a maneira como o diretor, também roteirista, tratou um drama psicológico que poderia ter sido notável. Porém, nada acontece e o momento mais dramático do filme é tão débil como todo o resto, salvando-se apenas a interpretação de Grace Kelly de  admirável força dramática, confirmando dotes de uma atriz que, todavia, ainda não encontrou seu diretor. No caso, George Seaton que voluntária ou involuntariamente não foi mencionado por Gabriel García Márquez e que no Dictionnaire du cinema de Jean Tulard (Robert Laffont, 1991) aparece como sendo um péssimo diretor.

            Sobre um dos faroestes típicos da época, Gabriel García Márquez faz uma apreciação que é uma verdadeira síntese da maior parte dos filmes do gênero. Não menciona o título nem o diretor, por esquecimento ou por considerar que todos se equivalem. Sim, os dois atores conhecidos: Sterling Hayden e Joan Crawford, a grande atriz de outros tempos, ainda não tão remotos como para que tenha tido que descer a esses extremos. O resumo que faz do filme – deve se tratar de Johnny Guitar – se inicia com naturalmente, como, levando a exemplificar a sua afirmação primeira: é um apanhado de todos os velhos e gastos lugares comuns dos piores filmes de vaqueiros. Assim, há uma quadrilha que assalta diligências e um bar com aguardente e roleta, cenário de todas as brigas entre bons e maus, já definidos desde o primeiro momento. Há uma lâmpada e um paiol, o disparo que vai quebrar a lâmpada e incendiar o paiol e muitos tiros e socos. E conclui, trocista: é um bom espetáculo cômico, feito com a melhor seriedade do mundo.

            Estes comentários sobre cinema, escritos nos primeiros meses de 1955, para El Espectador de Bogotá, foram compilados por Jacques Gilard e fazem parte do volume Entre cachacos, publicados pela Bruguera em 1982. Sua leitura, pelos cinéfilos de hoje, pode ser, quase sempre, instigante e curiosa e divertida. Quando não, melancólica diante desse testemunho que entre os parâmetros do Oscar e os filmes que repetem, indefinidamente, as conhecidas receitas para os consabidos, fáceis e medíocres sucessos deixa ver que, imunes ao meio século que passou, as produções norte-americanas permanecem imutáveis. E, embora tolas e embora eticamente e artisticamente, com freqüência, desonestas, continuam, ainda, donas de um público que lhes é fiel e sempre cativo.

domingo, 20 de abril de 2003

Gabriel García Márquez, crítico de cinema 2


            No ano de 1954, Gabriel García Márquez começou a trabalhar no El Espectador de Bogotá. Nas suas memórias, Vivir para contarla (Buenos Aires, Sudamericana, 2002), lembra de sua iniciação num jornal que, fundado em 1887 por Gabriel Cano, ainda tinha nele e por determinação própria, um inquisidor implacável da redação. Marcava com tinta vermelha os tropeços de cada artigo e exibia num painel os recortes castigados com seus comentários demolidores. Seu neto, diretor do jornal aos vinte e três anos, leu o primeiro texto de Gabriel García Márquez, escrito para o jornal, fez-lhe algumas revisões e o publicou na página dos editoriais. Em menos de dois anos, Gabriel García Márquez iria,  ele diz, consumir a maior quantidade de papel de sua vida, entre reportagens, assuntos culturais, comentários e crítica de cinema. Nessa época, Ernesto Volkening, um escritor e crítico literário alemão, radicado em Bogotá, transmitia pela Rádio Nacional um comentário sobre os filmes que estreavam cujos ouvintes eram, sobretudo, conhecedores da sétima arte. Orientar, porém, um público sem maiores preparos para filmes de qualidade não era tarefa muito fácil, pois os exibidores mantinham sobre a imprensa a ameaça de negar-lhes, caso as críticas fossem adversas, a publicidade dos filmes  que significava uma boa fonte de entrada para os jornais. El Espectador foi o primeiro jornal da cidade que assumiu a arriscada tarefa, confiando-a a Gabriel Garcia Márquez. Os comentários iniciais, versando sobre uma exibição de filmes franceses, agradaram aos empresários de cinema. Quando, porém, comentários nem sempre laudatórios começaram a tratar do cinema, simplesmente, convencional, houve reações, entre as quais uma carta aberta de um dos exibidores, acusando o jornal de amendrar o público no intuito de prejudicá-lo. No dia seguinte, escrita pelo Diretor do jornal, a resposta dizia: Não se amendra o público nem muito menos se prejudicam os interesses de ninguém ao publicar na imprensa uma crítica cinematográfica séria e responsável que se assemelhe um pouco a de outros países e rompa as velhas e prejudiciais pautas do elogio desmedido ao bom, da mesma maneira que ao mau. E a coluna “Estréias da semana”, escrita por Gabriel García Márquez, continuou e não foram poucas as ressalvas que ele fez sobre os grandes filmes de ação e os dramas sentimentais, produzidos pelos norte-americanos para atrair o grande público. Porque, é evidente, não se deixou enganar pelas receitas que visam especialmente ou unicamente os lucros: os norte-americanos são mestres no cinema sem pretensões que até poderiam ser aceitáveis se Hollywood se conformasse em fazer filmes, na intenção de ganhar dinheiro honestamente sem enganar ninguém e sem pretender assombrar os que continuamos acreditando que o cinema é uma coisa importante. Convicção que norteará  as várias notas em que não poupa críticas e tampouco elogios. Estes, sem ressalvas, apenas para Hig Noon, On the waterfront e Louisiana Story. 



