domingo, 27 de outubro de 2002

As flores. 2



Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Como efêmeras tréguas, as flores. 

  
          O desejo de alguns dos espanhóis que se incorporaram à expedição de Juan Núñez de Prado de se enraizar nas terras do Continente é representado no romance de Carlos Drougett que lhes narra os feitos, pelo apego que eles têm às flores, plantadas na cidade recém fundada. Um sentimento que dará origem a confrontos cujo preço será extremamente alto para o derrotado: a vida. Magistralmente, o autor chileno enovela a metáfora da dominação ao lirismo que se expressa num punhado de flores que não pode ser abandonado. Como, também, irá entrelaçar as flores ao cenário e a alguns personagens. Ao cenário, como breves pinceladas a sugerir um toque de cor, embora apenas duas vezes a cor das flores – vermelho e amarelo – seja mencionada. Assaz rara, igualmente, a presença de adjetivos ou de espécies que as qualifiquem. Não são descritas, nem louvadas e a função que lhes cabe, então, é a de dar vida ao relato tanto quanto os sons e o fervilhar de ações que o povoam. Assim, as flores rebentam nos recantos sombrios, se inclinam cerimoniosas na direção das carretas para espiar os cavalos cansados, ascendem pelos troncos, se abrem enormes, vermelhas, ou amarelas, se mostram vermelhas, curiosamente sensuais e transparentes, exalando, por vezes, seus perfumes acres ou agradáveis ou de flores ligeiramente molhadas. E se mostra evidente, nessa lógica apaixonada que sempre conduz os escritos de Carlos Droguett, estar a sua função maior nas seqüências comprometidas com os personagens: os índios, submetidos ao trabalho, seja ele tão leve, quem sabe agradável, de recolher vasos de flores; o padre Cedrón, caminhando entre os enfermos a lhes dizer palavras alegres,  simplesmente de esquecimento, simplesmente de esperanças, ensartando nelas o sol, o ar, as flores; o padre Carvajal, esperando ver a primavera irrompendo nas rosas. Sobretudo, comprometida com os seus atos. Quando o padre Carvajal conta sobre os seus dias em Barco 1, já abandonada, onde ficara para enterrar os mortos, lembra que, ao subir as escadas da forca para retirar os soldados  que dela pendiam e lhes dar sepultura, um deles, Alonzo del Arco, rescendia a flores frescas, a flores vivas. E, Juan Núñez de Prado, antes de matar o soldado que o acusara de estar com medo, de estar derrotado ao argumentar que o rei precisa de soldados, cada vez mais soldados e cavalos e cruzes vê as cruzes enterradas no barro e nas quais se alvoroçavam, agitadas pelo temporal uns manojos de flores, flores podres e desfeitas [...]. E teria desejado conversar, explicar-se, inquirir, mas o soldado, sentindo-se ameaçado, começa a correr. Ele o persegue e de cima do cavalo lhe golpeia as costas e o lança contra uns lençóis que cheiravam a flores, a capim, a sol morno, a brisa da madrugada, onde, atado como estava, se debatia para ocultar o rosto: era donairoso e jovem, de traços finos, audazes e ingênuos. Dar-lhe a morte não lhe custou. Sim, suportar a angústia que lhe sobreveio. Olhou para os índios que trabalhavam, carregando as carretas para partir. Olhou para os soldados que, levando as mãos aos cinturões conferiam se aí estavam as adagas. Olhou para os galhos das laranjeiras que se vergavam sob o ar quente e que parecia lhe estivessem fazendo sinais para que não esquecessem de nada, nem das mesas, nem das escadas da forca, nem dos vasos de flores. Para que – dir-se-ia – o universo da Conquista continuasse a ser fiel ao modelo que o guiava: os índios a serviço dos brancos. Os capelães no exercício das obras pias. O capitão no uso e abuso de seu pleno poder de arbítrio.

            Como efêmeras tréguas, as flores.

domingo, 20 de outubro de 2002

E as flores.1



Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Para muitos dos espanhóis, nas flores é reencontrar a pátria, mas, também, outra vez,  perdê-la, submissos às vontades maiores.

