domingo, 28 de março de 1999

Amalia, romance histórico. A suprema aspiração


                                                                Amalia é o primeiro romance argentino. Foi escrito em
                                                          1851, na cidade de Montrevidéu onde seu autor, José Mármol, 
                                                           se refugiara da ditadura de JuanManuel Rosas.
                                                                 
                                                          
           Quando foi preso por se opor à ditadura de Juan Manuel Rosas, José Mármol ainda era estudante. Com palitos de erva mate carbonizados na chama da vela, escreveu, nas paredes da cela, seus primeiros versos contra o ditador. Mais tarde, exilado, em Montevidéu, num longo romance romântico, continuou sua crítica ao tirano. A par dos amores de Amalia e Eduardo, estão presentes, nessas páginas, as crenças mais profundas de um homem que lutou, com atos e com palavras, pela liberdade de sua pátria o quê era, no seu entender, libertá-la daquele que a conduzia. Entremeados às seqüências narrativas e descritivas do romance, verdadeiros anátemas contra Rosas e seus esbirros; por vezes, considerações sobre a plebe que o segue ou alguma idéia para a reconstrução da sociedade quando ela se veja livre do tirano. Assim, Rosas é o messias de sangue, esperado pela plebe; seu chefe de polícia, uma guilhotina humana e seus seguidores essa multidão obscura e prostituída que ele tinha levantado do lodo da sociedade, a plebe argentina, filha fanática da superstição espanhola para entoar hinos de morte em louvor do absolutismo e da ignorância. Uma plebe ignorante que buscava, diz o romancista, o momento para reagir contra a ordem e a civilização.

           No capítulo VIII da segunda parte do romance, reúnem-se, às escondidas, vinte e um jovens dos trinta e quatro convocados por Daniel Bello, personagem que, no relato, expressa as idéias do autor. Ele lhes propõe criar uma associação que reúna aqueles que desejam se antepor a Rosas, acreditando que só a união possibilitará  sistematizar a defesa, anulando a situação de vítimas que será a de cada um, se permanecerem isolados uns dos outros. Propõe que fiquem unidos para se defender da Mazorca ( assim era identificada a Sociedade Popular Restauradora, criada em 1833 para consolidar o poder de  Juan Manuel Rosas,  que eliminava os seus opositores, de preferência, publicamente), para esperar pela revolução, para enforcar o tirano. Num olhar para o futuro que, livre de Rosas, se vislumbra próximo, a crença na associação como um caminho para organizar a nova sociedade que irá se erguer: associação na política para dar-lhe liberdade e leis; no comércio, na indústria, na literatura e na ciência para dar-lhe ilustração e progresso; nas doutrinas do cristianismo para conquistar a moral e as virtudes que lhe faltam. É um esboço de programa no qual José Mármol sintetiza o que não deixa de mencionar ao longo das páginas de seu romance: a ignorância e a falta de princípios do povo argentino na época da ditadura e que se contrapõe à cultura e à integridade da elite, formada pelos unitários, opositores de Rosas. Em Amalia, eles se distinguem dos federais, os partidários de Rosas, pela fisionomia e pelo modo de vestir, pela inteligência e pela cultura, principalmente por esse desejo de se espelhar na Europa o que é muito bem traduzido por Daniel Bello quando pretende, para o seu país, o ser forte, o ser poderoso o ser europeu na América.

                       

                       

domingo, 21 de março de 1999

Amalia, romance histórico.O esboço da perfeição.


Amalia é o primeiro romance argentino. Foi escrito em 185l, na cidade de Montevidéu, onde seu autor, José Mármol, se refugiara da ditadura de Juan Manuel Rosas. 

          Amalia Saenz de Olabarrieta, jovem viúva de vinte e dois anos, leva uma vida solitária em sua casa ajardinada nos arredores da cidade. De Tucumán onde nascera, como nasce uma açucena ou uma rosa transbordando beleza, louçania e fragrância”, fora para Buenos Aires, querendo deixar para trás lembranças tristes. No romance que leva seu nome, tem a função de viver um grande amor com Eduardo Belgrano, opositor do homem que estava a governar, com tirania, o país. Ferido pela polícia de Rosas, que lhe intercepta os passos na tentativa de fuga para a outra margem do Prata, é levado para se esconder na casa de Amalia. A convivência os envolve num sentimento muito forte cujo grande obstáculo é a situação de perseguido político em que se encontra Eduardo Belgrano, o que irá definir os seus destinos. Mesclam-se, ambos, às figuras que pertencem à vida real – Juan Manuel Rosas, sua cunhada María Josefa Escurra, Manuela, filha do tirano, Bernardo Victorica, o chefe de Polícia – para se constituírem personagens que se inserem, à perfeição, nos cânones românticos.

