domingo, 22 de fevereiro de 1998

A submissão

           Carlos Liscano nasceu em Montevidéu em 1949 e, em 1987, publicou, em Estocolmo, El método y otros juguetes carcelarios. No ano seguinte, numa edição de Salto Mortal, foi impresso, também em Estocolmo, sua narrativa Memorias de la guerra reciente.

           Uma primeira pessoa que relata os dezessete anos vividos como militar. Era um civil recém casado e tinha uma casa. Ali, a patrulha o foi buscar para fazer parte de um destacamento, no interior do país ,no intuito de preparar uma guerra prestes a explodir. Partiu, sentado num jipe, entre dois soldados, cuidadosamente vigiado por outros.
           É um narrar feito com as minúcias de tudo o que lhe aconteceu: a chegada no  quartel, a inspeção médica, a informação de uma guerra iminente, os exercícios físicos para uma adequada atuação militar. Depois, a viagem até a base e o dia a dia ao longo dos anos que passam: uma reiteração de rituais de obediência que o irá moldar a ponto de impedir que ao ser desmobilizado seja capaz de ser outra coisa senão o que nesses anos tem sido.

           Talvez seja possível não pensar em determinado país, em determinado momento de sua história, em uma guerra determinada. Talvez seja possível ver além do retrato de uma instituição e perceber o que há de surpreendentemente malsão em certas práticas usuais que nem por isso deixam de ser ridículas ou ameaçadoras.

           Em Memorias de la guerra reciente, desenha-se o perfil de um homem que aceita a norma, que a engrandece e como súdito vai se perdendo como indivíduo para existir sem vontade própria, sem sentimento, absorvido por tarefas desprovidas de sentido, por verdades contestáveis que a sua ingenuidade não permite discutir.  E é a sua ingenuidade que o faz aceitar os ritos e fazer suas as asserções que ordenam o mundo, dividindo-o entre os que mandam e os que obedecem.

           Memorias de la guerra reciente é um livro de sua época e de seu Continente. No entanto, o leitor, ainda que desatento, pode perceber o quanto ele está além das fronteiras e das datas. O quanto pode ser um espelho dos dias que correm.

domingo, 15 de fevereiro de 1998

Em busca das coisas

          Em fevereiro de 1995, ele terminou de escrever El alma de Gardel e, em agosto do ano seguinte, a editora Trilce de Montevidéu já o havia publicado. Uma breve e curiosa narrativa, marcada, principalmente, pelas zonas de sombra. Ignora-se quem é o narrador, como foi e tem sido sua vida a não ser que, vagamente, pesquisa sobre Carlos Gardel. A sua voz expressa o que sente e o que pensa, se detém em algumas andanças pela cidade, em algumas idiossincrasias  de um personagem que se perde, por vezes, em alucinações. E, o elemento provocador dessa narrativa, são momentos, decididamente indecisos, alimentando o cotidiano do narrador, que, de algum modo, o igualam ao comum dos mortais.
           Furta um guarda-chuva com o mesmo à vontade que o abandona quando a chuva para de cair. Distrai-se a observar as pessoas num ônibus, a fazer uma visita à sobrinha distante e a ir e outra vez ir à Biblioteca.

          Conta detalhes dessas idas e vindas e, sobretudo, do que pensa: asserções sobre a arte de amar, lembranças de amores passados, referências a um novo amor que descobre sentir, sonhos que se mesclam à realidade, descrições de cenas do cotidiano, menção às pessoas que o interpelam para tratar dessa necessidade que tem Carlos Gardel, no dizer delas, de reunir os pedaços da alma, deixados pelos discos para só, então, descansar.

           E’ um narrar de minúcias, por vezes de sonhos, que se entremeiam às reflexões sobre a arte da narração: que as coisas nunca acontecem como são contadas, que é impossível saber o exato sentido de um pensamento em um dia determinado e depois, dele, fazer o relato. E, daí a conclusão de que o destino de tudo no universo, inclusive o universo mesmo, seja o de se converter em Literatura. E, ainda, que todo fato que não é esquecido se transforma em História ou em romance.

            O todo é o resultado de uma experiência de Mario Levrero: expressão de uma voz sem rosto que esboça rápidos momentos de alguém que é algo desconcertante.