            Os cavalos se moveram em pouco e como se desejassem esconder aquilo. O soldado fora morto pelo capitão, em pleno sol, por ter ousado retrucar: tu puseste na cadeia todos aqueles que desejavam ficar, cuidar de suas casas, regar suas árvores, tu somente queres homens a cavalo, agarrados a seus arcabuzes e às adagas, somente queres soldados. Dos duzentos que seguiram Juan Núñez de Prado, nem todos, no entanto, queriam ser homens de armas. Muitos haviam deixado a velha Espanha, buscando o que nela não poderiam ter: algo de seu. E a casa construída na cidade recém fundada, representava o lugar onde se enraizar. Entre essa vontade e a do capitão, dominado pelo medo e pelo afã de seguir adiante, se inserem as dissidências que levam à morte, decretada em nome das justiças. Porque, aos que desejam ficar, aos que não querem ir, os capitães argumentam  sem convencer e, então, usam de suas leis que dizem ser as do rei e as de Deus. E exclama Guevara: se não sabem abandonar virilmente uns vasos com flores, uma dúzia de frutas perfumadas, como compreendes, senhor, que esta tropa de ladrões e assassinos tenha embarcado na Espanha para vir conquistar a terra? E diz Griego: olha senhor esse preso que anda tresnoitado para a sua cela, é um bom homem, um perfeito cristão, conhece seu dever com Deus e seu oficio com o rei, seu trabalho é agora sofrer, porque, senhor, nós temos pressa e ele não, nós pegamos o martelo e ele a pazinha do jardim, se dirige à prisão belamente esperançoso, a esperar que apodreçam as cordas e ele fique livre e boceje expulsando o sopor e o cansaço e as más lembranças e volte a cuidar de suas rosas, porque nós, não carregamos flores, nem os crisântemos, nem a fruta, nem a queda d’água nem o céu [...]. E fala Ardiles para o soldado: olha, Luciano, estamos desfeitos mas faremos justiça com os traidores. Choras porque os soldados destripam umas sacadas e os cavalos pisoteiam umas flores? Por isso queres te rebelar contra o rei, o vice-rei e o capitão? E conclui Juan Núñez de Prado: somos capazes de levar uma cidade nas costas, o mundo novo sobre os ombros, que eles chorem, eu não choro, eu não tenho vasos de flores na minha sacada, eu não tenho sacada, eu não plantei limoeiros, nem amendoeiras, nem pessegueiros, nem alecrim, nem rosas. Mas, ou porque essas flores cultivadas significam, para muitos, a real posse da terra, ou porque seja verdade o que diz um dos capitães a respeito dos que se apegam à terra – cravam primeiro um prego e logo plantam uma flor – o olhar de Juan Núñez de Prado, ao se deter sobre os móveis, as roupas, os pedaços da cidade, freqüentemente recai sobre as flores que estão perto das portas e janelas atiradas no chão, junto com as roupas espalhadas ou pendendo das janelas ou se lançando para o alto. Ainda que pareça incoerência, é com flores que ele imagina a cidade assentada: as ruas silenciosas, as sacadas cheias de flores e de romanças e são flores que também lhe dão razões para a mudança da cidade. Uma, para assentá-la definitivamente, para rapidamente por em ordem suas praças, por em ordem seus edifícios, deixar erguida a torre da igreja, esparramar umas pombas, abrir uns vasos de flores. Outra, para reafirmar a necessidade premente de levá-la para um novo lugar, pois haverá o dia em que chegarão ginetes furiosos, arremessando nas sacadas cheias de flores para desfazê-las.



Tais conflitos que, em meio a muitos outros, surpreendem apenas por esse inesperado apego às flores – na verdade mencionadas,  só as rosas, os cravos, as violetas e os crisântemos – ao serem regidos pelo desejo de repetir no Continente algo de um universo que foi deixado para trás – a casa espanhola com suas sacadas e suas flores – não significam somente a expressão do comovente, e tão intensamente manifestado, sentimento do expatriado, mas, também, motivo para delinear as relações entre os que arbitrariamente decidem e os que às decisões sempre devem se submeter. Um tema certamente caro a Carlos Droguett que, sabe-se, não ser um autor que use do lirismo para simplesmente falar de flores.

domingo, 13 de outubro de 2002

Com o vento


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Com o vento, os testemunhos.


