domingo, 24 de novembro de 2002

O Poeta e o cão

Para o Dov.

As odes de Pablo Neruda se inscrevem, no dizer de Emir Rodriguez Monegal (El viajero inmovil. Buenos Aires, Losada, 1966), no desejo de uma poesia simples para gente simples. Começou a escrevê-las em 1952 e, dois anos depois, reunidas em livro, Odas elementales, foram publicadas pela Losada de Buenos Aires. A crítica, inclusive aquela dos que até então haviam manifestado, em relação a sua obra, toda sorte de reservas, lhe foi, desta vez, elogiosa, submetida à alegria que impera nesse cantar, nascido das mais pequenas coisas. A esse primeiro volume, se acrescentam outras, Nuevas odas elementales (1956), Tercer libro de odas, (1957) e Navegaciones y regresos que, embora com um título diverso, se constitui o quarto livro das odes. Publicado em 5 de novembro de 1959, reúne cinquenta e três poemas. Cantos que são fruto desse ofício – encher de pão as trevas / fundar outra vez a esperança – que o poeta se propõe e que ele quer absoluto nas odes sem fim, A todo sol, a toda lua [...]/ a todo cão, pássaro, navio / a todo móvel, a todo ser humano.  E a âncora, a cama, o sino caído, as coisas quebradas, a cadeira, o prato, o piano, a melancia, as batatas fritas, um preciso momento do dia no Brasil e em Estocolmo, o cavalo, o gato, o elefante, as gaivotas, o cão, recebem esse orvalho que ele diz ter para todos. Orvalho como oferenda do poeta, tal como é da natureza e que ele irá entrelaçar a seus versos, usufruindo a força de sua expressão poética. Na “Oda al perro”, a palavra orvalho está presente no último verso. Um verso muito breve que acrescenta um elemento inesperado, inusual e sugestivo ao ser que o poeta inventa no final de seu poema, homem e cão reunidos num só animal, de seis patas e uma cauda/ com orvalho.  Epílogo para essa pequena história – o homem a passear no campo com seu cão – sintetizada nos dois versos que formam a segunda estrofe: Em pleno campo vamos / homem e cão. Na tríade – o cenário, os personagens, a ação – em que se constrói o poema, um mundo feérico e iluminado e amoroso. As folhas brilham como se alguém as tivesse beijado / uma por uma, todas as laranjas sobem do chão, um túnel verde e logo / uma planície, uma água intranquila na manhã verde, no mundo umedecido pelas destilações da noite em que as raízes murmuram e o trino e o aroma pairam no ar alaranjado. O poeta está presente – a si próprio se chama o poeta do bosque – e como que preterido por esse companheiro que pergunta sem falar (seus olhos são duas perguntas úmidas, duas chamas líquidas), persegue as abelhas, para, pula sobre a água, urina numa pedra, corre pelo campo e a quem ele não responde. Não pode responder, pois não sabe decifrar enigmas: por que a primavera / não trouxe em sua cesta / nada / para os cães errantes / apenas as flores inúteis. O diálogo não se faz com palavras. Elas sobejam na espontânea comunhão nascida entre o cão a oferecer a ponta de seu focinho e o homem a receber essa expressão de sua ternura. Num e noutro é a alegria de viver que os conduz entre os dedos claros de setembro.  Unidos, cão e homem, homem e cão, num existir de amizade antiga.

Para sempre.

