domingo, 24 de junho de 2001

Opções

            O título do romance é A Luta e, embora evidente, sobretudo nas páginas finais,  suas últimas linhas, claramente a definem;  a luta que jamais cessa entre exploradores e exploradas, o renhido jogo de interesses inconfessáveis. Na verdade, afirmações relacionadas a uma história que, só em parte, tais conclusões justificam. Ela se passa no Rio de Janeiro do início deste  século. A dona de velho e pequeno hotel familiar  Aos bons ares! situado nos morros de Santa Teresa, tenta encaminhar suas três filhas. Casa a mais velha, Celina, com o pretendente que lhe parece ter melhores condições financeiras, Alfredo Galvão, interrompendo o  breve romance da filha com seu hóspede Gilberto, na época, um jovem pobre. Passados uns poucos anos, infeliz na casa da sogra e movida pelo ciúme da irmã que se faz cortejar por Gilberto, agora um herdeiro rico,   Celina  volta para o hotel onde vivia de solteira. Porém, logo se dá conta que o velho amante da mãe ao  cortejá-la e Gilberto ao fazer juras de amor só a querem como amante . E, decide retornar à segura vida de mulher casada.

            Embora esta  decisão tenha tido origem na sua própria compreensão dos fatos, nesses poucos dias em que se mostrou indecisa e fraca, movidas por interesses opostos, a mãe e a sogra se lançam à luta para coaptá-la.  Degladiam-se, então, a mulher virtuosa e a mulher leviana,  mostrando-se, ambas, igualmente deploráveis nesse perfil maniqueísta que é traçado sem contemplações por uma narradora submissa aos cânones de autores como Balzac, Zola, Flaubert, Eça de Quierós, como o apontou Maria Angélica Guimarães Lopes. Também, apontou, no trabalho intitulado “Desafio materno: A Luta  de Carmen Dolores” introdução ao  romance de Carmen Dolores (pseudônimo de Emilia Moncorvo Bandeira de Melo), agora reeditado pela Editora Mulheres de Florianópolis ( e EDUNISC de Santa  Cruz do Sul) que as verdadeiras protagonistas do romance são as duas matronas: uma a querer obstinadamente que a nora retorne a seu lugar na família; a outra a desejar que a filha opte pelo amante rico, embora tal escolha a leve a assumir uma situação marginal na sociedade.

            Curiosamente, essa dicotomia Bem/Mal, representada na defesa de preservar os valores da família tradicional e na busca da aquisição de riqueza, ainda que por meios escusos, se expressa no conflito entre as consogras. Com sinuosa habilidade narrativa, a romancista vai, aos poucos, lhes acrescentando razões para o definitivo confronto que irá culminar com a supremacia dos bons costumes: a sogra leva a nora e a neta de volta para casa. A mãe, com a face esguedelhada de vencida olha para as outras filhas, escuta dúbias  promessas de uma delas e tem esperanças.

            Tanto Celina, ao voltar para o marido, quanto as suas irmãs, predisposta, uma à vida fácil que lhe paga os luxos e, buscando a outra, um casamento vantajoso que lhe proporcione comodidades, elas se prestam, à perfeição,  ao jogo de interesses inconfessáveis de que fala a romancista,  como parceiras que  somente sabem negociar o corpo. Daí a menção a exploradas e exploradores no término do romance, a sugerir, talvez, uma leitura nas entrelinhas porque, pelo menos, explicitamente, não é a historia de exploradas o que é contado, mas a de mulheres que procuram tirar proveito dos assim chamados exploradores.

domingo, 17 de junho de 2001

La señorita Lara:retrato de mulher


Ela dá o título ao livro que a editora LOM de Santiago acaba de publicar e se constitui o fio condutor do relato de Carlos, estudante, como ela, dum curso noturno. Mas, sua presença, que faz emergir as lembranças, é sempre breve, diluída, a ceder  lugar para outras, que fluem e, somente dizem respeito ao narrador. Então, ele para dizer da senhorita Lara, ou divaga, ou explica ou adivinha embora, muitas vezes,seja vencido por incontáveis zonas de sombra pois pouco  sabe a seu respeito e nada lhe pergunta. No entanto, as rápidas menções a seu aspecto físico, a seus gestos, às palavras que diz, a seu temperamento, são deveras suficientes para  compor-lhe o perfil e confirmar a maestria de Carlos Droguett na construção de um personagem.

A primeira referência que a ela faz Carlos é que a viu caminhando pelo pátio escuro do colégio. Ainda não lhe diz o nome, não a conhece e, nessa noite, apenas se encontraram e apenas se falaram. Ela, a primeira a se dirigir a ele, indicando, com os olhos, o luto que trazia na lapela, para lhe dizer que deveria tirá-lo para evitar que os outros  também se  tornassem enlutados. Foi, também, ela que lhe fez perguntas: por que estudava  à noite ? O que fazia  durante o dia? Por que lia tanto o mundo,  não seria suficiente, olhar? Sobre ela mesma, no entanto, - reticente, evasiva, escorregadia- não quer dar nenhuma informação sobre sua vida e muito  pouco dirá, além do sonho de ser professora de francês e de querer viajar. Assim, somente a partir do que o narrador observa ou conclui é que irá se deixando  ver nas suas orelhas pequeninhas, nos seus cabelos loiros, curtos, um pouco vermelhos e queimados, nas suas mãos ásperas, como se fossem de tecido áspero, de terra, de madeira na sua elegância desordenada, na sua  vaidade, no ser abertamente fria e melancólica e taxativa nas suas opiniões sobre o relacionamento entre as pessoas, sobre a literatura, a civilização e o suicídio.

