domingo, 13 de janeiro de 2002

À luz da manhã


            É um topônimo do Rio Grande do Sul: Catí, um arroio perto da fronteira. Às suas margens, logo após o término da Revolução Federalista, com a vitória do Governo, foi construído um castelo que, sob o comando do coronel João Francisco, se tornou cenário de atrocidades, motivo de terror: Já nada mais se fazia então naquela vasta zona sem consulta ao Catí. O Catí era o Sub-estado. O personagem que dá o título ao romance de Dyonélio Machado, O Louco do Catí (Porto Alegre, Globo, 1942), menino, ainda, foi marcado pelo medo que presenciou nos adultos. Na sua casa, um dia, o pai conversava com amigos sobre casos de injustiça e, de súbito, suspenderam o que diziam para ir espiar no porta e se tranquilizarem. Diante da indagação que ele fez, a mãe respondeu que um menino não fala dessas coisas. –Que coisas, mãe? – Cala a boca: o Catí. E, também, pela cena cruel que viu na praça da cidade, os sobreviventes de uma degola, atados uns aos outros. Ou pelas caras pálidas, fantásticas, em uniformes negros, lendários... que ele até podia ver ao escutar histórias da tentativa de revolta dos oficiais do Cati.

            O trabalho de Márcia Helena Saldanha Barbosa, A paródia em O Louco do Cati (Porto Alegre, EDIPUCRGS, 1994), aproxima essas vivências à alienação que parece reger o comportamento do personagem que dá o nome ao romance e que somente se interrompe quando é dominado pelo medo. Um medo cuja origem está no Catí.

            O romance se inicia com o percurso que ele faz, num bonde de Porto Alegre, até o fim da linha. No armazém, onde vai comprar cigarros e fósforo, se incorpora a um grupo de rapazes que ali está e, com eles, viaja para o litoral. Na verdade, a viagem se prolonga e as circunstâncias o conduzem ao Rio de Janeiro e o trazem de volta ao Catí.

            No itinerário que percorre, os azares e os percalços o deixam imperturbável e apenas se emociona e, sempre, fortemente, se um gesto ou uma palavra o levam e pensar no Catí e sentir-se ameaçado. A primeira vez foi logo no início da viagem. O grupo chegou a Palmares e pediu para dormir no pátio de uma propriedade. De manhã, a construção das casas lhe pareceu um quartel e a figura do dono, grande, grosso, cabeleira lançada para trás, bigodudo... completou-lhe o susto e o fez gritar: –É o Catí!... e fugir para se esconder no mato. Depois, também se assustou ao chegar de caminhão a Araranguá. A polícia esperava o seu companheiro de viagem e o cerco que fez em torno do caminhão, embora pequeno, e a voz dura e precipitada querendo identificar o homem procurado, fez com que ele gritasse, aterrorizado Isto! Isto é o Catí!. No Rio de Janeiro, o levam junto com o companheiro de viagem, já, agora, de desventura, para a cadeia. Ao chegarem, vendo janelas com grades na parede parda, teve um movimento de fuga, quis retroceder, mas foi arrastado e jogado na cela, enquanto grita É o Catí! [..]). Não me levem para o Catí!, pois lhe vem à mente a pergunta que fizera à mãe ao ver um homem preso, obtendo como resposta: –Vão matar ele lá no Catí... Mais tarde, posto em liberdade, viaja de navio, de volta para o sul. Manietado por dois marinheiros, levam um clandestino até o comandante que, dando fim às perguntas e explicações, ordena: –Meta nas grades!. Às suas costas, ouve-se a voz gritada: –Catí. Já em Livramento, na mesa do hotel, mostra-se alheio. Mas, no comentário sobre o mau tempo e sobre os riachos cheios, impedindo a passagem, aparece a palavra Catí, o Catí campo fora e ele estremece e seus olhos se mostram inquietos. E noutra conversa, ainda sobre as cheias dos arroios com a chuva, ao dizer alguém que o Catí era terrível, que espraiava muito, seus olhos fuzilam. E, finalmente, o avião em que viaja deve fazer um pouso forçado, em pleno campo. Descem todos e o comandante, avançando contra o vento, com sua capa preta a esvoaçar, tinha um aspecto lendário. Então disse, atirando as palavras nas costas da figura negra O Catí! O Catí! e desaparece na intempérie. Para ir em busca do Catí nos sítios que lhe são familiares, conhecidos e encontrar o castelo, o pátio, o poço. Caminha sob a chuva até a noite ser substituída pelo dia. E na bonança que vem com ele, o pasto depois da chuva era como se naquele mesmo momento brotasse, verde, do chão e o campo se enchia de flores rasteiras, pequenas, coloridas. Era primeiro, uma mancha comprida, toda branca. E outras manchas, ou amarelas, ou roxas. Sempre, uns pontilhados de florinhas, cada uma de sua cor, florezinhas que corriam para o horizonte e pareciam tiradas naquele instante dum saco ( o Saco Encantado que contivesse todas as flores silvestres) e jogadas à mão sobre o campo. O sol aparece e lava tudo num ouro fluído, quase pálido. A sua frente pode ver as ruínas do Catí, cacos de paredes que mal se equilibram, inundadas pelo sol. Quase sem acreditar, percebe que afugentara a assombração num relâmpago, para sempre! Queria, dali donde estava, defronte do sol, queria – era poder estender umas mãos vingativas de gigante, para sentir nos próprios dedos frisados de luz o esfarelar do pó do Catí que se esboroava – lentamente, através esses anos, numa serenidade melancólica de coisa morta, que apenas vive a vida ultrajada de espectro... Liberto, ele sorri na luminosidade da tarde. Uma tarde de ouro a dourar as águas do arroio, lâmina brilhante, cujo nome, Catí, é eludido. Como esquivada foi, sem deixar de estar presente no relato, nessa grande maestria narrativa que é tão própria de Dyonélio Machado, qualquer alusão aos donos do Poder – era o período do Estado Novo – ou às relações possíveis entre os seus métodos policiais e suas arbitrariedades e aqueles do coronel João Francisco no tratamento dado  aos adversários.

            Assim, os escombros em que se transformaram as paredes do castelo e o livrar-se o Louco do Catí dos medos que, até então, o haviam envelhecido traduzem, nesse romance, escrito por um homem que foi preso por delito de opinião, a inaudita capacidade de, ainda, ter a certeza de uma louca esperança num futuro pleno de luz.


Nenhum comentário:

Postar um comentário