            High Noon (em espanhol A la hora señalada) de Fred Zinnemann, no seu entender, resiste, invulnerável, a ser vista seis vezes. Todos os elementos, ele diz, (a história, a direção, o roteiro, a música, a atuação de Gary Cooper, os efeitos sonoros) concorrem para fazer dele um filme excepcional cuja grandeza está numa simplicidade que é sublinhada pela fotografia de uma expressividade natural, sem efeitos espetaculares, sem rebuscamento, sem nenhum tipo de alarde mas notavelmente sábia no achado dos ângulos e enquadramentos. Parece-lhe que o propósito do diretor foi fazer um filme sem falhas  o que ele conseguiu, pois o filme resultou simples e blindado, como as grandes obras-primas.

            Igualmente, considera uma obra-prima do cinema, Nido de ratas, título espanhol para The Waterfront de Elia Kazan, o diretor norte-americano de origem turca. Exibido no Cine Club de Bogotá, também nele, García Márquez percebe que todos os elementos se unem para lhe dar um estranho grau de perfeição. Ao contrário do que faz habitualmente, ele se estende sobre o argumento – mais do que um drama individual, um drama social – e sobre a psicologia do personagem Terry, o único homem nos cais de Nova Iorque capaz de criar pombas. Constata que nenhum dos colaboradores de Elia Kazan se enganou quanto à intenção do filme: Borestein com sua bela e inesquecível música; Boris Kaufman com uma  fotografia, sábia, fortemente contratada, de uma crua expressividade [que] é equivalente ao drama psicológico de Terry. Mas, com certeza, o que mais o impressionou foi o quê de poético possui o filme: um fio de recôndita e legítima poesia está presente ao longo do drama com seu desenlace real, dolorosamente autêntico. Razão que o leva a prescindir de se deter nos aspectos técnicos do filme, reafirmando ter sido  realizado com uma assombrosa perfeição.

            Assaz longo se comparado aos breves comentários dedicados a outros filmes, o que escreve sobre Louisiana Story de Robert Flaherty, também exibido fora do circuito comercial. Antes de comentar o filme, excepcionalmente, ele traça o itinerário percorrido pelos diretor, desde o seu primeiro trabalho Nanook of the north em 1920-1921, um marco na sua vida ao lhe revelar a vocação e marco na história do cinema. O êxito do filme o irá impor a Hollywood e a ele irão se seguir A Romance of the Golden Age, White Shadows of the South Seas e Tabu. Em 1931, realiza, na Inglaterra o documentário Industrial Britain e Man of Aran que, em 1934, recebe o primeiro prêmio do Festival de Veneza. Na Índia, filma Elephant boy três anos depois e somente, então, irá filmar nos Estados Unidos. Entre 1939 e 1942, realiza The Land que foi proibido pelo Governo americano por considerar sua visão demasiado pessimista. Permanecia quatro anos sem filmar quando a Standard Oil Coompany o encarrega de fazer um filme sobre a exploração do petróleo. Submisso a um de seus princípios, o ambiente dá a história, na desembocadura do Mississipi encontrou o lugar adequado e os personagens para contar através de belíssimas imagens, a história da profanação da natureza pela máquina. No entanto, diz Gabriel García Márquez, o verdadeiro valor de Louisiana Story reside mais nos fatores humanos do que nos técnicos. É o viver primitivo e simples do principal intérprete (tão identificado com seus pântanos,  com suas árvores e os animais), descrito por Flaherty numa linguagem cinematográfica – imagens, seqüências, montagens – que expressa a poesia do mundo e dos seres. E faz dele, além de pai do documentário cinematográfico, um poeta do cinema.

