Causa, pois,
estranheza que num trabalho que engloba dois idiomas tão semelhantes quanto o
espanhol e o português, cujo texto a ser traduzido se apresenta isento de
expressões tipicamente idiomáticas ou de criativos recursos de linguagem,
ocorram e, abundantemente, desnecessários desvios.
É o que ocorre no primeiro capítulo de A festa do bode
(São Paulo, Mandarim, 2000), romance de Mario Vargas Llosa, La fiesta del
chivo traduzido por Wladir Dupont. Comparando o texto português com o
espanhol da edição da Alfaguara (Buenos Aires, 2000), surpreendem, além dos
acréscimos e das eliminações, as inumeráveis substituições de palavra sejam
elas substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, possessivos, demonstrativos.
Quanto às repetidas vezes que ocorrem e quanto ao curioso da opção, valem
alguns registros: assim, as mais numerosas são as relacionadas com os
substantivos: alto falante por bocinas (buzinas); cafajestice
( canalhice) por majaderias
(tolice, baboseira, fatuidade, asneira); ruelas (pequenas ruas) por veredas (calçadas); porcarias
por basuras (lixo), ampla entrada por ancha reja (larga
grade); rangido por gemido; descaramento por desembaraço.
Explicável pelo seu intuito de eludir uma expressão, sem dúvida, julgada
grosseira, mas, evidentemente inaceitável, a substituição de seios por tetas
na expressão em cada um de seus seios
( en cada una de sus tetas). Como inaceitável, a substituição
de sonecas por siesta
pois, é sabido, que a soneca pode ser tirada a qualquer momento e várias
vezes (daí o tradutor ter usado a palavra no plural) enquanto que a sesta, a sua palavra correspondente em
português, é um termo que designa o sono
feito depois do almoço e que em certos países latino-americanos se constitui
uma espécie de instituição.
Quanto
aos adjetivos, igualmente, as substituições ocorridas são todas
inexplicáveis. Mario Vargas Llosa fala,
por exemplo, das mulheres que varren y
recogen en unas bolsas insuficientes
os montes de lixo das calçadas. O
tradutor opta por dizer que as
mulheres varrem e recolhem em sacos muito pequenos, o amontoado de lixo das
calçadas. Na verdade, há uma diferença entre ser insuficiente e ser muito
pequeno, pois, insuficiente significa que
algo está faltando (no caso
faltam sacos de lixo) e muito pequeno,
necessariamente, não quer dizer que seja
insuficientes. Há, também, a expressão un vaso de agua fria
que na tradução aparece como um copo de água gelada. Certamente, não se
trata de mudança de sentido, apenas de
reforçá-lo. Opção inexplicável, pois existe uma palavra idêntica em
português e com idêntico sentido. Noutra
seqüência, as substituições tampouco se
justificam uma vez que existe exatamente
o mesmo termo em português. Ao mencionar o edifício, construído no lugar em que
antes havia uma residência particular, a
personagem o define como ridículo edifício angostísimo de cuatro pisos.
O tradutor irá mudar o adjetivo para insignificante e eliminará o superlativo:
insignificante edifício muito estreito. E, quando é dado ao nome
da personagem Urânia a qualificação de disparatado, embora em português a mesma palavra queira
dizer em que há disparate, ou seja ação
desarrazoada ou absurda, no texto traduzido a opção é por desvairado,
cuja significação é alucinado, enlouquecido.
Na
substituição de verbos, evidentemente, surge mais forte, a mudança de sentido.
Assim, quando o original usa o verbo afrentar na frase afrentar a la antigua Santo Domingo llamándola Ciudad Trujillo a
tradução em lugar do correspondente afrontar, escolhe o verbo ofender.
E, sucessivamente, aparecem os verbos cantar por piar, se arrepender
por desistir e, mais comprometedora, a mudança de enciende
(acende) por ilumina, numa das poucas imagens estilísticas do primeiro
capítulo: El sol enciende las palmeras
por O sol ilumina as palmeiras.
Em nenhum dos
casos, como tampouco naqueles que ocorreram em relação aos demonstrativos,
possessivos e advérbios, houve qualquer razão para justificar a troca de uma
palavra por outra, distanciando, assim, o texto traduzido do original. Como se
o tradutor no caminho percorrido, entre um texto e outro, houvesse esquecido,
por vezes, que ser o mediador ideal deveria
ser a máxima escolhida para nortear o seu trabalho.


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