domingo, 17 de novembro de 2002

Jacobina e o Imperador


            De pequena, era doentia nos seus desmaios que, segundo explicação do médico, ficaram sem tratamento, pois os sintomas eram confusos, e não se sabia bem onde terminava a doença e começava a mentira e vice-versa. Menina que se deixava impressionar e não aprendia a escrever, tampouco a ler. No livro de Luiz Antonio de Assis Brasil, Videiras de Cristal (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1990), ela apenas se esboça em breves seqüências a dizer de um gesto ou de suas palavras que somente revelam o que um observador pode constatar: Jacobina, figura principal de um episódio da História do Rio Grande do Sul, ocorrido no fim do século XIX, que teve por palco um núcleo de colonização alemã a nordeste de São Leopoldo e que, ainda hoje, é quase desconhecido. Tendo aprendido com um meio Pastor vidente a ler na Bíblia e a interpretá-la, começou a pregação religiosa entre os doentes que vinham à procura de seu marido, um homem para quem as plantas não possuíam segredo e às quais ele dava razão para existir: uma simples erva que medrava inútil sob a sombra de uma pedra ou no oco apodrecido de uma árvore, se tornava [pela sua arte], a última esperança de um moribundo. Uma vez perguntou à mulher por que, nem sempre, o uso das plantas surtiam o efeito esperado. Jacobina, cada vez mais enfronhada nas páginas da Bíblia, respondeu: Farão efeito se você quiser me ouvir. O Espírito Natural pode te orientar. Ele fala pela minha boca. A partir de então, João Jorge Maurer prescrevia receitas que não mais eram dele, mas, como acreditava, do Espírito Natural que se manifestava por intermédio de Jacobina. Mesclando a cura de doenças, a caridade e promessas messiânicas, ela congregou a seu redor uma população carente e sofredora que, ao ouvi-la, encontrava lenitivo para seus males e esperança de uma vida melhor. Dizendo-se transmissora das palavras de Deus, pregou primeiro a paz e o amor. Mas, suas verdades se opunham àquelas pregadas por homens de coração duro cujas palavras vêm cobertas com a lama das mentiras. E logo apareceram os que a negavam e também os que se sentiam no dever de impedir que falasse. Intolerância  expressa na violência exercida sobre os seus seguidores e que fará com que Jacobina se transforme: Até agora eles só conheciam o coração de uma pomba, vão conhecer a malícia de uma serpente. E intransigências e fanatismos, levando a confrontos, fazem que dela e dos muckers, como eram chamados seus seguidores, emanem as destruições e as mortes. Iguais às destruições e às mortes de que eram vítimas. Sentindo-se acuada, à mercê dos ímpios que a negavam e a queriam destruir e das autoridades, pretendendo manter uma ordem ilusória, ela, ainda que duvidando da eficácia desse pedido – o Imperador vive em seu palácio e nunca nos ouvirá – permitiu enviar à capital do Reino emissários para solicitar ajuda. Redigem o pedido em alemão – a única língua que ela e alguns deles falavam – para ser traduzida e entregue em português, dizendo das agruras sofridas. Inútil precaução. O Imperador, ouvindo seu Ministro, diz aos três colonos, depois de lhes ter apertado a mão, que o papel tomará seu rumo. Diante da tentativa, por parte de um deles, de insistir, o Ministro se interpõe, argumentando que logo teriam notícias, que Sua Majestade iria tomar interesse pelo caso. Inconformados, se retiraram. O Imperador, vendo-os partir, observa que usavam paletós malcortados, sapatos de tacões comidos, bainhas esfiapadas. Já no landau que o conduzia para seu régio almoço, dizia para Gaston d’Orléans, seu augusto genro: Os alemães são pitorescos, aqui no Brasil. Você sabia Gaston [...] que o meu maior sonho seria trazer Wagner para reger no nosso teatro? É uma idéia que não me sai da cabeça. Dizem que ele está precisando de dinheiro”. Desencorajado pelo genro, ainda insistiu: Mas você já pensou Gaston, o Lohengrin aqui pelo próprio autor? O Monarca submergia em recordações. Começou a assobiar baixinho uma ária do amante desventurado, enquanto fechava a cortina do landau, deixando lá fora a poeira, o mormaço, o Brasil.

