domingo, 27 de setembro de 1998

Mama Zoila


           Alfonso Barrera Valverde começou a publicar aos vinte anos quando era ainda aluno de Direito na Universidade Central do Ecuador. Eram livros de poemas e um poeta ele permanece no romance que a editora Magisterio Espanhol de Madrid publica em 1978: Heredarás um mar que no conoces y lenguas que no sabes. A figura central do romance é Mama Zoila e a ela se dedicam os dois primeiros capítulos que o compõem. Muito pobre, sozinha porque os filhos já se foram, de repente, se vê diante de um problema que não pode resolver: transladar os ossos do marido do lugar em que estão há trinta anos ou pagar os atrasados  para garantir sua permanência no local. Tenta falar com as patroas, com o padre, com o comissário municipal, com o filho doutor e cada vez se interpõem as barreiras que separam os homens dentre os que possuem e os que não possuem poder ou dinheiro. Uma patroa se recusa a interceder por ela junto ao Monsenhor que lhe frequenta a casa; outra, lhe dá conselhos óbvios que ela, sinceramente, agradece. Interpelado, o padre lhe diz que deve se preocupar menos por si mesma e pelos restos do marido – afinal, ambos irão se reencontrar no dia do Juízo Final – e mais pelos seus filhos.E o comissário municipal não tem muito tempo para ouvir – Não tenho muito tempo, assim, é melhor que me diga logo qual é o assunto – mas, ao saber-lhe o nome se declara disposto a colaborar desde que tenha orientação do doutor Ruperto. E´o seu filho mais velho, doutor Ruperto para todos e para ela também: advogado cheio de gravatas, homem exato pela quantidade de goma no cabelo, com um grande cravo vermelho na lapela, não permite que ela, Mama Zoila, dele se aproxime. Sua mulher, seu sogro, seus cunhados lhe aprovam os discursos políticos e a prosperidade e lhe perdoam ser filho de lavadeira com a condição de não precisar cumprimentá-la o que ele tampouco faz.

            Mama Zoila, porém, conhece o seu lugar. E essa humilde consciência de si mesma se expressa com insólito lirismo. Ela é a mulher do povo que se compraz entre os seus e vive no pequeno espaço que lhe é atribuído, iluminada pelo amor que recebeu e pelo que, ainda, é capaz de dar, mesmo se esquecida e abandonada. Acalenta o passado nessas visitas ao cemitério quando parece negar a viuvez; ignora o futuro que não seja imediato. E o presente é a tina de lavar roupa onde os dedos com a água se tornam grossos, compreendendo que a vida, assim com reumatismos e mãos molhadas, dura menos.

domingo, 20 de setembro de 1998

Memórias em setembro


            “Allende” é o último texto de Confieso que he vivido, memórias publicadas em março de 1974. Pablo Neruda diz estar a escrever apenas três dias depois do assassinato do Presidente do Chile o quê torna admirável a tranqüilidade com que o faz. Salvador Allende era para ele “o grande companheiro” e sua morte, a maneira como transcorreu, devem ter-lhe sido imensamente dolorosa como extremamente doloroso deve ter sido assistir o desmoronamento das  ilusões, quanto ao futuro  de seu país, nas mãos daqueles que usurparam um poder legitimamente constituído.

           No entanto, é como se em Pablo Neruda prevalecesse, nesse momento, a razão. Ele se concede forças para sintetizar os motivos que permitiram o golpe, para lembrar outro presidente do Chile, Balmaceda, e fazer um paralelo entre ele e Salvador Allende, ambos conduzidos à morte por querer impedir a entrega das riquezas pátrias ao imperialismo. Muito claramente, afirma: Balmaceda foi levado ao suicídio por negar-se a entregar a riqueza do salitre às companhias estrangeiras. Allende foi assassinado por ter nacionalizado a outra riqueza do subsolo chileno, o cobre. Conquista da soberania nacional que foi compreendida como um passo gigantesco no caminho da independência e, resultou, no exterior, em ardente simpatia pelo país.

          Em páginas anteriores, Pablo Neruda relata a emoção que percorreu a Europa quando a companhia norte-americana pretendeu o embargo do cobre chileno. Emoção que não se ateve aos jornais, às rádios, às televisões, mas se expressou em gestos que, no seu entender, ensinaram mais sobre História de nosso tempo do que as cátedras universitárias. Lembra que, no segundo dia do embargo, uma senhora francesa, modesta, de uma pequena cidade do interior, mandou para a Embaixada chilena em Paris, uma nota de cem francos, fruto de suas economias, que ela oferecia para ajudar a defender o cobre chileno. Junto, enviava uma carta de adesão calorosa, assinada pelos habitantes da cidade, pelo prefeito, pelo padre, pelos operários, pelos desportistas e pelos estudantes.