            E o suicídio, ela irá tentar. Mas, todas as suas razões, o narrador as desconhecerá ainda que tenha percebido, nesse desejo de ser, embora não o fosse, insolente, brusca, displicente e brutal os seus dezessete anos presos à solidão. Ao saber que ela se deu um tiro na cabeça, ainda que lhe digam que não possui família, nem ninguém no mundo, ele não a visita, não mais a procura, dela sabendo, apenas, o que dizem no colégio: está muito doente, ficou paralítica, cega, o rosto desfeito.

            Passado um tempo, talvez a tenha vislumbrando a caminhar pelo parque. Depois, somente o acaso fará com que  torne a  encontrá-la. 

Convidado para o chá na casa de um amigo, ainda no jardim, antes de entrar, percebe que se abre uma porta e  vê uma jovem mulher, de costas. Seu corpo algo inclinado, agachado no seu trabalho, numa provável doença lhe trouxe lembranças: a cabeça era a  mesma, o cabelo, coberto faceiramente com um pequeno lenço quadriculado, era o mesmo, e o mesmo, esse desenho de pescoço antigamente orgulhoso” Mal teve tempo de se dar conta quem era e ela já se tinha ido. Logo depois, no interior da casa,  apareceu, trazendo a bandeja. Tropeçou num degrau, deixou cair algo e, então, levantou a cabeça, com rapidez e ele reconheceu o gesto, repetindo o de muitos anos atrás e reconheceu-lhe as mãos, as mesmas, porém mais sofridas, levando-o a perguntar-se se mais ásperas. Reconheceu-lhe o rosto altivo,  o cabelo curto, queimado perto da fronte direita onde havia feito o disparo que lhe deixou como lembrança indelével aquela inclinação de passarinho assustado. Não se falaram. Ele, só desejou, desesperadamente, que a patroa, sua anfitriã, não ralhasse pelo que fora ao chão;  ela, apenas  sorriu, com raiva, com doçura. Jovem, sonhara com outra vida,  falara de paixão. Diante dele, trabalhava, ainda, com suas mãos ásperas, muito aquém dos sonhos que tivera.

E é essa imagem que fica da senhorita Lara. Vencida pela vida que tentou rejeitar, submissa a seu destino subalterno mas ainda, dona de seu olhar e de sua vontade.

Personagem ficcional ou presença nos jovens anos do autor chileno a ressurgir de lembranças, quando, exilado na Suissa,  ele procura o seu país na escrita,  a senhorita Lara é, no seu mistério e na sua ambigüidade, um esplêndido retrato de mulher. Que a preciosa técnica narrativa de Carlos Droguett faz nascer ou renascer.

 

 

 

domingo, 10 de junho de 2001

La señorita Lara: o narrador


            Já estava ficando grisalho, embora,  talvez, não tivesse idade para tal.  É quando se recorda de Inês Lara, sua colega, nos poucos anos do curso secundário. Ele tinha vinte anos e ela, menos do que isso, quando a viu, caminhando pelo pátio escuro do colégio. Falaram-se, foram para a aula juntos, encontraram-se outras vezes, casualmente, ou não, se amaram e, depois, se perderam de vista por muitos anos . É o que relata La Señorita Lara, livro póstumo de Carlos Droguett, que acaba de ser publicado em Santiago de Chile: as lembranças que dela ficaram até essa última vez em que, apenas,  se deixou ver, não permitindo que houvesse entre Carlos, o narrador e ela, qualquer palavra, qualquer gesto. 

            De fato, parcas foram as palavras que se haviam dito quando jovens  e, deveras, breves os gestos que os uniram. Depois, abruptamente, a separação e o derradeiro encontro. Um quase nada, conduzindo o narrador, que, por ignorar tudo sobre ela ou por não lhe ser muito importante conhecê-la ou o mundo em que vivia,  sinuosamente,  envereda por elucubrações sobre a filosofia, a palavra, as crianças vítimas do desamor; ou  se distrai nas breves descrições da cidade que ao redor dele pulsa e se agita nas sirenes das ambulâncias e dos carros de bombeiro ou  se mostra iluminada no letreiro dos cinemas e teatros ou silenciosa, adormecida, anestesiada nas ruas que, à noite, ostentam apenas placas de bancos, de escritórios, de consultório; ou, se detém no seu pobre cotidiano, vazio e triste, de estudante pobre;   ou descreve uma farmácia com sua estante de remédios e suas vitrinas a ostentar perfumes e vidros com líquidos verdes, avermelhados, azuis e o seu quarto, iluminado por uma clarabóia e onde pontifica o mapa da América e se espalham livros pelo chão; ou menciona as crueldades que fazem a História do Continente com suas ditaduras de Militares na América no Sul,  com suas sangrentas tiranias na América Central;  ou, se  deixa invadir, entre adormecido e desperto, pelas fantasias que o fazem perceber a presença do pai que não está com ele.

