domingo, 17 de junho de 2001

La señorita Lara:retrato de mulher


Ela dá o título ao livro que a editora LOM de Santiago acaba de publicar e se constitui o fio condutor do relato de Carlos, estudante, como ela, dum curso noturno. Mas, sua presença, que faz emergir as lembranças, é sempre breve, diluída, a ceder  lugar para outras, que fluem e, somente dizem respeito ao narrador. Então, ele para dizer da senhorita Lara, ou divaga, ou explica ou adivinha embora, muitas vezes,seja vencido por incontáveis zonas de sombra pois pouco  sabe a seu respeito e nada lhe pergunta. No entanto, as rápidas menções a seu aspecto físico, a seus gestos, às palavras que diz, a seu temperamento, são deveras suficientes para  compor-lhe o perfil e confirmar a maestria de Carlos Droguett na construção de um personagem.

A primeira referência que a ela faz Carlos é que a viu caminhando pelo pátio escuro do colégio. Ainda não lhe diz o nome, não a conhece e, nessa noite, apenas se encontraram e apenas se falaram. Ela, a primeira a se dirigir a ele, indicando, com os olhos, o luto que trazia na lapela, para lhe dizer que deveria tirá-lo para evitar que os outros  também se  tornassem enlutados. Foi, também, ela que lhe fez perguntas: por que estudava  à noite ? O que fazia  durante o dia? Por que lia tanto o mundo,  não seria suficiente, olhar? Sobre ela mesma, no entanto, - reticente, evasiva, escorregadia- não quer dar nenhuma informação sobre sua vida e muito  pouco dirá, além do sonho de ser professora de francês e de querer viajar. Assim, somente a partir do que o narrador observa ou conclui é que irá se deixando  ver nas suas orelhas pequeninhas, nos seus cabelos loiros, curtos, um pouco vermelhos e queimados, nas suas mãos ásperas, como se fossem de tecido áspero, de terra, de madeira na sua elegância desordenada, na sua  vaidade, no ser abertamente fria e melancólica e taxativa nas suas opiniões sobre o relacionamento entre as pessoas, sobre a literatura, a civilização e o suicídio.

            E o suicídio, ela irá tentar. Mas, todas as suas razões, o narrador as desconhecerá ainda que tenha percebido, nesse desejo de ser, embora não o fosse, insolente, brusca, displicente e brutal os seus dezessete anos presos à solidão. Ao saber que ela se deu um tiro na cabeça, ainda que lhe digam que não possui família, nem ninguém no mundo, ele não a visita, não mais a procura, dela sabendo, apenas, o que dizem no colégio: está muito doente, ficou paralítica, cega, o rosto desfeito.

            Passado um tempo, talvez a tenha vislumbrando a caminhar pelo parque. Depois, somente o acaso fará com que  torne a  encontrá-la. 

Convidado para o chá na casa de um amigo, ainda no jardim, antes de entrar, percebe que se abre uma porta e  vê uma jovem mulher, de costas. Seu corpo algo inclinado, agachado no seu trabalho, numa provável doença lhe trouxe lembranças: a cabeça era a  mesma, o cabelo, coberto faceiramente com um pequeno lenço quadriculado, era o mesmo, e o mesmo, esse desenho de pescoço antigamente orgulhoso” Mal teve tempo de se dar conta quem era e ela já se tinha ido. Logo depois, no interior da casa,  apareceu, trazendo a bandeja. Tropeçou num degrau, deixou cair algo e, então, levantou a cabeça, com rapidez e ele reconheceu o gesto, repetindo o de muitos anos atrás e reconheceu-lhe as mãos, as mesmas, porém mais sofridas, levando-o a perguntar-se se mais ásperas. Reconheceu-lhe o rosto altivo,  o cabelo curto, queimado perto da fronte direita onde havia feito o disparo que lhe deixou como lembrança indelével aquela inclinação de passarinho assustado. Não se falaram. Ele, só desejou, desesperadamente, que a patroa, sua anfitriã, não ralhasse pelo que fora ao chão;  ela, apenas  sorriu, com raiva, com doçura. Jovem, sonhara com outra vida,  falara de paixão. Diante dele, trabalhava, ainda, com suas mãos ásperas, muito aquém dos sonhos que tivera.

E é essa imagem que fica da senhorita Lara. Vencida pela vida que tentou rejeitar, submissa a seu destino subalterno mas ainda, dona de seu olhar e de sua vontade.

Personagem ficcional ou presença nos jovens anos do autor chileno a ressurgir de lembranças, quando, exilado na Suissa,  ele procura o seu país na escrita,  a senhorita Lara é, no seu mistério e na sua ambigüidade, um esplêndido retrato de mulher. Que a preciosa técnica narrativa de Carlos Droguett faz nascer ou renascer.

 

 

 

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