            No Sul, plantações eram devastadas, propriedades destruídas e homens perdiam a vida nas ações comandadas pelas boas consciências e pelo ódio.

domingo, 10 de novembro de 2002

Dizer de novo


Chega de mansinho e se explicando no primeiro poema do livro, Eu não queria dizer / o que tanto foi dito. Mas, rendido foi pela emoção de amar que o impediu do silêncio, seus versos se sucedem belos, misteriosamente translúcidos. Agrupam-se num pequeno volume, Livro dos amores, publicado pela WS Editor de Porto Alegre, em 1999, Prêmio Açoriano de Literatura do Ano 2000. E cada um deles, breve milagre da expressão amorosa, ora dirigida à mulher amada, ora enovelando-se num dizer que procura se encontrar e que se mostra pleno das riquezas de uma sabedoria assaz rara em alguém nascido há apenas quatro décadas. Médico, psiquiatra, psicoterapeuta, autor de Caderno dos espelhos (1993), Punhais do minuano (1998), Os olhos de Borges (1999), Inventário de Cronos (2002), Jaime Vaz Brasil, é inegável, conhece o ofício de poetar cuja síntese muito bem soube fazer Luiz Antonio de Assis Brasil a respeito deste Livro dos Amores: aqui estão as dúvidas, as incertezas, as certezas transitórias, enfim, aqui estão todas as vacilações e exaltações que todos nós sentimos, mas que exigem um poeta de porte para nos dizer.

E Jaime Vaz Brasil é um poeta de porte que se abriga sob a singeleza das pequenas estrofes, dos versos rimados, de um dizer quase transparente, como no poema “O amor às portas do medo”, para falar de um sentimento tão simplesmente humano como o medo que se enleia ao querer, esperançoso, de outra vez se submeter ao amor. O medo de quem foi marcado, minha alma tem remendos; de quem procura ser prudente e se defender na solidão, Nas portas de minha alma / quero instalar um cadeado / Quero grades e barreiras/e meus caminhos fechados, mas se vê impotente. E então, entrevê negociações que, ingenuamente, usam o verbo impor, no desejo de receber a delicadeza das esponjas e espumas, admitindo, porém, na última estrofe, um fracasso que o verso anterior explica: tenho a alma fraca e tonta e se confessando indefeso face à invasão – outra vez estão batendo – do amor.

            Ainda usando estrofes de dois versos, que neste Livro dos Amores parecem ser da sua predileção, assim como o ritmo perfeito de seus heptassílabos, Jaime Vaz Brasil se aprimora em “O Amor aos Olhos de Náufrago”. Poema em dois tempos em que oito estrofes se fazem de ricas e sugestivas comparações a preparar os dois versos finais. Com sua estrutura paralela e um instigante  jogo de palavras, o poema é admiravelmente construído sem que, no entanto, a sua forma trabalhada esmaeça o sentido lírico do verso, eu chegarei ao teu corpo,  primeiro elemento das sete comparações que formam os três versos iniciais tanto no poema I quanto no II. Na primeira estrofe ao barco na tormenta do poema I, corresponde um barco em águas lentas do poema II. Ou seja, uma palavra é repetida, porém o seu sentido se apresenta transformado pelos seus adjuntos. Ainda na primeira estrofe, ao potro que se solta, do poema I, corresponde o pássaro que pousa, do poema II. Em ambos, a referência a um animal, aquele sabe pleno de juventude e energia, pretendendo a liberdade, o que expressa a delicadeza e que procura o repouso. Na segunda estrofe dos dois poemas, a comparação se completa no segundo verso. E na terceira, não mais se inicia com o advérbio de comparação, mas com a preposição com, dando idéia de modo (com febre de marinheiro, com a fome de cem dias, com a constância dos monges, com assombros de menino). Na quarta estrofe, novamente a troca de palavras (e o desespero de um náufrago depois de um breve esperar, do poema I ao que irá corresponder “e a mansidão de um náufrago/depois de um longo esperar), antecedendo a última, idêntica nos dois poemas: eu chegarei ao teu corpo / como um rio se entrega ao mar. Um pleonasmo que além de exprimir teimosamente um desejo, desnuda a submissão desse “eu” que se quer menor (rio) diante do objeto de seu desejo (mar).

            Neste domínio da forma que prescinde dos grandes recursos retóricos e da grandiloqüência do léxico, o falar de amor de Jaime Vaz Brasil é feito, sobretudo, de uma profunda riqueza lírica o que lhe permite o privilégio de expressar o que tanto foi dito como se fosse a primeira vez.

