domingo, 27 de maio de 2001

O som da flauta


            Sua obra se inscreve no “criollismo”, corrente literária que surgiu nos inícios do século XX e, segundo Jean Franco, se dirige às classes urbanas, no desejo, moralista, de remediar a situação social que condenava as zonas rurais ao atraso e à pobreza. É uma vasta obra, constituída de contos e romances, textos evocativos, histórias para crianças e ensaio. Seu  pequeno livro, Hombre-flauta y otros cuentos, que abriga cinco relatos, apareceu, em 1988, pela Ediciones de la Banda Oriental de Montevidéu, num momento em que o “criollismo” parecia estar em vias de extinção.

            O conto que dá o título ao volume, já publicado em outra coletânea, De sol a sol, data dos primeiros anos da década de cinqüenta. Como outros, se trata de uma narrativa – e alguém já o assinalou – que se mantém fiel à realidade que Julio C. Da Rosa escolheu para a sua elaboração literária: um espaço interiorano, o da cidade de Treinta y Três e seus arredores, habitado por gente simples e de limitados horizontes. O relato se inicia com lembranças daqueles que o conheceram bem pequeno:  um pirralhinho pelo qual ninguém daria dois vinténs. E sempre com a flauta na boca, nas tardes de domingo, muito perto da banda que ia tocar na praça. Logo, o narrar desse passado a partir de seu pobre nascimento (Parece meio anormalzinho, comadre.), de sua pobre infância, das horas perdidas nos bancos da escola, até essa descoberta dos primeiros sons tirados da flauta e de todos os outros que se foram seguindo e que lhe deram um inesperado lugar no mundo: o de músico de todas as festas, de todos os bailes. Depois, o progresso chegando na cidade, com seus músicos profissionais, o foi enxotando pouco a pouco do lugar que tinha sido sempre o seu. Já velho, caminha pelas ruas, vendendo bilhetes de loteria. Só à tardinha, ao voltar para casa, se põe a tocar, horas perdidas, repassando o velho repertório.

            História de uma vida, apenas iluminada pela paixão que se nutre de muito pouco - correr atrás de qualquer um que assobiasse, para reproduzir-lhe os sons, procurar uma casa com vitrola ou a proximidade da banda de música para ouvir e tirar de ouvido uma peça musical era o máximo que podia conseguir. No entanto, pela estrutura narrativa, sabiamente combinando passado e presente, pelos breves traços fixando no tempo a cidade que se depois se transforma, pelos preciosos achados de estilo, Julio C. Da Rosa faz dessa história um texto exemplar. E de grande lirismo quando se detém na figura da mãe .Ela não tem nome, nem história, apenas solidão e pobreza  e o que a retrata é esse poder imenso de sentir. Um amor desesperado e triste diante do filho torto e de cabeça enorme desproporcional, diante de seu tartamudear de tantos anos. Um sofrimento que se agiganta, na tarde em que a professora, com muitos e longos rodeios, a faz compreender, dizendo dos anos vãos e que ainda havia razões para chorar. E na imensa emoção quando da flauta que o filho soprava e soprava, um dia, saem as notas da canção de ninar, o único que ela lhe havia cantado: Mais suavezinho que um fio de seda ela sentiu que a envolvia. Como um quase nada. Algo como a luz da lua que toca, mas que não se sente. E vindo de muito longe, como a luz da lua. De muito além da vida e do mundo e de tudo (...). Dormiu no seu som mal desenhado a dois dedos, sobre o silêncio da noite.

            Nas entrelinhas do relato, fragmentos da realidade dos que foram relegados, desde sempre, ou pelos seus semelhantes ou pela estrutura social que os condena, sem salvação, a viver na pobreza, alijados de tudo, até mesmo dos sonhos mais singelos.

domingo, 20 de maio de 2001

Da palavra e da cor



 
            Quando, em 1995, Orixás: pintura e poesia foi publicado, a edição logo se esgotou. Passados cinco anos, a prefeitura de Porto Alegre fez surgir a sua segunda edição, uma pequena preciosidade, feita das pinturas de Pedro Homero e dos versos de Oliveira Silveira.

