domingo, 25 de outubro de 1998

Carlos Droguett:História e ficção 4

           Francisco de Aguirre foi designado por Pedro de Valdivia, governador de La Serena e de Barco.  No documento, datado de 8 de outubro de 1551, era revogado o poder e o cargo de Juan Núñez de Prado, fundador e governador de Barco.
           Quando, à frente de uns sessenta ou setenta homens, Francisco de Aguirre chega à cidade  de Barco, Juan Núñez de Prado estava ausente. Ainda assim, a primeira providência do recém chegado foi determinar a sua detenção e a de seus capitães e mandar soldados a sua procura. Assim consta em Historia de la Argentina, de Vicente Sierra (Buenos Aires, Unión de Editores Latinos,I).

           Em El hombre que trasladaba las ciudades, romance de Carlos Droguett, publicado pela Noguer de Barcelona em 1973, o relato da chegada de Juan Núñez de Prado na cidade -  ao voltar de sua excursão exploratória pelos arredores  - e sua prisão são narrados no quarto capítulo. Aparece, diz o narrador, envolto no vento. Um verbo na terceira pessoa do plural, viam, introduz a sua imagem: um advérbio, nitidamente, completa o sentido do verbo. Então, viam nitidamente, à tênue luz das estrelas, primeiro, os cascos do cavalo. Logo, ele, o capitão, enrolado duas vezes na capa, trazendo ramos, árvores, arbustos, flores, folhas novas, folhas verdes recém nascidas, recém crescidas, certamente belas e tranquilizadoras. Outra vez, referência ao cavalo, agora, a sua cabeça imóvel. E a surpresa de Francisco de Aguirre ao reconhecê-lo nesse cavaleiro que chegava.


Juan Núñez de Prado vem sonolento e assim, sonolento e entediado responde e pergunta coisas, risonho. Sem transição, separada apenas por uma vírgula, se acrescenta a seqüência que diz do destino dado aos padres da cidade: a prisão. E, no parágrafo seguinte, a voz de Juan Núñez de Prado, já então, preso e amarrado no seu quarto. Dirige-se à Aguirre e quer saber porque foi recebido por ele com beijos e abraços e agora está atado de pés e mãos. O diálogo se estabelece. Um, desejando conhecer o seu destino –-Vais me matar – e o outro se embaralhando em acusações que repousam nas mudanças da cidade  e nos crimes devidos a essas mudanças.


São monólogos de Juan Núñez de Prado que se sucedem, tendo, entre eles,  alguma pergunta de Aguirre que, finalmente, lhe responde o que perguntara: não irá morrer e sim, partir, prisioneiro para o Chile. E diante de uma nova pergunta de Juan Nuñez de Prado – se trazia Deus consigo – Francisco de Aguirre monologa, por sua vez, dizendo de suas relações com a divindade e com a Igreja e, como para se desculpar, afirma: pensa que sou um simples instrumento de umas mão altas e distantes, inalcançáveis para ti e para mim, de umas garras, se queres, que vem tomar posse de ti através do mar, desde Madrid ou através do inferno [...], vim mandado como vós, como Cortés em Nueva Espanha e Pizarro no Peru e é possível que venham outros atrás de mim para me prender.


Muitas outras coisas ele diz, ainda, para o seu prisioneiro e a Conquista vai se delineando nas suas palavras,  mostrando-se não mais como um fato encerrado mas como algo que se prolonga na História do Continente. Nesse seu nunca acabar de ser colonizado. 

domingo, 18 de outubro de 1998

Carlos Droguett: História e ficção 3

           Em 1550, Barco foi fundada. A data é uma suposição porque dessa fundação não ficou ata alguma, só testemunhos esclarecem o porquê de seu nome: uma homenagem ao local de nascimento de La Gasca que foi quem autorizou Juan Núñez de Prado a conquistar o território e fundar uma cidade. De acordo com Vicente Sierra na sua História de la Argentina (Buenos Aires, Unión de Editores Latinos,l), pouco se sabe dos primeiros dias dessa  fundação, exceto do esforço de reduzir os índios que habitavam a região. E da visita que lhe fez o capitão Francisco de Villagra quando, não somente cometeu violências contra os índios e soldados como roubou, ao partir, animais e víveres e coaptou soldados para segui-lo.

No romance El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer,1973), de Carlos Droguett, o primeiro capítulo, “Primer traslado”, dá conta dos excessos cometidos pelo capitão Francisco de Villagra e dos esforços de Juan Núñez de Prado para efetuar a mudança da cidade no desejo de afastá-la da jurisdição chilena que pretendia o território onde ela fora fundada.            São seqüências que repetidas vezes emergem do relato, entremeadas a outras nas palavras de um ou outro personagem.
  