            Como muitas outras, referentes às estréias de 1954 e 1955, essas três notas sobre filmes norte-americanos (publicadas no volume Entre cachacos, Bruguera, 1982, numa compilação de Jacques Gilard), constituem, por elogiosas, uma exceção. E mostram a propriedade com que o  então aprendiz de crítico de cinema,  soube discernir entre o trigo e o joio, essa avalanche de filmes medíocres, inexpressivos e irrelevantes, quando não reles, produzidos por Hollywood que visa, sempre, nada mais do que o lucro.

domingo, 13 de abril de 2003

García Márquez, crítico de cinema 1


            Em Vivir para contarla (Buenos Aires, Sudamericana, 2002), Gabriel García Márquez, no que se refere a sua produção literária, salvo breves textos sobre o primeiro romance La hojarasca que publicou, se atém, principalmente, aos  artigos de jornal. Desde o primeiro, que apareceu no dia 21 de maio de 1948, no jornal El Universal de Cartagena, poucos meses depois de sua estréia na ficção com o conto “La tercera resignación”, até o último, publicado nas vésperas de sua viagem a Europa em setembro de 1955. Tanto esses textos, como os demais escritos nesse período em que permaneceu na Europa, foram compilados por Jacques Gilar e publicados pela Bruguera de Barcelona, nos primeiros anos da década de oitenta, constituindo os volumes Textos costeños, Entre cachacos e De Europa y América


            Em 1954, Gabriel García Márquez abandona a costa do Caribe onde nascera e passara seus primeiros anos, para viver em Bogotá. Mal acabara de chegar e fora à redação de El espectador para encontrar um amigo, o diretor do jornal o mandou chamar e logo depois dos efusivos abraços de uso na cidade, lhe pediu uma pequena nota para fechar o jornal. Ao perguntar onde poderia sentar, lhe assinalou uma sala vazia com uma velha máquina de escrever. Ali trabalharia Gabriel García Márquez nos dezoito meses seguintes, escrevendo sobre informação geral, notas de opinião e tudo o que fosse necessário nos apuros de última hora.

 Era El espectador um modesto vespertino de dezesseis páginas cuja tiragem chegava a uns cinco mil exemplares. Eduardo Zalamea Borda que assinava, com o pseudônimo de Ulisses, a rubrica “A cidade e o mundo”, havia declarado, através da BBC de Londres, que era o melhor jornal do mundo. Opinião, observa García Márquez, que não era tão grave quanto o fato de nela acreditarem quase todos os que o elaboravam e muitos daqueles que o liam. Na verdade, se constituía uma verdadeira escola de jornalismo numa época em que o jornalismo era aprendido nas redações.

Contratado e com um salário que lhe pareceu imenso, em menos de dois anos, Gabriel García Márquez, como o lembra nas suas memórias, escreveria umas seiscentas notas editoriais, uma notícia assinada ou sem assinatura a cada três dias e pelo menos oitenta reportagens entre assinadas ou anônimas. Além de setenta e cinco críticas sobre cinema, que apareciam sob a rubrica “Estréias da semana”, algumas das quais fazem parte do volume Entre cachacos. Os comentários, na sua maior parte (o que é evidente, pois sempre resultam ser em maioria), tratam de filmes norte-americanos, ainda que haja aqueles dedicados a dois filmes franceses, a um sueco, a um alemão, a um inglês e ao Robinson Crusoe, de Luiz Buñuel. Em maior número, aqueles em que escreve sobre os filmes italianos.

            Embora critique a insuportável presença de filmes italianos de má qualidade, quatro de suas notas elogiam Processo allá cita, La provinciale, Última clase e Cronaca de un amore. De seus respectivos diretores diz: Luigi Zampa é o formidável criador do inconfundível ambiente de humor e humanidade; Mario Soldati, um profundamente conhecedor do que tem entre as mãos; Luciano Emmer, um prodigioso, um excelente diretor; e Michelangelo Antonioni, autor de magnífico filme.  Das atrizes, Anna Magnani e Lucia Bosé são as melhores atrizes do cinema italiano; Silvana Pampanini, vistosa e atração de bilheteria. Por Gina Lolobrígida, não se imutou como o demonstra esse julgamento assaz irônico: fez sua carreira sobre os inquietantes pegadas de seus atrativos físicos e de quem diretores tão diferentes e notáveis como René Clair e Alejandro Blassetti não conseguiram tirar partido senão do expressamente ornamental. Amadeo Nazzari, o galã de uma infinidade de filmes, é apenas mencionado, mas a atuação admirável de Gabriel Farzetti em La provinciale o entusiasma. Quanto aos aspectos técnicos dos filmes, neles apenas se detém: sobre Cronaca de un amore diz que a fotografia, a direção dos atores, a discreta história, se juntaram para fazer um filme notável e que o longo e belo monólogo do saxofone foi magistralmente executado. Filme correto, intocável sob o ponto de vista técnico é sua opinião sobre La provinciale.Última classe faz parte dessas pequenas e deliciosas sábias obras primas do cinema moderno assinadas por Luciano Emmer. Mas é o tema, mais do que o assunto ou os recursos do cinema o que lhe agrada em Processo allá cita,  supostamente, um filme policial que ele diz ir além de um enredo para ser uma análise da justiça através de um episódio mais ou menos fictício no qual resultam cúmplices de uma sucessão de crimes, elementos de todas as classes sociais de Nápoles.