            Havia vento, soprava o vento, o vento soprou furioso, o vento ainda soprava contido, não havia vento breves expressões que, juntamente com outras a darem conta dos sons, dos odores, das cores do dia e da noite, do mover-se dos homens e dos animais, tornam pleno de vida o relato desse mundo da conquista do Continente, no ano de 1570. No entanto, no tumultuado caminho que Juan Núñez de Prado percorre com os capitães, os duzentos soldados e os quinhentos índios, mais os três capelães, se envolvem os rios, as matas, os cerros, as planícies e nas relações que se estabelecem entre os homens e a natureza advém uma espontânea proximidade. Assim, mais do que uma notação de cenário ou das ações que neles se concretizam, o vento envolve personagens, animais, objetos numa presença que adquire contornos bem precisos como precisas funções no relato. Poucos termos o qualificam – gelado, matinal, quente, alto e primaveril – salvo no fragmento em que o padre Carvajal ao chegar ao segundo assento da cidade, vindo da que fora abandonada onde havia permanecido para enterrar os mortos, lembra o momento em que os retirou da forca e os estendeu no chão e do vento que chegava penetrante, um pouco úmido, mas agradável, impregnado no perfume das flores e da água do rio. Imagens de morte e de vida que se contrapõem e que serão reforçadas quando ele diz que o vento lhe trazia, também, o cheiro da fumaça, ainda a queimar os campos semeados: um sutil encadear de seqüências, dizendo uma, dos odores simples e puros da natureza e, outra, daquele provocado pelo homem no seu afã de destruição. Tanto quanto o céu e a chuva, o vento conduzirá, então, no mundo ficcional de El hombre que trasladaba las ciudades, detalhes narrativos e significados em acorde com a intenção maior do romance: não permitir a trégua que possa deixar no esquecimento o proceder ambíguo e cruel na conquista do Continente. Como sujeito de um verbo que o relaciona com os seres povoadores do romance e cujos complementos lhe fixam detalhes, o vento terá uma função narrativa: alvoroçar o cabelo do padre Cedrón ou as roupas do padre Carvajal, polir os ombros do capitão quando se apóia na janela de costas para a praça, empurrar os cavalos e bater-lhe nas garupas, levantar a roupa molhada, folhear os livros pousados sobre os móveis, incorporar e levar perfumes, ramos de flores, brisas delgadas e persistentes.

            Mas, servir-se de algo tão simples como a ação do vento, também pode enriquecer fragmentos do relato na reafirmação teimosa de que a lei do mais forte é sempre a melhor. Num deles, dois espanhóis recusando-se a deixar a cidade, foram mortos dentro de casa e ali ficaram. Na ânsia de lhes dar sepultura, assim como aos enforcados, o padre Carvajal desprega as portas e janelas que haviam sido clausuradas. No terrível relato do que aconteceu, se insere a breve frase o vento agitou o teto, fazendo vibrar as tábuas soltas: as que permitiram aos soldados atirar nos que se recusavam a partir. Outro breve episódio é o do soldado que está trabalhando na sua casa quando outros lhe rendem os braços, sem explicações, e o esbofeteiam e destroem janelas e paredes e ele vê a porta se açoitando contra o vento enquanto passavam soldados amarrados, empurrados pelas armas. Ainda, o que descreve o vôo dos corvos, descendo até as forcas vazias cujas cordas o vento agita contra as escadas do patíbulo. Ou o que narra a chegada do capitão Ardiles na cidade que está prestes, outra vez, a ser mudada de lugar. Chega junto com os cavalos magros e cheios de terra, e os ginetes magros e cheios de terra, nesse silêncio que revela as longas caminhadas, com suas roupas e botas a emanar um ar lúgubre e enfermiço. Diante das mulas e lhamas secas, esqueléticas, de olhos desolados e flancos trêmulos e umas bandeirinhas desbotadas e desfiadas, brilhando no sol, Juan Núñez de Prado quase soluça, pensando no vento, no sol, na chuva, na fome dos quais, certamente, eles tivessem sido as vítimas. Como se, atribuindo aos elementos esse estar na origem das misérias e dos sofrimentos, ele, assim, se inocentasse das culpas que lhe cabiam nessa trajetória marcada pela destruição.

domingo, 6 de outubro de 2002

Na chuva


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes.O segundo capítulo, “El segundo translado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na chuva, os homens e suas iniqüidades.
           