            Esse entusiasmo, diz Pablo Neruda, apaixonava a França e a Europa inteira, e fazia de Salvador Allende um homem universal. Ele havia transformado o Chile num país que passou a existir, que, pela primeira vez, passou a ter uma fisionomia própria, diferenciando-se dessa multidão de outros, mergulhados na tristeza do subdesenvolvimento.

          Essas obras, porém, e esses feitos enfureciam os inimigos da libertação do país. E tanques e aviões entraram em ação para lutar intrepidamente contra um só homem: o presidente da república do Chile, Salvador Allende, que os esperava em seu gabinete, sem mais companhia do que seu grande coração, envolto em fumaça e chamas. Foi-lhe dado o fim exigido pela potência estrangeira e seu cadáver foi para a sepultura acompanhado por uma única mulher que levava com ela toda a dor do mundo.

          Doze dias depois, morria Pablo Neruda. A romancista Isabel Allende, no seu primeiro romance La casa de los espíritus (1982), conta que ele agonizou na sua casa perto do mar. Estava doente e os acontecimentos dos últimos tempos esgotaram seu desejo de continuar vivendo. Seus amigos não puderam se aproximar porque estavam fora da lei, prófugos, exilados ou mortos e o cortejo fúnebre percorreu as ruas entre duas filas de soldados com metralhadoras. Mas, as vozes se levantaram e o ar ser encheu das consignas proibidas. Seu funeral se converteu no ato simbólico de enterrar a liberdade.

domingo, 13 de setembro de 1998

Os amores de Tupambay


                                                                                              Para Cicinha
 
          Francisco Espínola morreu, diz Eduardo Galeano, quando voaram em pedaços os restos do Uruguai democrático. Era agosto de 1973 . Quarenta anos antes tinha publicado seu romance Sombras sobre la tierra, hoje, um clássico da Literatura Uruguaia: sombria pintura de pedaços de vida de um bordel interiorano e de momentos vividos em humildes tascas nas aforas de uma pequena cidade.
           Sombras sobre la tierra não possui trama romanesca. O relato gira em torno de Juan Carlos, jovem órfão e rico. É ele que determina a profundidade do relato quando tenta refletir sobre o mundo que o rodeia. E este é um mundo de inocências, embora habitado por prostitutas e bêbados, onde, ainda que em meio a pobreza, prevaleça a cordialidade: seja entre as donas de bordel e suas pupilas, entre as próprias pupilas e seus clientes, ou o médico ou o padre que aparecem para o controle sanitário, ou para uma extrema-unção; seja entre os demais personagens, embora possam ser apenas uns pobres coitados. Ou, onde prevalece um afeto. Aquele que une Juan Carlos a sua empregada, a seus amigos, às pupilas do bordel, a seus protegidos. Que une as prostitutas à cadelinha Milonguita ou Manuel Benítez a seu cachorro Tupambay.
          


            Manuel Benitez é um índio velho com quatro pelos duros, caídos, de bigode. E um olhar dulcíssimo, nos olhos eternamente injetados de sangue. O cachorro é um cusco feio que o dono chama Coco ou Tupambay, conforme o seu humor: quando está irritado, diz Tupambay e quando fica ensimesmado e triste, fala Coco.

           E Coco/Tupambay anda atrás de Milonguita. Mas as damas do bordel protegem, na cachorrinha, uma virtude que não mais possuem e ameaçam o pretendente com vassouradas, pedras e água quente, argumentando que é um cão feio e mendigo. Mas, recusam, igualmente, outros candidatos e mantém Milonguita prisioneira. No meio da calçada, diante da porta, com intenso olhar, Tupambay passa o dia. O dono o chama e ele não atende e só volta para casa no colo de Manuel Benítez, já impaciente, mas compreensivo quando promete: - Coco! Não fique triste Coquito! Algumas temos que ganhar! Se Deus quiser vamos roubar a cachorra!

           E soam as três horas da manhã quando, obedecendo ao encontro marcado, sai Margarita de casa e, no pátio, tira Milonguita da casinha, onde estava fechada, e a entrega para ser levada a Manuel Benítez que já a esperava no seu rancho.
         
          A história desse pequeno e humilde amor, em Sombras sobre la tierra, é contada aos poucos e se entrelaça com aquela dos humanos. Deles, no entanto, os sentimentos se desencontram: Juan Carlos confessa, muitas vezes, seu amor por Nena. Também o seu desejo de tirá-la do bordel. Mas, tampouco pode se impedir de, alguma vez, exclamar: Nena! Nena! Por que você é o que é? E tudo – brigas e reconciliações – continua como antes.

