domingo, 26 de julho de 1998

As duas ruas

              Pelas histórias que se entrelaçam, por um certo uso dos tempos verbais e pela escolha dos adjetivos, lembra Gabriel García Márquez de  Cien años de soledad :  o extenso romance que David  Sanchez Juliao acaba de publicar pela Grisalbo, da Colômbia, e que tem por título Danza de redención

            Antecedendo o primeiro dos seis capítulos, um breve bilhete, incompreensível, que, se tornará claro, somente após a leitura das últimas linhas do romance En el principio era el vals que serão as mesmas linhas com que a narração se inicia. E, nas primeiras linhas, claramente expressa a separação que reina, dividindo a cidade das cento e trinta ruas: Calle Arriba e Calle Abajo.

            Calle Arriba ouve valsas, a música dos espíritos do bem que reencarna nas partituras importadas. Calle Abajo, se expressa pelas sementes das maracas e pelo couro dos tambores cujo som havia nascido ali mesmo para não morrer nunca.

            Na verdade, a distância entre os habitantes se mede pela diferença de sangue e  pela posse de terras mais do que pelos instrumentos musicais que eles tocam: Calle Arriba, o piano; Calle Abajo, o tambor, a gaita e as flautas índias.

            E sobre músicas, músicos, interpretações e danças, se fará o  romance.

            A vida de uma família que vai se formando é o fio condutor do relato ao qual se acrescentam muitas outras histórias de outras vidas num suceder interminável de seqüências. Algumas, se completam aos poucos como a de Maria Cayena, a parteira dançarina, ou como a de Saul Sánchez que desenganado de se fazer amar pela mulher que escolhera, opta por se transformar em caimão, para tristeza incomensurável de sua mãe. Depois, quer outra vez voltar a ser humano mas não mais consegue ser feliz como homem e volta  às águas, agora, em companhia da mulher e do filho. Outras, se constituem de pequenas referências como a que concerne ao Padre Marcial. Chegou a San Fernando de Cumbé  - pequena cidade abandonada de todo deus mas habitada por seres resignados à fatalidade - para tomar o lugar do padre que falecera. Mal termina de rezar a primeira missa, já cansado, se alegra ao ouvir um paroquiano lhe dizer que a recepção em sua honra, que se faria no Club San Fernando, fora cancelada. Graças a Deus, ele murmura, para logo perguntar, em tom casual, se tal se deve à chuva que estava a cair. Não, padre titubeou o paroquiano, inseguro, que tomando ar, continuou: Devo lhe confessar a verdade. Aqui as pessoas de cor não podem entrar no clube, a não ser que, músicos, sejam convidados para tocar.          Ao padre só lhe restou procurar, com os olhos, o crucifixo na parede, fazer o sinal da cruz e dizer -Seja feita, Senhor, tua Santa Vontade. Porque é possível imaginar que muito ele poderia estar disposto a fazer pelo seu rebanho, mas lhe resultava impossível mudar de cor de pele.

            O registro dos preconceitos, o testemunho dos mitos, a fixação dos costumes, mostram Danza de redención como um enraizar nos temas do Continente. E a fertilíssima imaginação de David Sánchez Juliao, o poder de sua linguagem ricamente expressiva e esse renovar-se do relato em mil histórias fazem de seu romance –como já o haviam feito anteriormente  Pero sigo siendo el rey e América, América – uma obra ideologicamente coerente com a realidade da América Latina o quê é reafirmado pela vibrante criatividade de sua  feitura.

domingo, 19 de julho de 1998

Soneto de outono

          No dia 12 de abril de 1975, o “Caderno de Sábado” do Correio do Povo, de Porto Alegre, publicou o soneto LXXVII de Mário Quintana. Parte do “Caderno H” se constitui aquele soneto renovado que deixa para trás a sisudez para dizer, alegre, de um momento presente de euforia.

          Como tantas vezes nos poemas de Mário Quintana, esse tom coloquial, narrativo, do primeiro verso: O outono de azulejo e porcelana chegou!, parecendo diluir o que a expressão tem de inesperada na relação  que estabelece entre estação do ano e o objeto. Logo, outra expressão cotidiana Minha janela, introduzindo a metáfora é um céu aberto. Depois, o falar sobre a felicidade, o luminoso do dia, o traço descritivo da paisagem e a interpelação a um interlocutor próximo: Tuas tristezas... o que é feito delas? Mas, a esse interlocutor, não é dada ocasião de resposta pois, de imediato, ela fica por conta do poeta: Tombaram como folhas amarelas / sobre os tanques azuis.
         
