Em 1973, a Noguer,
de Barcelona, publicou El hombre
que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade
histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais
belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a
narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan
Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile
que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três
vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se
iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros
trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez,
mudá-la de lugar. Como efêmeras tréguas, as flores.
O desejo de alguns dos espanhóis que se incorporaram à expedição de Juan Núñez de Prado de se enraizar nas terras do Continente é representado no romance de Carlos Drougett que lhes narra os feitos, pelo apego que eles têm às flores, plantadas na cidade recém fundada. Um sentimento que dará origem a confrontos cujo preço será extremamente alto para o derrotado: a vida. Magistralmente, o autor chileno enovela a metáfora da dominação ao lirismo que se expressa num punhado de flores que não pode ser abandonado. Como, também, irá entrelaçar as flores ao cenário e a alguns personagens. Ao cenário, como breves pinceladas a sugerir um toque de cor, embora apenas duas vezes a cor das flores – vermelho e amarelo – seja mencionada. Assaz rara, igualmente, a presença de adjetivos ou de espécies que as qualifiquem. Não são descritas, nem louvadas e a função que lhes cabe, então, é a de dar vida ao relato tanto quanto os sons e o fervilhar de ações que o povoam. Assim, as flores rebentam nos recantos sombrios, se inclinam cerimoniosas na direção das carretas para espiar os cavalos cansados, ascendem pelos troncos, se abrem enormes, vermelhas, ou amarelas, se mostram vermelhas, curiosamente sensuais e transparentes, exalando, por vezes, seus perfumes acres ou agradáveis ou de flores ligeiramente molhadas. E se mostra evidente, nessa lógica apaixonada que sempre conduz os escritos de Carlos Droguett, estar a sua função maior nas seqüências comprometidas com os personagens: os índios, submetidos ao trabalho, seja ele tão leve, quem sabe agradável, de recolher vasos de flores; o padre Cedrón, caminhando entre os enfermos a lhes dizer palavras alegres, simplesmente de esquecimento, simplesmente de esperanças, ensartando nelas o sol, o ar, as flores; o padre Carvajal, esperando ver a primavera irrompendo nas rosas. Sobretudo, comprometida com os seus atos. Quando o padre Carvajal conta sobre os seus dias em Barco 1, já abandonada, onde ficara para enterrar os mortos, lembra que, ao subir as escadas da forca para retirar os soldados que dela pendiam e lhes dar sepultura, um deles, Alonzo del Arco, rescendia a flores frescas, a flores vivas. E, Juan Núñez de Prado, antes de matar o soldado que o acusara de estar com medo, de estar derrotado ao argumentar que o rei precisa de soldados, cada vez mais soldados e cavalos e cruzes vê as cruzes enterradas no barro e nas quais se alvoroçavam, agitadas pelo temporal uns manojos de flores, flores podres e desfeitas [...]. E teria desejado conversar, explicar-se, inquirir, mas o soldado, sentindo-se ameaçado, começa a correr. Ele o persegue e de cima do cavalo lhe golpeia as costas e o lança contra uns lençóis que cheiravam a flores, a capim, a sol morno, a brisa da madrugada, onde, atado como estava, se debatia para ocultar o rosto: era donairoso e jovem, de traços finos, audazes e ingênuos. Dar-lhe a morte não lhe custou. Sim, suportar a angústia que lhe sobreveio. Olhou para os índios que trabalhavam, carregando as carretas para partir. Olhou para os soldados que, levando as mãos aos cinturões conferiam se aí estavam as adagas. Olhou para os galhos das laranjeiras que se vergavam sob o ar quente e que parecia lhe estivessem fazendo sinais para que não esquecessem de nada, nem das mesas, nem das escadas da forca, nem dos vasos de flores. Para que – dir-se-ia – o universo da Conquista continuasse a ser fiel ao modelo que o guiava: os índios a serviço dos brancos. Os capelães no exercício das obras pias. O capitão no uso e abuso de seu pleno poder de arbítrio.
Como
efêmeras tréguas, as flores.

