domingo, 13 de maio de 2001

Nos meandros da tradução (3)

             Muitas palavras são tidas por intraduzíveis. Expressões existem que jamais revelarão o seu exato sentido em outra língua. Para o tradutor, representam um verdadeiro desafio e somente o seu conhecimento exemplar dos idiomas com os quais trabalha e uma  aguçada sensibilidade irão permitir que os inevitáveis desvios entre um texto e outro, se tornem aceitáveis.

Causa, pois, estranheza que num trabalho que engloba dois idiomas tão semelhantes quanto o espanhol e o português, cujo texto a ser traduzido se apresenta isento de expressões tipicamente idiomáticas ou de criativos recursos de linguagem, ocorram e,  abundantemente, desnecessários  desvios.  É o que ocorre no primeiro capítulo de A festa do bode (São Paulo, Mandarim, 2000), romance de Mario Vargas Llosa, La fiesta del chivo traduzido por Wladir Dupont. Comparando o texto português com o espanhol da edição da Alfaguara (Buenos Aires, 2000), surpreendem, além dos acréscimos e das eliminações, as inumeráveis substituições de palavra sejam elas substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, possessivos, demonstrativos. Quanto às repetidas vezes que ocorrem e quanto ao curioso da opção, valem alguns registros: assim, as mais numerosas são as relacionadas com os substantivos: alto falante por bocinas (buzinas); cafajestice ( canalhice)  por majaderias (tolice, baboseira, fatuidade, asneira); ruelas (pequenas ruas)  por veredas (calçadas); porcarias por basuras (lixo), ampla entrada por ancha reja (larga grade); rangido por gemido; descaramento por desembaraço. Explicável pelo seu intuito de eludir uma expressão, sem dúvida, julgada grosseira, mas, evidentemente inaceitável, a substituição de seios por tetas na expressão em cada um de seus seios ( en cada una de sus tetas). Como inaceitável, a substituição de sonecas por siesta   pois, é sabido, que a soneca pode ser tirada a qualquer momento e várias vezes (daí o tradutor ter usado a palavra no plural) enquanto que  a sesta, a sua palavra correspondente em português,  é um termo que designa o sono feito depois do almoço e que em certos países latino-americanos se constitui uma espécie de instituição.

            Quanto aos adjetivos, igualmente, as substituições ocorridas são todas inexplicáveis.  Mario Vargas Llosa fala, por exemplo, das mulheres que varren y recogen en unas bolsas insuficientes os montes de lixo das calçadas.  O tradutor opta por dizer que  as mulheres  varrem e recolhem em sacos muito pequenos, o amontoado de lixo das calçadas. Na verdade, há uma diferença entre ser insuficiente e ser muito pequeno, pois, insuficiente significa que  algo está  faltando (no caso faltam sacos de lixo) e  muito pequeno, necessariamente, não quer dizer que seja  insuficientes. Há, também, a expressão un vaso de agua fria que na tradução aparece como um copo de água gelada. Certamente, não se trata de mudança de sentido, apenas de  reforçá-lo. Opção inexplicável, pois existe uma palavra idêntica em português e com  idêntico sentido. Noutra seqüência, as substituições tampouco  se justificam uma vez que existe  exatamente o mesmo termo em português. Ao mencionar o edifício, construído no lugar em que antes  havia uma residência particular, a personagem o define como ridículo edifício angostísimo de cuatro pisos. O tradutor irá mudar o adjetivo para insignificante e eliminará o superlativo: insignificante edifício muito estreito. E, quando é dado ao nome da personagem Urânia a qualificação de disparatado,  embora em português a mesma palavra queira dizer   em que há disparate, ou seja ação desarrazoada ou absurda, no texto traduzido a opção é por desvairado, cuja significação é alucinado, enlouquecido.

Na substituição de verbos, evidentemente, surge mais forte, a mudança de sentido. Assim, quando o original usa o verbo afrentar na frase afrentar a la antigua Santo Domingo llamándola Ciudad Trujillo a tradução  em lugar do correspondente  afrontar, escolhe o verbo ofender. E, sucessivamente, aparecem os verbos cantar por piar, se arrepender por desistir e, mais comprometedora, a mudança de enciende (acende) por ilumina, numa das poucas imagens estilísticas do primeiro capítulo: El sol enciende las palmeras  por O sol ilumina as palmeiras.

Em nenhum dos casos, como tampouco naqueles que ocorreram em relação aos demonstrativos, possessivos e advérbios, houve qualquer razão para justificar a troca de uma palavra por outra, distanciando, assim, o texto traduzido do original. Como se o tradutor no caminho percorrido, entre um texto e outro, houvesse esquecido, por vezes, que ser o mediador ideal  deveria  ser a máxima escolhida para nortear o seu trabalho.

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