domingo, 27 de janeiro de 2002

As invenções



         No prólogo ao livro Nerudario (Santiago, Planeta Chilena, 1999) de sua autoria, José Miguel Varas resolve suas dúvidas – como escrever sobre momentos da vida de Pablo Neruda que presenciou, sem correr o risco de ser tido como um aproveitador das glórias do poeta? – citando as palavras do escritor Carlos Martinez Moreno: Porque Neruda derramava incontidamente sua amizade como seus versos e ter dela desfrutado não significa de modo algum tê-la merecido. Assim, nos diferentes capítulos de Nerudario, a lembrar os ditos de Pablo Neruda, suas tiradas trocistas, as brincadeiras com que se divertia, a paixão pelos livros e por incunábulos, manuscritos, caracóis, antiguidades, freqüentemente, aparecem os testemunhos que o mostram imensamente solidário para com os amigos e de uma ingênua prodigalidade ao gastar em contas de hotel e dinheiro de bolso de numerosos chilenos e chilenas pouco solventes que vagavam pela Europa – poetas, estudantes, pintores, cineastas, músicos ou qualquer outra coisa – procurando a arte, o amor, a revolução. Nesses testemunhos, também, as emoções que desabrocham diante de um presente recebido ou se dissolvem no desalento de um esperado encontro com amigos que não se concretiza. Delineia-se, então, um perfil instigante, por vezes comovedor e do qual não estão ausentes  algumas joviais travessuras que o tornam  inexpugnável às incursões crítico-interpretativas nem sempre muito conseqüentes. Daí, o valor de certas informações. Por exemplo, a que dá a chave de uma estrofe nerudiana, a penúltima do poema “Botânica”, da sétima parte do Canto General.  José Miguel Varas elucida o mistério que já havia tentado a muitos estudiosos diante de seu sentido simplesmente circunstancial e a confundir, no seu hermetismo divertido, os exegetas e os críticos de seus versos. Conhecedores de poesia e de botânica, diz José Miguel Varas, muitos se aventuraram, amplamente, buscando achar o seu significado obscuro no meio de um poema sem segredos, indagando-se qual seria a relação entre o paico, espécie vegetal, cuja infusão é aconselhada para a dor de estômago, com lâmpadas, desamparo, noite e mar?  Uma vez que o Poeta não se referia à planta aromática que nasce nos campos do Chile mas, a um de seus amigos, cujo apelido era El Paico, preso numa pequena ilha, durante um passeio feito em tarde tormentosa e que se havia posto a fazer sinais, com um velho farol, para ser resgatado, qualquer conclusão a que chegassem os estudiosos estaria longe do que, na verdade, quis dizer. Certamente, uma brincadeira do Poeta, transparente, apenas, para uns poucos iniciados o que o diverte muito, pois como relata, também José Miguel Varas, ele nunca esteve disposto a esclarecer o sentido de seus versos. Quando Margarita Aguirre, autora de Genio y figura de Pablo Neruda, publicado em 1964, pela Editorial Universitária de Buenos Aires, obra considerada, por alguns, como a melhor e mais vibrante biografia do Poeta, lhe perguntava sobre a gênese de seus poemas ou sobre o significado de certos versos misteriosos ou herméticos, Pablo Neruda jamais lhe esclarecia o que quer que fosse, dizendo que os críticos, como Amado Alonzo, viam na sua poesia coisas que ele ignorava e que alguns de seus achados o deixavam perplexo. E, diante das investidas desesperadas da sua biógrafa, recomendava: Invente, comadre, invente.

            São histórias que remetem, exemplarmente, às teorias e métodos aplicáveis às aproximações  de textos literários. Quase sempre, tais teorias e tais métodos se originam da produção oriunda dos países irradiadores de cultura o que lhes confere irrefutáveis qualidades; e, também, quase sempre são usadas em obras pertencentes a um hemisfério que apenas, de longe, se assemelha aos universos nos quais procura se mirar. Trilhas que levam às explicações, elucubrações e interpretações que, embora respaldadas por impecáveis embasamentos teóricos, podem resultar fantasiosas ou vãs, como o revelam as palavras de José Miguel Varas sobre o poeta e seu relacionamento com o mundo a descobrir algo de seus segredos e de seu poetar.

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domingo, 20 de janeiro de 2002

As maiúsculas

            “Do Caderno H”, publicado no Correio do Povo de Porto Alegre, durante muitos anos, é feito de poemas de Mário Quintana e, por vezes, de reflexões sobre o mundo e sobre as eventuais talvez bastante comprometedoras esquisitices dos homens.