          Amalia é descrita com cuidado, assim como o cenário em que se move que prima pelo bom gosto e fineza que só os privilegiados pela fortuna e pelo berço podem possuir. Ela é belíssima e belo tudo o que a rodeia. No primeiro capítulo da segunda parte do romance, José Mármol a apresenta no esplendor de um descuidado momento de devaneio. Enaltecida, mais que uma mulher, parece uma deusa de beleza inquietante, habitada por harmonias de alma que fazem dela uma dessas criaturas que reúnem em si aquela dupla herança do céu e da terra que consiste nas perfeições físicas e na poesia ou abundância de espírito na alma.

            Depois, seus atos lhe completarão o retrato: será altiva no trato com os colaboradores do tirano sob cuja égide vivem todos, permitindo-se demonstrar suas convicções políticas; será a mulher enamorada que enfrentará o medo para se unir ao homem amado e, a vaidosa, que escolherá vestidos para agradá-lo. Será profundamente religiosa ao se inclinar para pedir nas suas orações e cheia de coragem diante do perigo quando julga possível , com o seu corpo, proteger Eduardo Belgrano dos punhais assassinos.

            Verdadeiro ser de eleição, boa, rica e generosa, no romance de José Mármol, além de sua história amorosa, pretexto para falar da ditadura de Juan Manuel Rosas, Amalia (como também Eduardo Belgrano, Daniel Bello, Florencia Dupasquier) representa a fidalguia dos bem nascidos que se opõem aqueles que, de origem humilde, alcançam posições de destaque na sociedade da época.

             Assim, no seu quarto, primam os objetos de cristal e de ouro, os cetins, os veludos, muitos vindos da França e da Itália. No baile em que deve ir para afastar suspeitas, se mostra com sóbria elegância, enquanto as outras, as mulheres partidárias do tirano, se apresentam sob o signo de um gosto vulgar como a que usa um vestido vermelho onde os enfeites são amarelos e negros. Então, quando Amalia se veste com roupas vindas da França ou quando lê os românticos franceses e vive isolada dessa sociedade emergente que ela rejeita, seu papel, no romance, é mais amplo do que aquele atribuído a uma estereotipada personagem ficcional da época. É Amalia uma peça preciosa da dicotomia evidente que, no relato, separa os federais (partidários de Rosas) dos unitários (seus opositores): a civilização, todo um modo de pensar, ser e agir, segundo os moldes europeus e a considerada barbárie, expressão autêntica e espontânea dos que desses modelos ficaram alheios.

domingo, 14 de março de 1999

Amalia, romance histórico. Retrato de Juan Manuel Rosas

                                                                       Amalia é o primeiro romance argentino.
                                                           Foi escrito em 185l, na cidade de Montevidéu onde
                                                           José Mármol, seu autor, se refugiara da ditadura de
                                                           Juan Manuel Rosas. 

          Foi dito que jamais se escrevera sobre pessoa alguma versos tão ferozes quanto os de José Mármol contra Juan Manuel Rosas. Por isso, o chamaram de verdugo poético do tirano. E seu verdugo continuou sendo ao escrever Amalia, romance em que pretende documentar a época dramática de uma ditadura que lhe fez sofrer a prisão e o exílio.

          A primeira versão do romance foi publicada um pouco antes da batalha de Monte Caseros, perdida por Juan Manuel Rosas, derrota que o fez exilar-se na Inglaterra. Pode, então, José Mármol retornar à pátria e, consultando os arquivos da polícia rosista, anexar a seu romance textos de atas de reunião, de notícias de jornal que descrevem práticas da ditadura e tornam mais convincente o conteúdo ficcional de Amalia onde se inscrevem minuciosas descrições de cenas do cotidiano e personagens não ficcionais. Primordial, na sua função narrativa é a figura de María Josefa Escurra, cunhada do tirano. Imprescindível para a compreensão dos fatos históricos, a de Juan Manuel Rosas. Seu opositor e sua vítima, José Mármol  constrói-lhe o perfil como um romancista que, além de relatar suas ações, lhes conhece os motivos. Diz que Juan Manuel Rosas deixava sempre na dúvida seus subalternos, porque se eles se sentissem com medo fugiriam dele e se adquirissem confiança se tornariam cheios de si. Também, que não se emociona com triunfos ou com reveses mas que é determinado nos seus métodos de domínio: um trabalho inaudito, empregado com perseverança durante muitos anos para destruir todos os vínculos sociais, pondo na anarquia as classes, as famílias e os indivíduos [...].  Para exercer o poder, Juan Manuel Rosas institui a delação como virtude cívica e a sua constante prática acaba por enfraquecer a força do povo ao lhe cortar os laços de comunidade e criar uma sociedade de indivíduos isolados. A tais afirmações do romancista se acrescentam aquelas que descrevem o tirano como um filho insolente aos quinze anos, um filho fugitivo aos dezesseis, mais tarde um gaúcho ingrato para com seus benfeitores e depois um bandido rebelde às autoridades de seu país. Ou que o mostram no seu acampamento, inquieto na noite, mudando de lugar e de escolta para que todos ignorassem onde estava. Sempre, ao longo de toda a narrativa, seu nome ligado ao epíteto de tirano, de bandido, de selvagem.