            Assim, mais do que a mulher que dá o seu nome ao livro e que ele, como narrador, tem o poder de salvar do olvido, suas palavras, na verdade, buscam nas emoções e nas dúvidas que viveu, refazer o itinerário de sua relação com o mundo nesse tempo em que tinha vinte anos e que a jovem Inês Lara cruzou o seu caminho. E o relato que faz, mostra um itinerário melancólico, triste, cheio de inquietudes e desesperanças no qual não há lugar, ainda, para duradouros amores. Luminoso, somente um momento, único e efêmero: quando tem diante de si um jardim de rosas, de dálias, de margaridas, de violetas. Mas, esse pouco de água perfumada a correr entre as raízes, na qual se reflete a tarde dourada e carmesim, o vôo das abelhas, o canto sussurrado de alguns pombos, o distante e senhorial chamado de alerta e de ameaça de um galo, o passar barulhento das andorinhas, o perfume das flores, transmite uma calma que o enerva e amedronta por levá-lo a sentir-se à mercê da vida e das circunstâncias.

            E, consciente ou não, logo, se deixará levar pela vontade de Inês Lara que, diante dele, na sua condição de serviçal da casa que ele visitava, passa um pano na soleira da porta: com sabedoria, com sumo cuidado, quase como uma cerimônia religiosa. E, ao terminar de fazê-lo, na verdade, ele sabe que está apagando a juventude e as tristezas que haviam vivido, apagando quem eles eram e a essa menina furiosa e sonhadora  que tinha sido, aquela que uma tarde tinha falado de paixões nos livros e na vida [...]”.

            Inês Lara desaparece no interior da casa e a ele, ao narrador, só lhe restam as perguntas não formuladas.

domingo, 3 de junho de 2001

La señorita Lara:o autor

            Em 1973, dois anos antes de sair do Chile para o exílio na Suíça onde iria morrer em 1996, Carlos Droguett publicara El hombre que trasladaba las ciudades, um romance belíssimo cujas surpreendentes e inusuais qualidades literárias, não fossem os olhares míopes da crítica – ou por  aceitar apenas como válidos os parâmetros dos pólos irradiadores de cultura ou porque não se dignam debruçar-se sobre obras que não sejam regidas por esses parâmetros – o situariam como o que de melhor se escreveu, no Continente,  neste século que findou.

            Em Berna, ele continuou escrevendo sem parar, embora, raramente e muito pouco, tenha vindo a publicar, então. Agora, no  seu país, cujo solo já lhe guarda as  cinzas, para lá transportadas,  depois de tantos anos de indiferença, se instaura um  justo interesse por seus textos. E a editora LOM (palavra que no idioma yamana quer dizer sol ) acaba de publicar em Santiago, na sua coleção Narrativa, La Señorita Lara,  sob o rótulo de romance, embora não possua estrutura que justifique tal desinência, como tampouco, lhe conviria o rótulo de conto.

            Terminado em Berna no dia 16 de dezembro de 1979, o texto tem como assunto o relacionamento de jovem estudante de curso noturno com uma colega. Porém, ainda que a Señorita Lara, aparentemente, se constitua a razão de ser  da narrativa, essa voz que relembra a primeira e a última vez que a viu e num dizer em que são tênues as fronteiras do presente e do passado, nesse tempo já ido e que deixa que se  embaralhem  os fatos. 

            Sugerindo lembranças mascaradas na confissão ficcional, o nome do narrador, Carlos, se superpondo ao do autor. Um autor que se deseja presente e não se nega a disso deixar testemunho. Quando confessa não poder dormir desde aquela primavera de 1918 em que lhe morreu a mãe ou, quando menciona o pai, Don Adolfo;  ou, se refere aqueles que lhe deixaram marcas, como o poeta Pablo Rokha ou o emocionaram como Utrillo, Mozarth, Van Gogh, Rembrandt;  e Cecília Valdés, a coitadinha e orgulhosa personagem do romance homônimo de Cirilo Villaverde e Cuba, com seu belo povo, tão raivosamente sofredor e cheio de esperanças. Ou, quando lembra o seu desejo de escrever peças teatrais como os ingleses ou os escandinavos, de que iria se casar em março, de que a tia lhe tricotara um suéter e lhe dera de presente um banquinho.No momento em que  percebe ter, na tristeza, desejos de chorar e chorar e de chamar, depois de tantos anos pela mãe.

            Instauradas tais incursões  aos sentimentos que o habitam, o autor os entremeia nessas pseudos memórias ou nesse pseudo romance e, ao conceder, ao narrador,o itinerário das palavras,   se permite refazer cada emoção de uma volta ao passado que se amparando do real e do fictício, constrói esse mundo rico em certezas e em interrogações que é o mundo de Carlos Droguett.