            Em 1975, entre dizeres de amor, elucubrações sobre o mistério de viver, constatações a girar em torno do ofício de poeta, no dia 18 de outubro, o seu texto tem por título “A guerra e o desespero”. Que algum momento bélico tenha estado na sua origem é bem possível, pois os habitantes do planeta jamais cessaram de se digladiar. Mas, uma origem ou outra importa pouco (ou infinitamente muito) e suas palavras expressam o que está aquém das simplistas razões justificadoras de conflitos.

            Começa por dizer que as guerras têm aparentemente o fim de destruir o inimigo, para completar, em seguida, que, na verdade, o que elas conseguem é destruir parte da humanidade. E que seria ridículo atribuir qualquer idéia de expurgo à Natureza – com N maiúsculo como, também, se trataria de humor negro, o responsabilizar esse expurgo à insondáveis desígnios da Divina Providência. O que, mais modernamente, poderia ser traduzido por Deus está do nosso lado, frase que, embora possa parecer impronunciável neste século XXI, ainda é passível de ser dita como verdadeira sentença nos atribulados e injustos dias que correm. Sobretudo, demonstrativa de inabaláveis convicções que, no entender de Mário Quintana, nada tem a ver com a lógica ou com alguma idéia até porque, lhe parece, as idéias se mostram escassas. E, além do mais, usar idéias para falar de guerras e guerrilhas é recorrer a um instrumento inadequado.

            Na simplicidade de suas palavras, contidas na exemplar síntese que lhe é habitual, a expressão de um questionamento necessário, senão imprescindível. Porque, na verdade, é difícil, senão impossível, justificar a ação violenta de um país sobre outro, principalmente, se o atacado for pobre e fraco. Assim, qualquer discurso que o fizesse (e faz) só pode ser alimentado de mentiras, de falsidades e de má fé, pretensamente a esconderem dúbios e lucrativos interesses que, certamente, não engana ninguém, mas faz escola entre os que se submetem às palavras de ordem, escritas em maiúsculas – Deixemos as maiúsculas em paz diz Mário Quintana – a visar um significado inconteste.

            Sabe-se, então, que pouco resta a fazer. Para o Poeta (deve-lhe ser penoso ensarilhar armas) há, ainda, uma tentativa: o humor. Um recurso que parece lhe ser caro, pois está presente em muitos de seus versos e textos em prosa. E é com ele que termina “A guerra e o desespero” a se servir de um diálogo: - Então ó homo sapiens, que vais fazer nesta situação desesperada? – Ora, alistar-me... toda opção é um ato de desespero.

Um humor, evidentemente, sem inocência porque, além do sorriso que talvez provoque pelo rótulo que aplica aos homens e pelo inesperado da resposta leva, como prega o dramaturgo italiano Luigi Pirandello, à cristalização do riso. E mais, a um cruel axioma, relacionado a um inerente comportamento humano que não raro, se mostra inquieto e infeliz.

           

domingo, 13 de janeiro de 2002

À luz da manhã


            É um topônimo do Rio Grande do Sul: Catí, um arroio perto da fronteira. Às suas margens, logo após o término da Revolução Federalista, com a vitória do Governo, foi construído um castelo que, sob o comando do coronel João Francisco, se tornou cenário de atrocidades, motivo de terror: Já nada mais se fazia então naquela vasta zona sem consulta ao Catí. O Catí era o Sub-estado. O personagem que dá o título ao romance de Dyonélio Machado, O Louco do Catí (Porto Alegre, Globo, 1942), menino, ainda, foi marcado pelo medo que presenciou nos adultos. Na sua casa, um dia, o pai conversava com amigos sobre casos de injustiça e, de súbito, suspenderam o que diziam para ir espiar no porta e se tranquilizarem. Diante da indagação que ele fez, a mãe respondeu que um menino não fala dessas coisas. –Que coisas, mãe? – Cala a boca: o Catí. E, também, pela cena cruel que viu na praça da cidade, os sobreviventes de uma degola, atados uns aos outros. Ou pelas caras pálidas, fantásticas, em uniformes negros, lendários... que ele até podia ver ao escutar histórias da tentativa de revolta dos oficiais do Cati.

            O trabalho de Márcia Helena Saldanha Barbosa, A paródia em O Louco do Cati (Porto Alegre, EDIPUCRGS, 1994), aproxima essas vivências à alienação que parece reger o comportamento do personagem que dá o nome ao romance e que somente se interrompe quando é dominado pelo medo. Um medo cuja origem está no Catí.