            A partir de suas vivências e, tendo como fonte de pesquisa O batuque no Rio Grande do Sul de Norton F. Corrêa (publicado pela Editora da Universidade do Rio Grande do Sul, em 1992), Pedro Homero criou uma série de lindíssimas interpretações dos orixás: Bará, Ogum, Iansã, Xangô, Obá, Odé, Otim, Ossanha, Xapanã, Oxum, Iemanjá, Oxalá. Estilizadas figuras humanas, sempre em movimento, rodeadas de seus símbolos – círculos, algum elemento vegetal ou um pássaro – vibrando nas suas cores sem nuanças: vermelho, preto, verde, azul. A ilustração de cada orixá é acompanhada de um texto, dizendo de seus poderes, sua cor e seus símbolos, os vegetais e os animais que rege assim como a saudação e os números que lhe são pertinentes. E, entrelaçando-se a cada figura, os versos de Oliveira Silveira. A refazer com palavras, o retrato do orixá (rainha negra e com seu facão,/sete navalhas bem afiadas, cântaro e água da fonte), a mencionar-lhes os dons (Vento que espalha pólen e semente / ou traz tempestade, fecunda  / e destrói ,/ empurra nuvem, move árvore, agita, turva, limpa o ar[...], da erva e do chá / e da boa saúde). Ou, a lembrar raízes nesse batuque/tuque/tuque/todo muque/no tambor, som que se eleva como um chamado que, primeiro, bate no próprio peito. Raízes que para ele, gaúcho de Rosário do Sul, estão nesse Rio Grande onde ogum é filho de santo de bombacha e nesse espaço incógnito que ficou para trás e fez dele e de todos os negros, caules decepados.

            Mas a vida, a seiva que, poeta, ele entende como este som de cratera / que a gente vai fundo buscar emerge de seus versos e das formas e cores da pintura de Pedro Homero. Beleza e beleza num testemunho comovente e enriquecedor.

domingo, 13 de maio de 2001

Nos meandros da tradução (3)

             Muitas palavras são tidas por intraduzíveis. Expressões existem que jamais revelarão o seu exato sentido em outra língua. Para o tradutor, representam um verdadeiro desafio e somente o seu conhecimento exemplar dos idiomas com os quais trabalha e uma  aguçada sensibilidade irão permitir que os inevitáveis desvios entre um texto e outro, se tornem aceitáveis.

Causa, pois, estranheza que num trabalho que engloba dois idiomas tão semelhantes quanto o espanhol e o português, cujo texto a ser traduzido se apresenta isento de expressões tipicamente idiomáticas ou de criativos recursos de linguagem, ocorram e,  abundantemente, desnecessários  desvios.  É o que ocorre no primeiro capítulo de A festa do bode (São Paulo, Mandarim, 2000), romance de Mario Vargas Llosa, La fiesta del chivo traduzido por Wladir Dupont. Comparando o texto português com o espanhol da edição da Alfaguara (Buenos Aires, 2000), surpreendem, além dos acréscimos e das eliminações, as inumeráveis substituições de palavra sejam elas substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, possessivos, demonstrativos. Quanto às repetidas vezes que ocorrem e quanto ao curioso da opção, valem alguns registros: assim, as mais numerosas são as relacionadas com os substantivos: alto falante por bocinas (buzinas); cafajestice ( canalhice)  por majaderias (tolice, baboseira, fatuidade, asneira); ruelas (pequenas ruas)  por veredas (calçadas); porcarias por basuras (lixo), ampla entrada por ancha reja (larga grade); rangido por gemido; descaramento por desembaraço. Explicável pelo seu intuito de eludir uma expressão, sem dúvida, julgada grosseira, mas, evidentemente inaceitável, a substituição de seios por tetas na expressão em cada um de seus seios ( en cada una de sus tetas). Como inaceitável, a substituição de sonecas por siesta   pois, é sabido, que a soneca pode ser tirada a qualquer momento e várias vezes (daí o tradutor ter usado a palavra no plural) enquanto que  a sesta, a sua palavra correspondente em português,  é um termo que designa o sono feito depois do almoço e que em certos países latino-americanos se constitui uma espécie de instituição.

            Quanto aos adjetivos, igualmente, as substituições ocorridas são todas inexplicáveis.  Mario Vargas Llosa fala, por exemplo, das mulheres que varren y recogen en unas bolsas insuficientes os montes de lixo das calçadas.  O tradutor opta por dizer que  as mulheres  varrem e recolhem em sacos muito pequenos, o amontoado de lixo das calçadas. Na verdade, há uma diferença entre ser insuficiente e ser muito pequeno, pois, insuficiente significa que  algo está  faltando (no caso faltam sacos de lixo) e  muito pequeno, necessariamente, não quer dizer que seja  insuficientes. Há, também, a expressão un vaso de agua fria que na tradução aparece como um copo de água gelada. Certamente, não se trata de mudança de sentido, apenas de  reforçá-lo. Opção inexplicável, pois existe uma palavra idêntica em português e com  idêntico sentido. Noutra seqüência, as substituições tampouco  se justificam uma vez que existe  exatamente o mesmo termo em português. Ao mencionar o edifício, construído no lugar em que antes  havia uma residência particular, a personagem o define como ridículo edifício angostísimo de cuatro pisos. O tradutor irá mudar o adjetivo para insignificante e eliminará o superlativo: insignificante edifício muito estreito. E, quando é dado ao nome da personagem Urânia a qualificação de disparatado,  embora em português a mesma palavra queira dizer   em que há disparate, ou seja ação desarrazoada ou absurda, no texto traduzido a opção é por desvairado, cuja significação é alucinado, enlouquecido.

