domingo, 27 de julho de 1997

Vozes da narrativa. Os alijados

          Eles tem uma voz: Ganapán. E quem a concede é Eduardo Galeano nos oito capítulos “Andanças de Ganapán” de La canción de nosotros, romance publicado, em 1975, pela Sudamericana de Buenos Aires.

          Seu nome é sugestivo, Ganhapão e seus passos buscam um dinheiro para comer. Como para Rango, personagem de Edgar Vásquez, qualquer idéia pode ser a salvação para acabar com a fome. Junto com Buscavida, imagina soluções enquanto deambula pela cidade. Entre os dois, pensam em vender sangue, trabalhar na estiva, juntar garrafas e ferro velho, tentar a sorte na loteria, inventar uma rifa inexistente, vender um cão vira-lata para um Instituto de ciências qualquer, programar um assalto.

          Mas, já não são aceitos para doar sangue, nem como estivadores; para jogar na loteria lhes falta o palpite de um sonho e andar com o focinho metido no lixo [...] não é digno nem dos porcos. E, pruridos de consciência impedem Ganapán de vender bilhetes falsos, entregar um cão para a morte ou praticar o roubo combinado.

          Assim, tão deprimente quanto as caminhadas sem glória e as buscas sem achados é o diálogo entre os dois no qual se mostra explícita a marginalização que os condena a serem elementos estranhos na sociedade porque nada possuem e nada lhes dá a possibilidade de possuir.

          Entre as perguntas e respostas trocadas se mostra um momento social de crise: vender jornais? (No país são poucos os que lêem.) Lustrar sapatos? (Não rende.) Arrancar macegas no jardim? (Quem paga?) Vender bilhetes de loteria? (Quem compra?) Rifar o salário? (Qual salário?) E as oficinas? E as fábrica? E os escritórios? (Quantos foram os passos recorridos para nada?)

          No romance de Eduardo Galeano, “Andanças de Ganapán” são páginas entremeadas a outras que falam de destinos mais cruéis: o dos torturados, o dos presos políticos, o dos assassinados pela repressão; páginas que lembram os atos da Inquisição na América; que refletem sobre a cidade dominada pela ditadura.

          No meio do horror, ainda que miserável e sem saída, Ganapán sem entender de política, guiado apenas pelo que há de mais elementar, o desejo de resolver o problema da fome, completa o esboço de uma sociedade em desequilíbrio.

          Os traços para compô-lo são fortes – o romance de Eduardo Galeano é de 1975 – mas se suavizam para construir esse personagem iluminado. Ganapán é bom, é amoroso, é honesto. Ele não tem o que vestir, anda calçado a meias e mora num casebre forrado de papel e quer, somente, trabalhar.

          Em nome de tantos como ele no Continente, Eduardo Galeano o fixou na ficção para que sua voz – quase sempre em murmúrios ou se elevando pouco e em vão – chegue, pelo menos, a algum ouvido predisposto a entender  razões.

domingo, 20 de julho de 1997

Vozes da narrativa. Os emigrantes

          O autor diz ter começado o romance em 1970: Caballo por el fondo de los ojos, publicado em 1976 pela Editora Planeta de Barcelona.

          Como epígrafe, uma frase de Leopoldo Marechal  a pátria é uma dor que nossos olhos não aprendem a chorar e uma estrofe de Rafael Guillén da qual os versos Passa como que um tropel de mansos cavalos pelo fundo de nossos olhos foram a origem do título desse romance de Gerardo Mario Goloboff. Sua publicação seguiu-se a de um livro de poemas, Entre la diáspora y octubre e precedeu a de um outro romance, Criador de palomas.

          Caballo por el fondo de los ojos (Cavalos no fundo dos olhos) termina com a transcrição de um texto de Macedonio Fernández, tirado de Museo de la novela la eterna, obra ficcional que discute preceitos teóricos do romance e ensaia novos modelos romanescos.

          Nesses dois marcos se enquadra o romance de Gerardo Mario Goloboff: um compromisso com a realidade argentina da década de 70 e uma experiência ficcional.

          Descendente de emigrantes europeus,ele nasceu em Carlos Casares, província de Buenos Aires em 1939. Um texto de seu livro sintetiza esse drama de que fala Vicente Huidobro, o que se estabelece entre a coisa e a palavra, dito que aparece, em epígrafe, antecedendo o primeiro capítulo, “Semillas” (Sementes). Nele se delineia a viagem dos que vem de longe para chegar à Argentina, lugar de terras boas e de paz. E, onde há que aprender a nova fala: ser outra vez criança, deixar que doam esses músculos da garganta que, por não terem nunca sido articulados, se opõem torpemente e deixam ouvir cacos de sons, consoantes arrastadas, sílabas desparelhas.

          E há uma busca de palavras nessa busca de encontrar outra pátria agora a ser construída no pampa: do nada, irão surgir a casa e as plantações de girassóis.

          E com o novo universo que se ergue, a coragem da expressão com seus sons e seus silêncios. Conquistas de palavras que se mesclam com as descobertas do dia a dia: um gosto novo na boca, uma nova música para escutar. E o trabalho cotidiano, as dúvidas do difícil transplante, a pátria recente a ser plenamente vivida. E esse querer possuir o idioma para poder começar a acreditar de novo.

          Então, há o desejo de deslindar a Babel no afã de que a palavra pão seja para todos, acalme a mesma fome, a mesma sede, o mesmo cansaço, o mesmo sonho, no mesmo pampa.

          Um ideal que irá permanecer para conduzir ações futuras. Nos capítulos seguintes se entrelaçam a vida dos descendentes, seus destinos truncados pelas lutas políticas. Os alijados da Europa atravessaram os mares procurando a paz. Ao se incorporarem, porém, à nova terra se incorporaram, igualmente, as suas agruras nesse mapa de violências e mortes que era a Argentina dessa época.