O Amor aos Olhos de Náufrago

                           I                                                                                                     II

Como um barco na tormenta                                                           Como um barco em águas lentas
como um potro que se solta                                                              como um pássaro que pousa 

como quem grita no escuro                                                               como quem olha ou escuta
e ganha os ecos em si.                                                                       O silêncio dos mosteiros. 

Com febre de marinheiro                                                                  Com a constância dos monges
com a fome de cem dias                                                                   com assombros de menino 

e o desespero de um náufrago                                                          e a mansidão de um náufrago
depois de um breve esperar                                                              depois de um longo esperar 

eu chegarei ao teu corpo                                                                   eu chegarei ao teu corpo
como um rio se entrega ao mar.                                                        Como um rio se entrega ao mar.

domingo, 3 de novembro de 2002

Réquiem



           A Imprensa Oficial do Estado do Paraná publicou neste ano de 2002, na sua coleção “Brasil Diferente” e organizado por André Seffrin, Notícias do Paraná: comentários de Walmir Ayala sobre a arte paranaense (além de duas cartas, uma dirigida a Dalton Trevisan, outra a Curitiba) que apareceram, originariamente, entre 1968 e 1991, sobretudo, no Jornal do Brasil e no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro e em Catálogos de Exposições. Os numerosos textos que fazem parte do livro comentam as obras de artistas paranaenses e a política cultural do estado. Três dentre eles tratam de Hélio Leites. O Hélio Leites que inventou o Assobiódromo Municipal de Curitiba, criou a Associação Internacional de Colecionadores de Botão e a Ex-cola de Samba Unidos do Botão com seus carros alegóricos em miniatura e que merece do crítico gaúcho palavras entusiasmadas: esse feiticeiro que criou, em cima do botão e do assobio, um movimento altamente criativo, o louco e criador e artista e poeta e equilibrado, mestre da poesia, arte postal e comunicação. Um inventor, raríssimo artista brasileiro. Sem dúvida, o incomum senso de humor, a perspicácia  crítica e uma criatividade verdadeiramente sem igual fazem de Hélio Leites um representante do pensar estético brasileiro muito peculiar e muito autêntico. E de uma autenticidade que se mostra, igualmente, no seu lirismo feito do inesperado e do surpreendente, do triste e do melancólico, fruto de um cotidiano convívio com os humanos.

            Há exatamente dez anos, Hélio Leites publicava n’O Estado do Paraná, um pequeno texto com o título de  “Tigre Curitibano”. Poema cujos três primeiros versos, com a objetividade que procura informar, sintetizam um fato que pode ser considerado e, certamente, o foi, por muitos, banal: o ter sido dada a morte a um tigre que fugira do circo e com essa morte, proporcionada à cidade condições para  dormir tranqüila. O verso que segue, porém, ao definir tal sono como um sono de chumbo introduz metaforicamente a noção de responsabilidade pelo crime ecológico que provavelmente as boas consciências justificam tanto quanto amestrar animais selvagens e condená-los, apenas para deleite de alguns, a um cativeiro cruel e injustificável. Também metafóricos os versos seguintes que falam do animal morto e que dorme, verbo a introduzir a palavra pijama que o irá descrever amarelo de listas negras. Logo, o retorno à cidade, desta feita, catalogada como costuma ser, capital ecológica, na qual pinga algo de vermelho o que, sem dúvida, está longe de ser aleatório ou inocente. Depois, a menção à fonte da informação primeira, a manchete dos jornais, dando conta do ocorrido para, então, surgir, o libertar da emoção. Ela cabe nos versos finais em que a expressão jaula vazia tem origem na realidade – o tigre não mais a habita – e num fantasioso desejo – o tigre voa vivo. Um voar impossível e um impossível estar vivo para a vítima da urbana caçada inglória, travada no asfalto. Mas, na ausência da vida, a sua imagem persiste na recriação do poeta que não deixa esquecer a triste vida desse tigre enjaulado e a triste morte que lhe coube.