          A  escolha do verbo tombar em lugar de cair, as cores, a  comparação, a idéia de algo que mudou (contida na expressão folhas amarelas) e de algo, talvez, imutável (tanques azuis) fazem versos plenos de clara sugestão que, de repente, se opõem às palavras que seguem: que desaponto que irão rimar com as  últimas do soneto Pronto. Ambas são de extrema simplicidade do falar comum, contrárias ao verso cuidado mas em consonância com cartaz, adiados os suicídios, simplesmente.                                                   

           E o outono é, na verdade, motivo para falar de Porto Alegre. Para o poeta, a única cidade a oferecer um estado de graça cotidiano onde tudo transluz, onde a tristeza é negada porque é abril em Porto Alegre. Motivo, sobretudo, para falar de um espaço interior, em festa, apto a perceber a  beleza da paisagem, a atmosfera da cidade que leva a repudiar tristezas.

            Despretensioso decassílabo, o soneto LXXVII não buscou  rimas ricas, nem palavras sonoras, nem imagens inigualáveis, nem um tema grandiloquente. Apenas se ancorou na emoção de um dia de luz – o outono na cidade, a felicidade de viver – na expressão espontânea de um dizer de todos os dias. Inserida nessa simplicidade, a faísca própria dos grandes poetas.

 

 

 

domingo, 12 de julho de 1998

Retratos da pobreza

       Água estagnada, lixo, o canteiro de alvaces amarelas,
    a sombra da mangueira. Por cima do muro baixo ao fundo,
    vem-se pipas,montes de cisco e cacos de vidro,um homem
    triste que enche dornas sob um telheiro, uma mulher magra
.
    Gracicliano Ramos.
       
Graciliano Ramos tinha quarenta e quatro anos e fora preso por suas opiniões políticas quando, em 1936, aparece Angústia. É o terceiro de seus livros publicados, um romance, verdadeiramente, denso e cruel que Antônio Cândido qualifica de tumultuosa exuberância. Como Caetés e São Bernardo, é escrito na primeira pessoa: um longo monólogo de Luiz da Silva, contando de seu viver rasteiro, miserável, solitário, tristonho, nessa Maceió de tons sombrios e deprimentes.

            Ele vive numa pobre casa de aluguel, inconveniente, cheia de barulhos, parece mal assombrada. De vez em quando, o madeirame, eivado de bichos, estala. E pululam os ratos pelo chão e pelos armários. E pululam as pulgas, e as cadeiras são ordinárias, não há quadros nem tapetes.

            Funcionário público, homem de ocupação marcado pelo regulamento, tem os olhos baços, o nariz grosso, um sorriso besta, é mal vestido e mal calçado. Rabiscando artigos de jornal, Luiz da Silva possui uma visão de mundo que vai pouco além do quintal de sua casa e se fecha num círculo de relações, no qual não cabem muitos: a criada Vitória; Ivo, o eventual conviva; Moisés, o judeu da prestação e logo os vizinhos e Julião Tavares, que impõe sua presença, e os tipos que vislumbra no café onde vai para se distrair.

            Em determinado momento de seu monólogo, diz onde mora: Rua do Macena, perto da usina elétrica. E acrescenta: a casa onde moramos não tem importância grande demais. Para a sua história o que vale é o quintal. Pois, ali, é que viu Marina pela primeira vez. Ali, falou com ela e lhe fez carinhos. Mas, também, é dali que seu olhar irá fixar, quantas vezes, os monturos, a água estagnada, o monte de lixo, as florzinhas desbotadas, as roseiras maltratadas, os montes de cisco, os cacos de vidro, o canteiro de alfaces amarelas, a mulher a lavar garrafas, o homem a encher as dornas.

 Referências que aparecem e tornam a aparecer num repetir-se que não deixa esquecer a intenção de documentar essa espécie de submundo -t tudo tão pobre e sujo e feio e triste - em que se movimenta Luiz da Silva.

            Porque, se a narrativa se faz de um fugaz romance, de lembranças do passado, da mediocridade de um melancólico viver cotidiano e de um crime, aparentemente passional, as notações sobre uma realidade degradada estão presentes com uma força que não permite ignorar as incongruências sociais. Embora se trate de um romance em que, mais do que indagar-se sobre si mesmo, quer dizer das relações com o outro.

            Tecnicamente, diz Antônio Cândido, é seu livro mais complexo. Sem dúvida, nele se mostra Graciliano Ramos, senhor absoluto de seus recursos narrativos e esse entrelaçamento, tão solidamente burilado entre o mostrar as agruras da alma e o perceber a vida penosa dos marginalizados, se constitui um todo em que emerge uma adequação perfeita.

domingo, 5 de julho de 1998

A ilusão


                                                                       Ficou enfim pronto o aparelho do holandês
                                                                    voador, é assim e assim grande e bonito, e
                                                                    parece que pode voar.
 