Nas quarenta carretas, eles levam a cidade. Sob uma árvore, Juan Núñez de Prado as vê passar,  balançando-se com suavidade. Está confiante, cavalgando alegre quando as gotas de chuva começam a lhe molhar o rosto. Longe, no alto das montanhas, os relâmpagos e os trovões e perto dele, o capelão grita feliz que é a primeira chuva ao que ele retruca, arrogante, que é a primeira mudança. Chove a noite inteira sobre o rosto dos índios e sobre os rostos curtidos, endurecidos dos soldados, sobre os cavalos que troteiam livres, sobre as carretas que se perdem no barro. Chove muito e por muito tempo e perdem a noção dos dias em que estão avançando sob a chuva. É, então, sob a chuva, que os soldados começam a descarregar as roupas e os móveis e que os capitães olham para Juan Núñez de Prado, fazendo com que perguntasse, irado, se iriam, com tanta chuva, tirar das carretas a cidade. Mas, um lhe dizia para olhar os morros; outro lhe afirmava que logo iria parar de chover; insistindo, todos, que esse era o lugar. Desmontaram e foram chamando os soldados em meio ao barulho da chuva. Juan Núñez de Prado, sem dizer nada, olha os móveis ensopados e as portas e as janelas e os montes de roupa, desejando adivinhar quantas carretas se haviam perdido e olha para o padre Cedrón, dormindo, profundamente, sem se proteger da intempérie. Desperta assustado quando a água que escorre, interminável, sobre os móveis esparramados, lhe açoita o rosto. Padre, diz o capitão, esta é minha chuva, esta é sua chuva, nossa chuva, padre. Não temos arco-íris nem pomba, só a chuva é nossa mensageira de violenta paz, não podemos prosseguir sob o temporal se não quisermos que a cidade se desintegre e vá embora rio abaixo, padre, vamos ficar, padre, este é o lugar.

            O lugar para a cidade. O lugar dos trabalhos renovados, das efêmeras imagens que se oferecem ao olhar e dos cruéis incidentes a marcar, ainda, uma vez, a trajetória da Conquista: é o fogo aceso, crepitando sob as tendas, o barulho de uma panela a ferver, o despregar de tábuas, o desamarrar de cordas, a batida do martelo nos pregos. É o galo vermelho, amarfanhado pela chuva e pelo frio, a ovelha que balia humilde, parada no escuro [...], sua lã triste a ressaltar na penumbra, o focinho palpitando assustado e faminto, o cavalo bebendo um pouco da chuva, o reflexo dos móveis, das janelas, das portas, das sacadas, nos charcos, o rastro de água, deixado pela árvore quando sacudida pelos soldados, o gotejar entre as folhas. Um universo onde se inscrevem, também, inesperados, os episódios com os soldados feridos. Um deles, de muleta, se deixa ver, caminhando longe de todos, rindo. Detém-se para olhar para o capitão que se admira de que tenha seguido com a cidade, pois a ordem havia sido de enforcar os coxos e os velhos. Quando Juan Núñez de Prado e o capelão olham para ele, perde a cor, sob a chuva que deslizava miserável pelo seu rosto doente, era jovem, muito jovem, tinha uma cara audaz e provocativa mas estava assustado e passou a mão pela testa para apagar o medo, levantou a muleta para que a vissem e riu com humildade. Juan Núñez de Prado com a espada em punho quer alcançá-lo, porém é impedido pelo padre e por seus capitães e o soldado, pulando entre os cães que o perseguem, some na chuva, tateando a escuridão com a muleta.

            Como soe acontecer no relato de Carlos Droguett, o episódio parece terminado, logo seguido por outro e só irá reaparecer muitas páginas adiante. No caso, exatamente vinte, quando o padre Cedrón, no dia seguinte, sai para as aforas do acampamento, deixando para trás os escombros disformes e desagradáveis, desolados e trágicos da cidade. Após subir umas rochas e correr e se cansar, se depara com o homem caído, a muleta ali perto, no chão. Lembra dele, de como haviam impedido que o capitão lhe fizesse mal, de como ele se havia defendido com a muleta, num gesto de audaz provocação ou como uma carta de apresentação ou uma pobre pueril desculpa, de como se afastara pelos lados do bosque e se distanciara cada vez mais sob a chuva. O que, na verdade, pouco lhe valeu, pois ali estava, a cabeça apoiada numa pedra, o peito ferido, o uniforme e a bota em frangalhos.

            Submersos nas zonas de sombra da narrativa os que respondem por sua morte, as razões que eles mesmos se atribuem e o momento da execução. Recurso usual na ficção de Carlos Droguett a eludir pormenorizações cruéis de cruéis e injustos procedimentos, mas, assim, tornando maior  o seu real e profundo significado. 

...ficavam contentes com a chuva que vinha lavá-los, limpá-los de feias ações e desafio, de tentações e traições e pesadelos.