No
seu livro A Literatura no Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Mercado
Aberto, 1982), Regina Zilberman se refere à nova composição social do Brasil da
década de trinta, caracterizada pelo crescimento industrial e urbano a
fortalecer a classe média e o operariado, dando ensejo ao aparecimento de uma
ficção voltada para novos espaços e novas situações não mais marcada pelo
regionalismo, mas em acorde com a prosa nacional. Entre os gaúchos que irão
escrever, a partir de então, o romance urbano, irá sobressair Érico Veríssimo.
Em 1942, publicou O resto é silêncio, cuja ação, como a de outros
de seus romances que o precederam, se passa em Porto Alegre. Tem como gênese um
fait divers que presenciou, num entardecer de outono de 1941: a morte de
uma jovem que se precipitou de um edifício central da cidade. A partir dele,
irá criar as sete histórias dos sete personagens que viram a caída do corpo o que
lhe permite, como ele mesmo diz no prefácio, um corte transversal na sociedade que busca representar nas suas
diferentes classes: os profissionais liberais, os intelectuais (ou pseudo-s
intelectuais), o proprietário rural decadente, o empresário bem (ou mal)
sucedido, os pobres que vivem de seu trabalho, os marginais. Histórias cujo
cenário é Porto Alegre que menciona em vagas referências breves: o maestro que
irá reger o seu último conserto em Porto Alegre; o homem de negócios que diante
da falência eminente pretende fugir da cidade; o que repetirá com orgulho que as três palmeiras reais que se erguiam de seu jardim, eram o primeiro sinal de Porto
Alegre que o viajante avistava no horizonte, quer chegasse por água, quer chegasse por terra. Mas é, sobretudo, na
menção ao rio que a banha, a seus bairros, praças, ruas e a seus edifícios
referenciais, a entidades que lhe são muito próprias é que a geografia da
cidade se estabelece.
Mais
de uma vez se refere ao rio ou dizendo-lhe o nome ou a esboçar um breve
cenário: Na superfície plácida do rio
piscavam os faroletes vermelhos das bóias. Ao longo da curva da Praia de Belas
estendia-se um colar de lâmpadas amarelas. As luzes de Pedras Brancas, do outro
lado do Guaíba, tinham um azulado brilho de prata.
São
vários os bairros citados – Floresta, Glória, Menino Deus, Moinhos de Vento,
Navegantes, Partenon, São João – e em relação com algum personagem que nessa
relação, viver num ou noutro bairro, já se define: a moreninha da Glória, o velhote que tem ourivesaria em São João, o Sete que morava entre Navegantes
e São João, os meninos que se reuniam debaixo de um trapiche nos Navegantes, um
olhar para os telhados da Floresta, um personagem que nasceu no Menino Deus,
outro que lá tem a casa ou que aqueles que moram em Petrópolis. Por vezes, irão
se constituir um elemento da paisagem: os
morros verdes do Partenon, todos pintalgados de telhados vermelhos, paredes e
muros brancos, riscados de ruas e estradas de ocre; telhados da Floresta, dum
vermelho queimado e opaco; telhados
vermelhos das vivendas, dos chalés, os morros da Glória e do Partenon. Igualmente, parte da paisagem, a praça Parobé
onde vendedores ambulantes faziam
discursos, mesclando literatura profética com pomadas milagrosas, alternando
atos de prestidigitação com alocuções
espíritas. A praça da Harmonia aparece numa fugaz lembrança do passado e a
praça D.Sebastião, itinerário de personagens tanto como as ruas da Ladeira, da
Praia, dos Andradas, Voluntários da Pátria, Avenida Farrapos. A rua Duque de
Caxias e a rua Botafogo (menos recomendável) onde alguns fixam residência e a
rua Dr. Vale em que a casa de proprietários ausentes se presta para o roubo.
Generalizando, pelos olhos de um personagem, as ruas da cidade baixa, a parte
mais antiga da cidade que haviam resistido à modernização: Não tinham o orgulho das ruas centrais, todas cheias de anúncios
luminosos, vitrinas cintilantes e criaturas vaidosas. Do centro da cidade,
são as igrejas: a do Rosário (onde um personagem vai reverenciar o Senhor
Morto) e das Dores (em que um personagem pretende entrar, mas desiste para não
levar para dentro os pensamentos sórdidos que o acometem) e onde outro, ao
entrar, se lembra de sua primeira comunhão. Também centrais, são os vários
prédios emblemáticos de Porto Alegre mencionados: o Teatro São Pedro, a Santa Casa de
Misericórdia, a Catedral, o Instituto de Educação, o Banco da Província
(mencionado, apenas como o Província), o Mercado Público, o Palácio do Comércio,
o Gazômetro, o Grande Hotel, o Auditório Araújo Viana. A eles se acrescem as
referências ao cemitério Miguel e Almas, aos times de futebol, Internacional e
Grêmio, adversários tradicionais, ao bonde Independência, ao abrigo, estação de
bondes, conhecida por esse nome e que o romancista escreve com minúsculas e
entre aspas. E aos periódicos Correio do Povo, Diário de Notícias,
Folha da Tarde, Revista do Globo: um personagem pensa escrever um
artigo, outro concede entrevistas; e há os que trabalham na redação ou na
revisão e há o menino que pelas ruas faz as vendas.
Certamente,
uma geografia bem precisa, feita de múltiplos elementos e que se adensa nas
notas de um olhar do narrador ou do personagem Tônio Santiago, seu alter ego,
que as cores impressionam: O outono
andava a dar novas tintas à cidade. As folhas das trepadeiras, que cobriam as
paredes de algumas vivendas dos Moinhos de Vento, faziam-se de um vermelho de
ferrugem. Os plátanos do Parque começavam a perder as primeiras folhas. A luz
do sol tinha a cor e a doçura do mel. Os horizontes fugiam. Por toda a parte as
paineiras estavam rebentando de flores. Ou: Havia agora por trás da cidade, lá embaixo, um céu ingênuo azul com
tons de malva, púrpura e ouro polvilhado. As casas e sombras pareciam ter sido
pintadas em vários matizes violetas. O rio em certos trechos tinha uma lisura
lampejante de espelho; noutros, era dum cinzento azulado e fosco; aqui e ali
havia manchas escuras ou claras móveis ou imóveis, ilhas, aguapés, baços,
baias, velas....
Ao orientar os
passos de seus personagens pela cidade, comprazendo-se em fixá-la na sua
toponímia e nas suas instituições, Érico Veríssimo como que se deixa seduzir,
quando, então, a descreve nos seus momentos de luz e de cor. E, certamente,
deve acreditar, como o seu personagem desembargador Lustosa: Porto Alegre tem o mais belo céu do mundo,
doutor.