Na substituição de verbos, evidentemente, surge mais forte, a mudança de sentido. Assim, quando o original usa o verbo afrentar na frase afrentar a la antigua Santo Domingo llamándola Ciudad Trujillo a tradução  em lugar do correspondente  afrontar, escolhe o verbo ofender. E, sucessivamente, aparecem os verbos cantar por piar, se arrepender por desistir e, mais comprometedora, a mudança de enciende (acende) por ilumina, numa das poucas imagens estilísticas do primeiro capítulo: El sol enciende las palmeras  por O sol ilumina as palmeiras.

Em nenhum dos casos, como tampouco naqueles que ocorreram em relação aos demonstrativos, possessivos e advérbios, houve qualquer razão para justificar a troca de uma palavra por outra, distanciando, assim, o texto traduzido do original. Como se o tradutor no caminho percorrido, entre um texto e outro, houvesse esquecido, por vezes, que ser o mediador ideal  deveria  ser a máxima escolhida para nortear o seu trabalho.

domingo, 6 de maio de 2001

Nos meandros da tradução (2)


             La fiesta del chivo, o longo romance de Vargas Llosa, publicado pela Alfaguara no ano 2000, nesse mesmo ano apareceu no Brasil numa edição da Mandarim de São Paulo. Trata-se de uma narrativa sem surpresas embora o romancista peruano use o recurso de construí-la em três tempos. Num deles, o relato é centrado na figura de Urania, dominicana que volta a seu país por um tempo muito breve e vai relembrando o seu passado nessa caminhada que faz pelas ruas da cidade até a casa do pai com quem se reencontra após trinta anos de silêncio. No outro, o relato se ocupa do último dia de Rafael Leônidas Trujillo Molina, desde o seu despertar, pontualíssimo, às três e cinqüenta até o derradeiro gesto, tentando se defender quando uma ráfaga de metralhadora o atinge no meio do percurso para San Cristobal. No terceiro, trata-se da espera pelo carro de Trujillo no trajeto conhecido por aqueles que planejaram o atentado que lhe tirou a vida.

            Igualmente sem surpresas é o seu texto que se presta, então, facilmente, à reprodução em outro idioma. No entanto, comparando o texto original com o seu correspondente em português, notam-se vários tipos de desvios que não foram condicionados  pela estrutura lingüística de um ou outro texto:   mudança de tempos verbais, acréscimos ou substituições de palavras, eliminações de outras. No caso das eliminações de palavras, na verdade, elas não sobressaem pelo seu número - no primeiro capítulo, bastante restrito – mas pelo fato de não deixar de ser curioso que palavras sejam eliminadas, ocasionando mudanças de sentido, sem que haja um motivo plausível para isso. Assim, ao registrar os odores que impressionam Urania ao caminhar pelas ruas da cidade, o texto espanhol fala de un aroma denso, indefinible,  tropical, a resinas y matorrales en decomposición. Esta última expressão, sendo eliminada do texto português  faz do aroma algo de agradável o que parece não ter sido a intenção do autor ao usar a expressão en decomposición.  Na mesma seqüência, onde o texto espanhol registra que chisporrotean dos sartenes, o texto português elimina a precisão do original ao registrar crepitam frigideiras que pode, ser, nesse plural, muito mais do que duas. Mais adiante, quando Urânia se interroga sobre essa opção de voltar à ilha depois de  ter jurado nunca mais nela por os pés, a frase em espanhol diz que ela quer provar a si mesma  poder caminar por las calles de esta ciudad que ya no es suya. Em português, foi eliminado o advérbio   ( andar pelas ruas desta cidade  ) e com isso, levando à mudança de sentido  pois no original a cidade foi de Urânia e não é mais o que é diferente de não ser sua cidade e nunca ter sido.

            Como em vários outros casos do primeiro capitulo,   essas eliminações aparentemente, se constituem breves falhas que não chegam  a distorcer, em  profundidade, o sentido primeiro  do texto. São, no entanto, dignas de nota por se mostrarem gratuitas.  E, aliadas às eliminações e, sobretudo, às substituições   de palavras,  se constituem inaceitáveis opções diante do  texto que, expressão do autor, assim, deve ser respeitado.