            El alma de Gardel é um narrar que entre realidades e mistérios leva a surpreender um personagem que, por vezes, não está nem um pouco longe de seu leitor.

domingo, 8 de fevereiro de 1998

As batalhas

        O general é Justo José de Urquiza, vencedor de Monte Caceros, Presidente da Confederação Argentina que morreu assassinado em sua casa num dia 11 de abril.

        No romance de Maria Esther de Miguel, El general, el pintor y la dama, publicado em Buenos Aires em 1997 pela editora Planeta, que o premiou em 1996, ele é o narrador de batalhas. Quer vê-las imortalizadas numa tela e chama o jovem pintor uruguaio Juan Manuel Blanes para fixar suas glórias. Instalado na sua fazenda, o Palácio San José em Concepción del Uruguai, o pintor escuta o que ele conta e, uma após outra, as batalhas travadas passam a existir nas cores do pintor.

        Entre vermelho, sépia, branco e azul, a bravia batalha de Pago Largo no dia 31 de março de 1839. Lá está ele, o general, montado num cavalo branco, vestido com um poncho branco a enunciar ordens de ataque. Olha para a planície onde sua cavalaria arremete com bravura contra os inimigos já em fuga.

         Escura, já no anoitecer, a batalha de San Cristobal. O campo submergindo-se em sombras no horizonte e, em primeiro plano, iluminado no esplendor do sol em despedida, o general no seu cavalo branco a frente de seus soldados vestidos de vermelho, como a proa de um barco que avança pelo seu caminho de água, o olhar para a frente.

         Cruzando o rio estreito, os soldados de vermelho tem diante de si a planície e o exército inimigo. Diante deles, o general Urquiza que desta vez não estava junto, mas que assim foi pintado por Juan Manuel Blanes porque “há ocasiões em que a Arte inventa seus assuntos”. É a batalha de Sauce Grande.
 
          Também, chapinhando na beira do rio, essa legião de soldados de vermelho que avança pelos campos ondulados na batalha de Índia Muerta que deixou as águas vermelhas de sangue até que um dos lados decidiu retroceder. Não o do General Urquiza que, ainda desta vez, afirmou sua força, exorcizando temores. Mal termina de pintá-la, Juan Manuel Blanes pensa na batalha seguinte, a de Laguna Limpia que, no entardecer, é narrada pelo General. De sua voz fluem as lembranças: a planície, o rio, os homens cruzando as águas e a cruel batalha, a cruel perseguição entre banhados e cerros.

           E, princípio do fim de Rosas, a batalha de Potrero Vences. Sob as ordens do General, montado num cavalo branco, avança a cavalaria num campo que tem a tonalidade do céu e da água. A paisagem parece serena, quase lunar, numa quietude apenas quebrada pela fumaça das armas.

           Por último, Monte Caceros. O exército perto do rio, na claridade do dia, o General agora no seu cavalo escuro, ajaezado de prata e o tom cinzento do céu.

           Nos quadros são as cores – verdes, azuis, vermelhos –, as sombras e as manchas de luz. Um momento da História Argentina que se fixa em testemunhos. Nas lembranças do General, também os sofrimentos: gritos dos feridos, lamentos dos que agonizam, mortos espalhados pelas planícies. E ele pensa: tudo o que desaparece deixa rastro de sua presença, mas as sobras das batalhas são terríveis.

           Para eludir o horror, o horror do alarido das tropas, das queixas dos moribundos que talvez persigam seus dias, ele pede ao pintor: Pinte limpo para não agredir as pessoas. Que seja arte, pintor, não carnificina.

           E o pintor a ele se atém. Seus quadros primam em traços, em cores, em ausências. E é assim que tornam a contar a história.

domingo, 1 de fevereiro de 1998

O retrato

          Seu nome é Carlota Ferreira e, em 1883, quando tinha trinta e oito anos, foi pintado o seu retrato pelo grande e famoso pintor uruguaio Juan Manuel Blanes. Exposto no Museu Nacional de Artes Visuais de Montevidéu é o que dela permanece. Porque sua história, instigante e contraditória se perdeu no tempo.