            Sombras sobre la tierra termina sem dizer do destino de cada um. Parece que, entre todos, só Tupambay e Milonguita foram felizes.
 

domingo, 6 de setembro de 1998

O riacho

          A primeira parte de Usina (Rio de Janeiro, José Olympio) completa a história de Ricardo, contada em Moleque Ricardo. É só na segunda parte que o assunto do romance irá, efetivamente, aparecer: a transformação do bangüé do Dr. Juca em usina de açúcar.

          O bangüé Santa Rosa, de certa forma uma herança de família, que ele – sua ambição era mandar, ser rico, mostrar-se – anula para erigir a usina Bom Jesus que imagina lhe dará riqueza e poder.

          No passado, fica a figura de seu pai, José Paulino, senhor de engenho nos moldes tradicionais: enérgico, possuidor da generosidade própria dos ricos que o deixava ter uma cozinha aberta para todos, conviver com a antiga senzala perto da casa-grande, permitir que os trabalhadores morassem nas suas terras, fornecer leite de suas vacas para as famílias que dele necessitassem, dar audiência aos trabalhadores dos seus campos, buscando soluções para os problemas que traziam, não se importar que os moleques chupassem da sua cana.

            Para o filho, tudo isso significava que ele era um homem doutros tempos. Porque em nome da produção da usina, os usos deveriam mudar. Assim, mandara por grade nas portas da cozinha, botar abaixo a antiga senzala, afastando de sua vista os velhos empregados, desalojar os trabalhadores de suas terras – a usina não podia perder um palmo de terra de várzea  - proibir que o leite continuasse a ser distribuído, mandar falar com o gerente do campo para a resolução dos problemas, considerar que chupar cana da usina era um crime.


             Sentado numa larga cadeira de espreguiçar, o Dr. Juca via do alpendre da casa-grande a atividade de sua fábrica. Pensava no esforço que fizera para cobrir as terras – as terras que nas mãos dos antigos se esperdiçavam - do verde da cana. E fazia planos: comprar um engenho que lhe permitisse passar os trilhos do trem; comprar um outro que lhe desse a água para alimentar a usina. Porque faria o riacho, que nele existia, correr por um leito construído por ele, com uns gastos a mais, estaria ali dentro da Bom Jesus  para serventia da usina. Era uma obra de engenharia o quê pretendia e o seu feito, logo de iniciado, saiu nos jornais. O Vertente, que se perdia à toa, cantando manso pelas matas escuras, dando de beber com sua água doce ao povo do Pilar, vinha agora, à força de instrumento para a serventia da Bom Jesus. A terra dura era cavada e o cal e o tijolo iam fazendo o novo leito para o Vertente e nunca mais faltaria água doce na usina.

            Mas, o povo inteirinho se alarmou com a notícia. O Vertente nunca roncara, jamais crescera fora de seu leito para fazer medo. Era bom para o povo. Pelas suas margens plantavam capim-de-planta, para os cavalos, faziam banheiros e o bamburral chorava ao vento. Agora, a usina o cercara de arame, o vigiava com homens armados de rifle. O riacho “generoso, manso, fora roubado. Não daria mais água para os moradores, para o povo da vila. Ninguém queria acreditar que não possuiriam mais um riacho que era patrimônio de todos, que iriam ter que fazer cacimbas para beber água. O Dr. Juca queria o riacho para suas máquinas. E o riacho deixara o seu leito de areia, macio, para correr num outro, duro, feito de tijolo e cimento. Passara a ter dono, era mandado como boi de carro.

           Mas a usina que espantara, expulsara, desprezara os trabalhadores, não dera conta do trabalho. O maquinário, vendido pelos norte-americanos, se avariava ao primeiro uso. Eram dias parados, dias de prejuízo. Eram prejuízos, levando à ruína. E todo o perverso poder da Bom Jesus foi ruindo; a autoridade já não era servida por capangas.

           Um dia, a água do riacho parou de correr para a usina. O aqueduto fora quebrado e as águas voltaram a seu velho e ressecado leito, saltitando como menino de colégio que deixasse o castigo para o recreio. Mas, os pedreiros da usina as fecharam, outra vez, entre as paredes de tijolos. Logo, o povo do engenho rebentou,outra vez, as paredes e o riacho recomeçou a correr como antes. E assim ficou porque já ninguém se importava com a obra de engenharia do Dr. Juca pois ele perdera o dinheiro e o poder. Já não mandava mais nas águas do riacho que “lá em cima da mata, corria livre, cantando manso e bom, livre da bica arrombada.

          Num ingênuo castigar dos maus, José Lins do Rego mostra quem desejara o riacho prisioneiro submisso e útil, o Dr. Juca,  partindo de suas terras, pobre e doente, deitado numa carreta de bois. E Usina termina nessa viagem quando tudo ia escurecendo com o fim do dia e com a chuva, caindo fininha.