            O romance se inicia com o percurso que ele faz, num bonde de Porto Alegre, até o fim da linha. No armazém, onde vai comprar cigarros e fósforo, se incorpora a um grupo de rapazes que ali está e, com eles, viaja para o litoral. Na verdade, a viagem se prolonga e as circunstâncias o conduzem ao Rio de Janeiro e o trazem de volta ao Catí.

            No itinerário que percorre, os azares e os percalços o deixam imperturbável e apenas se emociona e, sempre, fortemente, se um gesto ou uma palavra o levam e pensar no Catí e sentir-se ameaçado. A primeira vez foi logo no início da viagem. O grupo chegou a Palmares e pediu para dormir no pátio de uma propriedade. De manhã, a construção das casas lhe pareceu um quartel e a figura do dono, grande, grosso, cabeleira lançada para trás, bigodudo... completou-lhe o susto e o fez gritar: –É o Catí!... e fugir para se esconder no mato. Depois, também se assustou ao chegar de caminhão a Araranguá. A polícia esperava o seu companheiro de viagem e o cerco que fez em torno do caminhão, embora pequeno, e a voz dura e precipitada querendo identificar o homem procurado, fez com que ele gritasse, aterrorizado Isto! Isto é o Catí!. No Rio de Janeiro, o levam junto com o companheiro de viagem, já, agora, de desventura, para a cadeia. Ao chegarem, vendo janelas com grades na parede parda, teve um movimento de fuga, quis retroceder, mas foi arrastado e jogado na cela, enquanto grita É o Catí! [..]). Não me levem para o Catí!, pois lhe vem à mente a pergunta que fizera à mãe ao ver um homem preso, obtendo como resposta: –Vão matar ele lá no Catí... Mais tarde, posto em liberdade, viaja de navio, de volta para o sul. Manietado por dois marinheiros, levam um clandestino até o comandante que, dando fim às perguntas e explicações, ordena: –Meta nas grades!. Às suas costas, ouve-se a voz gritada: –Catí. Já em Livramento, na mesa do hotel, mostra-se alheio. Mas, no comentário sobre o mau tempo e sobre os riachos cheios, impedindo a passagem, aparece a palavra Catí, o Catí campo fora e ele estremece e seus olhos se mostram inquietos. E noutra conversa, ainda sobre as cheias dos arroios com a chuva, ao dizer alguém que o Catí era terrível, que espraiava muito, seus olhos fuzilam. E, finalmente, o avião em que viaja deve fazer um pouso forçado, em pleno campo. Descem todos e o comandante, avançando contra o vento, com sua capa preta a esvoaçar, tinha um aspecto lendário. Então disse, atirando as palavras nas costas da figura negra O Catí! O Catí! e desaparece na intempérie. Para ir em busca do Catí nos sítios que lhe são familiares, conhecidos e encontrar o castelo, o pátio, o poço. Caminha sob a chuva até a noite ser substituída pelo dia. E na bonança que vem com ele, o pasto depois da chuva era como se naquele mesmo momento brotasse, verde, do chão e o campo se enchia de flores rasteiras, pequenas, coloridas. Era primeiro, uma mancha comprida, toda branca. E outras manchas, ou amarelas, ou roxas. Sempre, uns pontilhados de florinhas, cada uma de sua cor, florezinhas que corriam para o horizonte e pareciam tiradas naquele instante dum saco ( o Saco Encantado que contivesse todas as flores silvestres) e jogadas à mão sobre o campo. O sol aparece e lava tudo num ouro fluído, quase pálido. A sua frente pode ver as ruínas do Catí, cacos de paredes que mal se equilibram, inundadas pelo sol. Quase sem acreditar, percebe que afugentara a assombração num relâmpago, para sempre! Queria, dali donde estava, defronte do sol, queria – era poder estender umas mãos vingativas de gigante, para sentir nos próprios dedos frisados de luz o esfarelar do pó do Catí que se esboroava – lentamente, através esses anos, numa serenidade melancólica de coisa morta, que apenas vive a vida ultrajada de espectro... Liberto, ele sorri na luminosidade da tarde. Uma tarde de ouro a dourar as águas do arroio, lâmina brilhante, cujo nome, Catí, é eludido. Como esquivada foi, sem deixar de estar presente no relato, nessa grande maestria narrativa que é tão própria de Dyonélio Machado, qualquer alusão aos donos do Poder – era o período do Estado Novo – ou às relações possíveis entre os seus métodos policiais e suas arbitrariedades e aqueles do coronel João Francisco no tratamento dado  aos adversários.