          Em Mujeres uruguayas. El retrato femenino de nuestra historia (Montevideo, Alfaguara, 1997) lhe é dedicado um capítulo onde se conta de seus quatro casamentos, de suas audazes aventuras, dos incríveis sucessos que lhe são atribuídos, de como as pegadas de sua exuberância desaparecem na história de Salto, ao não existirem a memória ou o legado de seus descendentes.

           No artigo de Laura Gandolfo, o primeiro a ser dito é sobre esse retrato que a imortalizou onde seus braços grossos e poderosos saem das curtas mangas do ajustado vestido. O ramo de flores repousa sobre o peito avultado, um conjunto de oito botões de rosa que fazem com que se destaque o pescoço maciço. O vestido também é cor de rosa e se esmera em apertar a cintura para desenhar ali linhas côncavas. As mãos levam luvas  brancas que se estendem sobre os antebraços e pulseiras douradas. Os olhos aparecem ensombrecidos pelo cabelo negro e recolhido na testa, num rosto sereno mas com ar desafiante. A boca é carnuda, rosada e está levemente entreaberta. A figura sobressai iluminada e nívea sobre um fundo opaco”.

            As sessões em que pousou para o artista são contadas por Maria Esther de Miguel no seu romance El general el pintor y la dama (Buenos  Aires, Planeta, 1997), pela voz do filho do pintor que, espiando pela fresta da porta, no espelho que a refletia a vê, de pé, sobre um fundo de damasco levemente esverdeado. Na contemplação, aprecia os detalhes, o encanto que lhe era impossível precisar se vinha da mulher que pousava, da habilidade do pintor ou do enigmático sortilégio do espelho.

             Certamente com prazer, descreve, então, o que vê: O traje de Carlota era de seda branca e bordada, com enfeites de renda também brancos, mas ao longo da saia o branco se tornava cor de rosa ou talvez lilás para se harmonizar com o ramo de rosas, de um decidido tom pálido aparecendo no decote. Uma longa fileira de minúsculos botões acentuava o talhe apertado da blusa. A saia descia em sugestivo drapeado e logo se perdia num grande laço também em tom  rosa. As mãos da dama e os antebraços primorosamente enluvados em pálida camurça luziam pulseiras e jóias. Caiam bem tais complementos porque essas eram mãos de mulher acostumada ao gozo das boas coisas e aos refinamentos da elegância. Das luvas emergiam na sua opulência carnal, como de uma taça a flor, os braços da dama, de carnes firmes e decidida tonalidade rósea.

                Porém, mais do que descrever o modelo do pai, Nicanor, o jovem filho do pintor, se compraz em contar o que sentia por ela: uma atração que o faz vencer a timidez para procurar lhe falar. Carlota Ferreira o acolhe tão bem que durante três dias permanecem encerrados em seu quarto de hotel num delírio que os irá levar ao casamento embora sejam muitos os anos que medeiam entre os dois.

                 Na fabulação que o gênero lhe permite, Maria Esther de Miguel narra a vida que levaram em Buenos Aires até a ruptura, a volta de Nicanor para casa, em Montevidéu o que levou Carlota Joaquina conseguir a anulação do casamento. Nas páginas que lhe contam a história em Mujeres uruguayas, sua trajetória se completa: um caminho de  conquistas amorosas e desregramentos até seu final trágico e decadente.

                  Sempre esplêndido, o retrato que lhe fez Juan Maneul Blanes,  enfatizando uma beleza de carnes audazmente rosadas, certamente própria dos padrões estéticos de seu tempo.

                   Daí essa paixão também despertada no jovem Nicanor que lhe exalta a beleza e os sentimentos mas que, virilmente, diante da traição a abandona para se refugiar entre os seus e depois partir para a Europa onde desaparece. Jamais pode ser encontrado e as razões que o levaram a se esconder de todos podem ser imaginadas mas pouco de seus sentimentos ou de seu drama foi descoberto.

                    Da mulher que amou e que, talvez, o tenha levado a se perder, ficou o retrato: Carlota Ferreira de pé, com o corpo perfilado e o rosto de frente como para luzir-lhe as belezas.

                     Porque dizia seu pai, o pintor: não se pintam retratos para que vivam um pouco  e nada mais. São pintados para viver eternamente.