             Em relação com as violências de Francisco de Villagra, Vásquez, um dos capitães, diz como ele se apropria dos cavalos, do gado e dos índios, como convence os soldados da cidade a  fazer parte de sua expedição. Guevara, outro dos capitães de Juan Núñez de Prado, conta como os homens  de Villagra entravam pela janela das casas, maltratavam e apunhalavam e degolavam. E Vásquezesclarece: A todos que não querem ir para o Chile eles matam [..], somente deixarão os mortos e feridos, um pobre soldado pesteado, alguns cachorros doentes, alguns cavalos rengos e cegos. E, afirma o padre Carvajal, o capelão: sei que ameaçou a muitos e que assassinou e fez assassinar a alguns, aos tímidos e timoratos que não estão com vós nem com ele, só com o seu medo.

 Igualmente, emergindo do relato, repetidas vezes, as seqüências que dizem da mudança da cidade. São construídas a partir da voz de Juan Núñez de Prado que declara suas intenções de salvar a cidade antes que a levem os outros; que a planeja, indagando do número de carretas para o seu transporte; que a imagina no lugar em que a irá edificar outra vez, mais perto das montanhas, mais perto da neve.

 E no dia 23 de maio de 155l, diz a História Oficial, tudo está pronto para a mudança.. Juan Núñez de Prado a efetivou por escrito, narrando os desmandos de Francisco de Villagra e as razões que o fizeram mudar a cidade de lugar. E diz o texto ficcional: Faremos a mudança e depois escreveremos um memorial, faremos com que as pessoas da cidade assinem e com que o prefeito e os ofendidos por Don Francisco jurem. Nós fazemos uma caridade ao mudá-la de assento, escreveremos ao Rei, contando, minuciosamente, todas essas aventuras e desventuras e lhe pediremos sua bênção.
           Juan Núñez de Prado estava convicto do que fazia e as últimas linhas do capítulo, descrevendo sua partida para o novo lugar da cidade, o mostram numa relação cúmplice com uma natureza ainda não conspurcada e com os pedaços da cidade que viajam nas carretas: Iam mergulhadas já em plena obscuridade, sentia o vento carregado de perfumes de flores e de ervas, odores livres, sem fumaça, sem disparos, sem gritos, sem queixas e aproximou o cavalo da carreta e trotou devagar a seu lado, metendo sua mão entre os móveis, tocando a beira de uma mesa, as botas, a silhueta de um borzeguim, as folhinhas secas de um vaso, o bordado velho de uma cama que pendia solto e distante e se sentiu seguro e respirava agarrado na madeira.

domingo, 11 de outubro de 1998

Carlos Droguett: História e ficção 2

           Sem se dar conta de que  um grupo de cristãos acampara em terras que estavam fora de sua jurisdição, Juan Núñez de Prado, num anoitecer de 1550 o ataca. A luta, diz Vicente Sierra na sua  História de la Argentina (Buenos Aires,  Unión de Escritores Latinos, l), durou pouco pois o atacante, percebendo a superioridade do inimigo, optou por se retirar.  Mas, foi perseguido até Barco, cidade que fundara. Ali chegou com seus homens o capitão Francisco de Villagra que ele havia atacado. Na cidade, ele se hospedou no rancho de Alonzo Díaz onde chegou Núñez de Prado para oferecer-lhe sua espada e assumir a responsabilidade pelo ocorrido. Villagra a devolveu e o abraçou em sinal de concórdia.
          No romance de Carlos Droguett, El hombre que trasladaba las ciudades (Barcelona, Noguer, 1973) que tem origem nesse episódio, a visita é narrada demoradamente. Entre o momento em que batem à porta de Juan Núñez de Prado, anunciando-lhe a chegada do inimigo até aquele em que o capitão Villagra deixa a cidade, a ação e os diálogos são breves e rápidos mas inseridos em cinqüenta páginas nas quais se entremeiam sonhos, pesadelos, descrições do que Juan Núñez de Prado percebe ao seu redor, enumeração de objetos, seqüências em que se sucedem as ações dos soldados, expressão da consciência de Juan Núñez de Prado. Há pequenas informações – apagou a luz, caminhou e apagou a luz do outro quarto e passeou de pés descalços, olhando o chão, sentou-se com desalento na cadeira, ou pegou a espada ou abriu a porta – que antecedem a sua chegada diante do capitão Francisco de Villagra, antes de lhe prestar vassalagem, ajoelhado com a espada diante dele: don Francisco se aproximou dele, ainda sem lhe dizer nada, para assustá-lo, para deixá-lo cheio de dúvidas e tristeza, inerte, desamparado, sozinho, cada vez mais ensimesmado e pesaroso, o pegou pelo braço e o conquistava pouco a pouco, apertando-se contra ele, na direção de seus desejos de conquista, na direção de suas ambições, sugando-o como o vento das planícies, como o mar no golfo, quando o incêndio tinha chegado até a praia e ele via os espanhóis afundados na água gritar com certa tranqüilidade, certa certeza de que a noite não podia durar e, do outro lado, estava o exército dos astecas, imensamente calado e compreendeu, então que tudo isso estava perdido para o índio e ganho para eles [...].

