É
um topônimo do Rio Grande do Sul: Catí, um arroio perto da fronteira. Às suas
margens, logo após o término da Revolução Federalista, com a vitória do
Governo, foi construído um castelo
que, sob o comando do coronel João Francisco, se tornou cenário de atrocidades,
motivo de terror: Já nada mais se fazia
então naquela vasta zona sem consulta ao Catí. O Catí era o Sub-estado. O
personagem que dá o título ao romance de Dyonélio Machado, O Louco do Catí
(Porto Alegre, Globo, 1942), menino, ainda, foi marcado pelo medo que
presenciou nos adultos. Na sua casa, um dia, o pai conversava com amigos sobre
casos de injustiça e, de súbito, suspenderam o que diziam para ir espiar no
porta e se tranquilizarem. Diante da indagação que ele fez, a mãe respondeu que
um menino não fala dessas coisas. –Que
coisas, mãe? – Cala a boca: o Catí. E, também, pela cena cruel que viu na
praça da cidade, os sobreviventes de uma degola, atados uns aos outros. Ou
pelas caras pálidas, fantásticas, em
uniformes negros, lendários... que ele até podia ver ao escutar histórias
da tentativa de revolta dos oficiais do
Cati.
O
trabalho de Márcia Helena Saldanha Barbosa, A paródia em O Louco do Cati
(Porto Alegre, EDIPUCRGS, 1994), aproxima essas vivências à alienação que
parece reger o comportamento do
personagem que dá o nome ao romance e que somente se interrompe quando é
dominado pelo medo. Um medo cuja origem está no Catí.
O
romance se inicia com o percurso que ele faz, num bonde de Porto Alegre, até o
fim da linha. No armazém, onde vai comprar cigarros e fósforo, se incorpora a
um grupo de rapazes que ali está e, com eles, viaja para o litoral. Na verdade,
a viagem se prolonga e as circunstâncias o conduzem ao Rio de Janeiro e o
trazem de volta ao Catí.
No
itinerário que percorre, os azares e os percalços o deixam imperturbável e
apenas se emociona e, sempre, fortemente, se um gesto ou uma palavra o levam e
pensar no Catí e sentir-se ameaçado. A primeira vez foi logo no início da
viagem. O grupo chegou a Palmares e pediu para dormir no pátio de uma
propriedade. De manhã, a construção das casas lhe pareceu um quartel e a figura
do dono, grande, grosso, cabeleira
lançada para trás, bigodudo... completou-lhe o susto e o fez gritar: –É o Catí!... e fugir para se esconder
no mato. Depois, também se assustou ao chegar de caminhão a Araranguá. A
polícia esperava o seu companheiro de viagem e o cerco que fez em torno do
caminhão, embora pequeno, e a voz dura e
precipitada querendo identificar o homem procurado, fez com que ele
gritasse, aterrorizado Isto! Isto é o
Catí!. No Rio de Janeiro, o levam junto com o companheiro de viagem, já,
agora, de desventura, para a cadeia. Ao chegarem, vendo janelas com grades na
parede parda, teve um movimento de fuga, quis retroceder, mas foi arrastado e jogado
na cela, enquanto grita É o Catí! [..]).
Não me levem para o Catí!, pois lhe vem à mente a pergunta que fizera à mãe
ao ver um homem preso, obtendo como resposta: –Vão matar ele lá no Catí... Mais tarde, posto em liberdade, viaja
de navio, de volta para o sul. Manietado por dois marinheiros, levam um
clandestino até o comandante que, dando fim às perguntas e explicações, ordena:
–Meta nas grades!. Às suas costas, ouve-se a voz gritada: –Catí. Já em Livramento, na mesa do
hotel, mostra-se alheio. Mas, no comentário sobre o mau tempo e sobre os
riachos cheios, impedindo a passagem, aparece a palavra Catí, o Catí campo fora e ele estremece e seus
olhos se mostram inquietos. E noutra conversa, ainda sobre as cheias dos
arroios com a chuva, ao dizer alguém que o Catí era terrível, que espraiava muito, seus olhos fuzilam. E,
finalmente, o avião em que viaja deve fazer um pouso forçado, em pleno campo.
Descem todos e o comandante, avançando contra o vento, com sua capa preta a
esvoaçar, tinha um aspecto lendário.
Então disse, atirando as palavras nas costas da figura negra O Catí! O Catí!
e desaparece na intempérie. Para ir em busca do Catí nos sítios que lhe são
familiares, conhecidos e encontrar o castelo, o pátio, o poço. Caminha sob a
chuva até a noite ser substituída pelo dia. E na bonança que vem com ele, o pasto
depois da chuva era como se naquele mesmo
momento brotasse, verde, do chão e o campo se enchia de flores rasteiras,
pequenas, coloridas. Era primeiro, uma
mancha comprida, toda branca. E outras manchas, ou amarelas, ou roxas. Sempre,
uns pontilhados de florinhas, cada uma de sua cor, florezinhas que corriam para
o horizonte e pareciam tiradas naquele instante dum saco ( o Saco Encantado que
contivesse todas as flores silvestres) e jogadas à mão sobre o campo. O sol
aparece e lava tudo num ouro fluído,
quase pálido. A sua frente pode ver as ruínas do Catí, cacos de paredes que mal se
equilibram, inundadas pelo sol. Quase sem acreditar, percebe que afugentara a assombração num relâmpago, para sempre! Queria, dali donde estava,
defronte do sol, queria – era poder estender umas mãos vingativas de gigante,
para sentir nos próprios dedos frisados de luz o esfarelar do pó do Catí que se
esboroava – lentamente, através esses
anos, numa serenidade melancólica de coisa morta, que apenas vive a vida
ultrajada de espectro... Liberto, ele sorri na luminosidade da tarde. Uma tarde de ouro a dourar as águas do
arroio, lâmina brilhante, cujo nome,
Catí, é eludido. Como esquivada foi, sem deixar de estar presente no relato,
nessa grande maestria narrativa que é tão própria de Dyonélio Machado, qualquer
alusão aos donos do Poder – era o período do Estado Novo – ou às relações
possíveis entre os seus métodos policiais e suas arbitrariedades e aqueles do
coronel João Francisco no tratamento dado aos adversários.
Assim,
os escombros em que se transformaram as paredes do castelo e o livrar-se o Louco do Catí dos medos que, até então, o
haviam envelhecido traduzem, nesse romance, escrito por um homem que foi preso
por delito de opinião, a inaudita capacidade de, ainda, ter a certeza de uma
louca esperança num futuro pleno de luz.

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