            Assim, os escombros em que se transformaram as paredes do castelo e o livrar-se o Louco do Catí dos medos que, até então, o haviam envelhecido traduzem, nesse romance, escrito por um homem que foi preso por delito de opinião, a inaudita capacidade de, ainda, ter a certeza de uma louca esperança num futuro pleno de luz.


domingo, 6 de janeiro de 2002

A esperança

     No dia 22 de abril de 1973, Carlos Droguett, em Santiago, inicia um romance, Matar a los viejos que, talvez, diz Mauricio Ostria González em artigo publicado na revista Alpha (Osorno, 1995) tenha querido ser um testemunho do processo político vivido pelo Chile no Governo da Unidade Popular. Mas o golpe do dia 11 de setembro daquele ano fez com que o romance se tornasse, então, conforme palavras do ensaísta chileno, homenagem e elegia ao povo sacrificado e, simultaneamente, vitupério e diatribe contra os generais golpistas e seus sequazes.

            Em maio de 1980, em Paris, a obra ficaria concluída, porém só em abril de 2001 será publicada pela LOM de Santiago, o que foi considerado por um crítico chileno ato de valentia, pois, nesses anos que transcorreram, nenhuma editora aceitou publicar uma obra  em cuja dedicatória a Salvador Allende, constava, com todas as letras, os nomes de seus assassinos. Mas, como leões mortos são leões inofensivos, a obra, agora é publicada, cinco anos após o desaparecimento de seu autor, na Suíça, onde vivera exilado após o golpe militar do Chile, em 1973. E com todas as letras que ele escrevera. São quatrocentas e quarenta e sete páginas em corpo de letra muito pequeno, divididas em vinte e cinco capítulos, cujas primeiras palavras constituem os seus títulos. Uma narrativa complexa, no melhor estilo de Carlos Droguett – testemunho e profecia – feita de muitas histórias que aparecem imprecisas e truncadas, alheias à cronologia e que pretendem não deixar perecer, no olvido, os sofrimentos e as mortes que fizeram a História do Chile no período negro, instaurado no dia 11 de setembro de 1973.

            O seu assunto, dir-se-ia, muito simples: em Santiago, os velhos são condenados à morte. Um cadafalso é armado às margens do rio e recebe, cada dia, um punhado daqueles que, de algum modo, foram cúmplices das injustiças que fizeram sofrer os pobres do Chile. São arrebanhados por uma implacável caminhonete que os conduz ao local, onde guardas chegam para disparar e deixar que seus corpos caiam na correnteza: velhos autênticos, bem vestidos e com suas digestões perfeitas, velhos elegantes[..]. Jamais velhos pobres, o que parece normal, porque entre eles, os que não morriam de tuberculose nas planícies do sul, eram eliminados, a pauladas, nas minas de salitre e de carvão, nas estepes do Estreito de Magalhães, nos portos e nas ruas conforme era necessário à política do momento.

            E, assim, a cidade vai ficando liberta dos velhos que a tinham minado desde 1500, povoando-a por todos os lados, no comércio, na indústria, nos bancos, na aduana, nas igrejas, nos teatros, nos trens, nos aviões, nos ônibus [..], possuídos pelo vício, o incenso e o aroma do cinismo. Ameaçados pela justiça e pela vingança dos anjos exterminadores, tentam fugir, tentam se esconder nos lenocínios ou nas sacristias, se fantasiam de velhas ou de leprosos intocáveis; buscam dissimular-se atrás de máscaras, mas nada impede que sejam apanhados. Há o jornalista, explorado, às vezes, free-lancer outras, depois alcaiote da polícia política e delator[...]; há o privilegiado, o intocável que sempre saiu premiado e indene dos atropelos, das catástrofes, das matanças, sempre com vida, com muita vida, sempre com dinheiro, com muito dinheiro; há aqueles que apenas queriam subir na vida e que, na sua inércia e na sua indiferença providencial tinham participado anonimamente, lustros depois, no assassinato, por exemplo, da bonita Ramona Parra, 21 anos, solteira, operária de uma fábrica de tecidos, baleada sem nojo e sem escrúpulos por um tenente [...]. Causadores de sofrimentos, eles vão sendo executados e com o seu desaparecimento, desaparece, também a pobreza.

            Esperança utópica que se depreende de um texto cruel na repetida constatação das maldades e vilanias e falsidades do ser humano na sua busca inescrupulosa da riqueza e do poder. Bela esperança  e, certamente,vã ao acreditar ainda  – e então o título do romance passa a ter o seu exato sentido – que nos jovens poderá estar a salvação. Se os anos não os conspurcassem.  Talvez.