 
          Acusado de heresia por esculpir santos com fisionomia indígena - fazer santos que contrariam toda fé - o índio guarani Francisco Abiaru é atirado nas masmorras do Rio de Janeiro e, lá, espera julgamento. Como Petrus Cornelius, o holandês calvinista. Homens importantes mandaram que o deixassem solto no pátio da cadeia. Ele, então, trepa no beiral para chamar a  atenção e obter o que deseja: uns panos, linhas, varas de taquara e um agulhão grosso. Quer construir a sua máquina voadora.

          Francisco Abiaru convence o guarda da conveniência de lhe dar o que deseja e pouco a pouco vai obtendo essas fazendas que o holandês armazena entre seus trapos. E o artefacto vai se fazendo.

          Quando chega a Visitação do Santo Ofício está terminado: um bicho, um desenho imprudente, um delírio. Que seu autor entende e explica na certeza de que voará . E, nas suas  certezas, permanece alheio ao poder da ordem que o mantém preso: poderosa e intrincada Ordem acima de qualquer ordem, odiada e temida, que  julga, prende e mata e é dirigida ninguém sabe como e que se dedica a manter a pureza da fé, e que todos na  Colônia portuguesa querem mais é destruir, sendo ela entretanto indestrutível como o Demônio, tudo vê, tudo enxerga e que tem  Familiares (nome tão enganosamente suave) por todos os lados cuja função é delatar suspeitos e que tem mais poder que o Rei, e a cujo nome todos tremem de pavor e que leva o cálido nome de Santo Ofício ou mais vulgarmente Inquisição.


          Por essa  ordem será interrogado. O Visitador que viera ao Brasil para verificar o estado das almas de uma terra assim carente  de apoio  espiritual o inquire. E teve que render-se a sua loucura e curvar-se ao seu desejo: Pois que assim seja. Voarás com tua máquina. Assim aconteceu. Indiferente ao ritual que o julga, e aos outros acusados, Petrus Cornelius pede para armar seu artefacto e pede que o índio guarani o ajude. Juntos são amarrados na máquina voadora e juntos correm até a proeminência da pedra e se lançam no espaço aéreo. Partem em graciosas evoluções em meio às nuvens.

            Desta maneira termina Breviário das terras do Brasil: uma aventura nos tempos da Inquisição, romance de Luiz Antonio de Assis Brasil, publicado, em 1997, pela L&PM de Porto Alegre. Um final auspicioso nesse afastar-se de um tribunal do Santo Ofício, sem mesmo saber da absolvição, em asas coloridas.

            Começara com o naufrágio da pequena embarcação, no rio da Prata, em que Francisco Abiaru carregava o Cristo de madeira. Salvo pela galera Nossa Senhora da Glória, a imagem que havia lavrado com as próprias mãos, escandaliza o frade,  magro e de estranha cabeça raspada, cingida por uma breve coroa de cabelo, ao fixá-la nos seus olhos amendoados. Influenciando o capitão, o decide a levar preso o índio para o Rio de Janeiro e lá, ainda que sem ordem decretada e sim de boca o jogam numa enxovia recoberta de pedra no chão, no teto e nas paredes.

            Mas, Francisco Abiaru não está sozinho, pois, recolhidos, também ali estão gentes de todo feitio, feiticeiros, mulheres de má vida, ladrões, blasfemadores, sodomitas, inventores de máquina, padres amancebados que dizem que o comércio carnal não é pecado, judeus ainda  não conversos, muçulmanos que estiram seus tapetes ao solo e oram a Maomé, negros que não abandonam seus deuses da África, hereges de Calvino, João Huss e Lutero e adivinhadores do futuro.

            Muitos deles são passíveis, como ele, de comparecer ao Tribunal da Inquisição por verdadeiros ou por falsos crimes. Mas o Visitador chegara brando. No morro da Gávea, onde instalou a sessão final da Mesa do Santo Ofício com a pompa devida – e grande mesa, candelabro, toalha de veludo, cadeiras de braço e altos espaldares, jarros e bacias – absolveu a todos com um grande sinal da cruz.

            No dia claro, na grande pedra plana como um piso de sala, sobranceira à cidade e à baía  refulgente de azuis belíssimos, prevalecendo o perdão, para seu projeto louco voou Petrus Cornelius e levou o índio guarani.