          Fiel ao texto histórico, no texto ficcional um personagem se submete  e o outro se mostra magnânimo. Porém, compete ao ficcionista libertá-los da rigidez a que o documento oficial os condena, humanizando-os: atribui ao capitão Francisco de Villagra intenções ainda não confessadas e com o generoso uso do adjetivo, faz de Juan Núñez de Prado, na sua fragilidade, um homem distante do que foi requerido pela Conquista, quando esteve presente na batalha em que os astecas foram submetidos. Episódio  que se apresenta  no relato nessas lembranças que de maneira fugaz  vez ou outra lhe perpassam pela mente.

           Carlos Droguett não se afasta da realidade do texto histórico. Sim, de sua objetividade e fala de sentimentos, de gestos, de lembranças que individualizam o seu personagem sem deixar de mostrá-lo como parte desse imenso processo histórico que foi a Conquista do Continente.

domingo, 4 de outubro de 1998

Carlos Droguett: História e ficção 1


          Na Historia de la Argentina, de Vicente Sierra, (Buenos Aires, Union de Editores Latinos, I), que se atém aos anos compreendidos entre 1492 e 1600, o terceiro capítulo trata do descobrimento da região que hoje se constitui a Argentina e dos conflitos de jurisdição entre os conquistadores. Entre eles, o ocorrido entre Juan Núñez de Prado e Francisco de Villagra.


         A autorização concedida por Pedro de la Gasca a Juan Núñez de Prado para fundar uma cidade em território pretendido pelo governo do Chile como seu, constituiu, para esse governo, uma ameaça, pois, na medida em que uma autoridade ali se instalasse, dominaria as vias de comunicação entre Cuzco e Santiago do Chile. E os conflitos não tardaram a  se produzir.
          Diz Vicente Sierra que, no dia 10 de novembro de 1550, Juan Núñez de Prado se encontrava a umas vinte léguas de Barco, a cidade que havia fundado, quando os índios lhe informaram que em Toamogasta, a cinco léguas dali, havia um grupo de cristãos que, embora tendo visto as cruzes nos tetos das choças, os haviam maltratado cruelmente. Sem se dar conta, Juan Núñez de Prado, que Toamogasta se encontrava a 25 léguas da cidade de Barco e, sobretudo, que ele não era  governador do território mas simples capitão geral de um povoado, ao anoitecer, atacou o acampamento cristão, comandado pelo capitão Francisco de Villagra, que ia, com suas tropas, para o Peru, em socorro de Valdivia.

            Com esse episódio, se inicia o romance El hombre que trasladaba las ciudades, de Carlos Droguett, publicado, em 1973, pela Noguer de Barcelona.

           As primeiras páginas de El hombre que trasladaba las ciudades tratam da fuga de Juan Núñez de Prado do acampamento de Francisco Villagra, atacado sem sucesso. Primeiro, a descrição de uma cena: Juan Núñez de Prado, não nominado, desmontando, como também o fizeram seus capitães Guevara, Vásquez e Santa Cruz. E seu pressentimento  de que o capitão Guevara queria lhe contar como fora essa aventura, que lhe custara muitos soldados, coaptados pelo inimigo. Então, o narrador como que o abandona para se ocupar dos soldados que o seguiam e dos quais, na luz do amanhecer, distinguia as barbas e os bigodes.  O narrador  se afasta  dele para se aproximar mais dos soldados, perceber que sorriam com cansaço, que um ou outro cantarolava como se estivesse bêbado, que algum pronunciava, num queixume, a palavra Madrid e, logo, Sevilha, Málaga. E esses nomes estavam cheios de sol.

           Eleva-se a voz de Guevara para falar das cruzes. Juan Núñez de Prado indaga quais cruzes mas, na verdade, desejando saber tudo sobre os cavalos e os soldados perdidos. Guevara responde que se refere às cruzes das quais falava o cacique ao lembrar a chegada dos soldados de Francisco de Villagra. Essa referência aos dizeres do historiador - os haviam maltratado cruelmente - se faz, então, nas palavras do romancista : uma cena que o simples exame das expressões mostra como dinâmica e cruel. Assim, os verbos (queixar, soluçar, lançar os cavalos sobre as choças), os adjetivos (cruzes miseráveis, toscas, índios feridos, humildes, no chão), os complementos nominais (cruzes miseráveis de carne de índio, cruzes de braços, de pernas, de pequenos corpos de criança). Assim, essa rápida frase que mostra o jovem índio sendo sacrificado na cruz, soluçando quase como um cristão, num ritual interrompido pelos soldados. Eles saltam sobre uma cruz que lhes interceptava o caminho, atirando por cima dela, demonstrando que não esqueciam que eram cristãos e o que viam era uma festa feia e pagã que não lhes correspondia.

           Magistralmente, Carlos Droguett confere ao texto um significado que ultrapassa o histórico e o ficcional ao sugerir o sacrifício do índio, ao dizer da indignação dos soldados diante do sacrifício. Conquistadores, não se dão conta, entretanto, que o ritual dos índios deseja ser igual àquele por eles transmitido como o sacrifício de Deus. Sacrificando um dos seus, os índios pretendem se salvar dessa ira e destruição que lhes vem dos ibéricos e que eles sofrem sem muito entender.