            Na verdade, estas notas breves e superficiais, frutos do que ele mesmo reconhece ter sido uma audácia, oferecem – e estes  foram os motivos – uma orientação simples e sem alardes que seu confessado amor pelo cinema conduz para, nessas incursões críticas, ajudar um público sem formação acadêmica a descobrir nos filmes, as belezas e os mistérios que ele, com emoção, quer compartilhar.

             

domingo, 6 de abril de 2003

A oração de Guilhermino

                                                                 Com teu poder
Vem,
Devolve o mínimo
à necessidade aflita
Devolve o dormir de pedra, a noite longa,
às multidões empilhadas no asfalto.
Restaura no lixo urbano o talvez
da última orquídea.
Devolve a fonte gratuita às torneiras de ouro,
E o mover envergonhado repõe
No fundo escuro da marmita.
Vem,
Ressuscita a mulher grávida sob o napalm
restaura a flor-do-campo no peitoril da janela
aberta aos ventos da esperança.
Restaura o olfato dos que há muito
não comem,
e tudo quanto deva ser do homem resgata;
a teima, a dor, o sexo,a fúria, a bondade
sem norte.

Restaura com o teu poder oculto
(não te vejo o semblante)
As horas todas de sofrer a vida

                           Guilhermino César

Dirige-se, como o indica o título do poema, a alguém que possui um poder. Não aleatoriamente qualquer um, mas aquele bem específico e singular que o pronome possessivo determina: teu poder. Certamente desmesurado, haja visto a ousadia dessa voz que não mede impossíveis no ato de pedir. E que o faz com a convicção da clarividência, de estar certo de querer o justo, simplesmente, o devido. Uma voz que se eleva para expressar aquilo que falta aos despossuídos, na verdade, nada além do imprescindível: o sono, o alimento, a água. Porém, que se permite aspirar muito além de quaisquer barreiras a delimitar o espaço dos homens, na absoluta certeza de um desejo que é deveras factível: a ressurreição da mulher grávida, a comida no fundo da marmita.

            Autor de sérios trabalhos acadêmicos (História da Literatura do Rio Grande do Sul 1956, História do Rio Grande do Sul, período colonial 1970, Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul, 1969), de pertinentes textos críticos (publicados, sobretudo, no Correio do Povo de Porto Alegre), Guilhermino César é, também, um inquestionável poeta (Lira Coimbrã  e Portulanos de Lisboa 1965, Arte de Matar 1969, Sistema do Imperfeito & outros poemas 1977, Cantos do amor chorado 1990). Neste poema “Com o teu Poder”, publicado em 1982, sugestivamente, no dia 23 de dezembro (no “Letras & Livros” do Correio do Povo de Porto Alegre), ele dá, mais uma vez, a prova de ser um magistral fazedor de versos.

            Inicia o poema e a segunda estrofe com um imperativo Vem, dirigido a um interlocutor que está distante e, talvez, não o devesse estar e a quem ele se a arvora o direito de interpelar e de tratar por tu. E de continuar a dar ordens, insistindo nos mesmos verbos  devolve, restaura, resgata, não simplesmente como uma figura de retórica, nota musical que se repete, mas a reiterar, sem pejo, seus pedidos até se permitir (já anunciando que aquele com quem fala possui verdadeiramente um inegável poder) o imperativo ressuscita.  E se trata, sempre, de uma restituição de bens e os enumera. Os que faltam: o sono, o alimento, a água. Também, se trata de obter a beleza rara e a singela (a última orquídea, a flor-do-campo no peitoril da janela), pois a beleza habita a terra dos homens junto com os fados em que eles se submergem: a teima, a dor, o sexo, a bondade, condenados pela selva da urbe – multidões empilhadas no asfalto - e pelos ignaros desígnios que dão a morte (no caso pelo napalm) sem serem capazes de originar a vida. Na enumeração de tantas ausências, a vida, no entanto, se impõe, se reafirma no anseio de preservar a flor, na confiança de que a janela aberta, e a luz e o ar  falam da esperança passível de chegar. Sobretudo, nas seqüências – objetos diretos dos verbos que regem o poema – a expressar esse querer de transformação.

  A última estrofe, três breves versos, retoma o título do poema “Com teu Poder” agora designando um poder que se esconde. E constata (ou lamenta) não ver o semblante de seu interlocutor, um rosto que é, quiçá, negado aos homens. É quando o poeta deixa transparecer, desvendando, a entidade divina a quem increpa, pois somente ela é capaz de realizar a sua lúcida quimera.