          Homem de ideais, o escritor vê nele um usurpador de liberdades, o instaurador da barbárie e, no seu romance, em que a divisão das forças do bem e do mal é maniqueísta, Juan Manuel Rosas é o maléfico ser que se opõe à superioridade de uma elite informada e culta, voltada para a Europa e para os seus valores. José Mármol, poeta ou romancista, não o perdoa.

 

 

domingo, 7 de março de 1999

Amalia, romance histórico. A natureza


                                                                       Amalia é o primeiro romance argentino. Foi
                                                           escrito em 1851, na cidade de Montevidéu, onde
                                                           José Mármol, seu autor, se refugiara da ditadura de
                                                           Manuel Rosas. 
 
          Amalia é um romance de ação. Salvo por um amigo, da polícia de Rosas, Eduardo Belgrano deve se esconder para não ser morto. Na casa de Amalia Sáenz de Olabarrieta, em que recebe abrigo, é por ela cuidado de seus ferimentos e a convivência faz com que se apaixonem. Numa tarde, são surpreendidos pela visita da cunhada do tirano que nele reconhece aquele que tinha escapado da morte. Eduardo Belgrano deve outra vez fugir e procurar abrigo alhures para tentar novamente o refúgio em Montevidéu. No dia de seu casamento com Amalia, véspera da partida para a outra margem do Prata, a polícia irrompe na casa onde se escondiam e na violência do confronto, ele perde a vida.

           No relato desse trágico amor, pretexto para documentar a vida em Buenos Aires sob a tirania de Juan Manuel Rosas, estão presentes todos os artifícios românticos: lágrimas, agouros, juras, tristezas, religiosidade, perfeições maniqueístas. E a obrigatoriedade de se curvar à natureza o que significa, nesse romance de José Mármol, o referir-se, umas poucas vezes, ao amanhecer ou ao anoitecer, momentos cambiantes que ele, como poeta dos versos profusamente líricos de Armonías, fixa com  expressões exuberantes que, mais do que nada, servem para definir o que se passa na  infeliz Buenos Aires. Para ele, uma cidade em que a luz do sol não serve senão para tornar mais visível a lôbrega e terrível noite de sua vida, sob cujas sombras se revolviam em caos, as esperanças e o desengano, a virtude e o crime, o sofrimento e o desespero. Opondo-se a essas trevas determinadas pelo tirano, ao silêncio sepulcral da cidade, longe, no horizonte, uma vida pujante a desabrochar. Breve pausa na narrativa, as referências que se sucedem a delinear a alegria, emergindo do relinchar dos potros selvagens na solidão do pampa, da correria dos touros em busca da água gelada dos arroios, do saltar dos pássaros nas copas das árvores, do abrir das pétalas coloridas em meio ao trevo dos campos. Momento luminoso em Amalia, perfeitamente claro na sua intenção de mostrar mais sombria e cruel a atmosfera reinante em Buenos Aires nesse repetir de misérias e humilhações que viviam os opositores de Rosas.


          Porque foi essa a intenção de José Mármol. E o ideário romântico do qual se serviu, vigente na época em que escreveu o seu romance, foi-lhe precioso na medida em que lhe permitiu criar personagens convictos de seus ideais patrióticos, servir-se de uma linguagem grandiloqüente, comprometida com suas razões e tratar a natureza como algo relacionado ao mundo que deseja retratar. Assim, em Amalia, ela não estará em acorde ou em discrepância com o sentir dos homens como indivíduo, o que é usual nas obras românticas, mas com o que se passa na cidade onde impera a tirania e com os homens a esta tirania submetidos: A primavera começava para a Natureza. Mas, ai!,o âmbar da flor ia se extinguir entre o cheiro de sangue. O campo ia perder seu manto de esmeralda com as manchas de sangue que nem o passar dos anos apagaria. O arroio ia levar  sangue na sua corrente. A luz do dia a se envolver entre o vapor de sangue. E os astros que mancham o manto celeste de Deus,  iam quebrar seu tênue raio sobre os charcos de sangue.