          Caballo por el fondo de los ojos é um romance estranho, difícil, de múltiplas leituras.

          Num país em que o político e o histórico e o literário se entrelaçam num mesmo tecer-se, como disse Gerardo Mario Goloboff em entrevista a Oscar Taffetani, essas leituras possíveis não estão isentas da presença da história e da política e ambas não podem prescindir dessa gente que veio para construir o país e para construir-se.


          E o romance é então, também, um meditar sobre essa chegada e esse anseio que passa pela conquista da palavra.

domingo, 13 de julho de 1997

O cronista de todas as coisas

           Pablo Neruda, “o cronista de todas as coisas” é como ele se rotula no poema “Artigas”, oitavo episódio de seu livro La Barcarola, publicado pela Losada de Buenos Aires, em 1967.Oito estrofes compõem o poema; todas, feitas de números desiguais de longos versos. Neles, cabem o herói e seu país. O herói é Artigas, o prócer da Independência do Uruguai. O poeta o chama de pai constante do itinerário, caudilho do rumo, centauro da poeirada, ginete do calafrio, soldado do campo crescente, capitão luminoso. O país é definido por uma estrofe inteira: Uruguai é palavra de pássaro ou idioma da água, / é sílaba de uma cascata, é tormento de cristais, / Uruguai é a voz das frutas na primavera fragrante / é um beijo fluvial dos bosques e a máscara azul do Atlântico. / Uruguai é a roupa estendida no ouro de um dia de vento, / é o pão na mesa da América, a pureza do pão na mesa.Com nomes de pássaros, o poeta os entrelaça e faz surgir a ação desse galopar de cascos sonoros até aparecer a bandeira e o grito azul espalhado no vento e a luta perdida e o exílio.

           É a crônica de um destino e de uma guerra, alimentada de metáforas, refletindo as grandezas da epopéia que se desenrolou nos campos do Continente e a sua vitoriosa derrota.

           Emergem palavras – planície, inclemência, pátria, sangue, aurora, silêncio, folhas, chuva, passos, látego, cepo, déspota, dores, - dando conta de um espaço. Outras palavras emergem, dizendo de sentimentos: tempestuoso, amargo, violenta, entristecido, desventura.

           Então aparece, na última estrofe, o nome do poeta, declarando a sua dívida para com o Uruguai. E a estrofe lhe pertence para dizer que não faltou a seu dever, não aceitou escrúpulos, esperou a hora, recolheu a inspiração nas plantas do rio, na sua areia, nos seus peixes, na amizade dos uruguaios para escrever essas palavras em memória de Artigas.

           São versos que nascem do culto por quem foi um verdadeiro filho do Continente nessa trajetetória de coragem pelos campos de seu país e da solidão sofrida nos país dos outros. Conduzidos pela emoção se inserem, como aqueles dedicados a César Vallejo, Rúben Azócar, Joaquin Murieta, em La Barcarola esse poema, sempre interrompido, que prossegue cantando o amor por Matilde, o amor pela sua pátria.

          Amores que não o fazem, no entanto, esquecer esse História da América que ele vai entremeando, ao longo do tempo, em poemas que não deixam que o destino de seus povos sejam condenados a um absoluto silêncio.

domingo, 6 de julho de 1997

O susto


            Na sua série Pequenas Grandes Obras, a Mercado Aberto, de Porto Alegre, lançou, em 1996, O netgro Bonifácio & outras histórias.Tanto “O negro Bonifácio” como os outros três contos que compõem o volume, foram tirados de Contos gauchescos de Simões Lopes Neto, obra publicada, pela primeira vez, em Pelotas, no ano de 1912.

Finalizando tragicamente o conto que dá título ao livro, assim como “No manancial”; e com aquele final feliz, esperado, das histórias de amor, “Melancia e Coco Verde”.

            “Trezentas onças” é diferente. Não trata do universo amoroso e de seus pequenos dramas ou grandes tragédias, mas de um episódio que, talvez, até pudesse ser chamado do cotidiano – o esquecimento de um objeto e certeza de sua perda – que leva a um ilimitado desespero.É o narrador o próprio protagonista do acontecido. - eu tropeava nesse tempo ele começa a contar, dirigindo-se a um interlocutor que o escuta sem interferir, nem por um momento, na narrativa. Refere-se a um passado - Parece que foi ontem – mês de fevereiro em que a cavalo, com a guaiaca recheada das trezentas onças de que fala o título do conto, ia comprar gado. O calor o faz interromper a marcha para uma sesta e, logo, o barulho da água corrente lhe dá vontade de se refrescar. Depois de se atirar na água e de tornar a se vestir continua o caminho, percorrendo as três léguas até a fazenda onde iria posar. É na hora de apear do cavalo que sente falta da guaiaca. O susto o impede de todo raciocínio até que, se repondo, percebe que o pequeno cão que o acompanhava late, torna a latir e corre para a estrada. Num relâmpago se lembra do banho, as roupas penduradas num galho de árvore, da guaiaca sobre a pedra.Imediatamente torna a montar e acompanhado pelo cachorro se propõe a refazer todo o caminho.

            Então, o ritmo narrativo se abranda na descrição da paisagem. São luzes, cores, algum movimento vagaroso no entardecer que vem trazendo a noite. Já é escuro quando ele chega novamente ao lugar onde deixara a guaiaca. Há silêncio, imobilidade, sombras. E, ao constatar a ausência do objeto que procurava surge o frio se instalando na sua alma, o pensamento de autodestruição para pagar a desonra de parecer desonesto, a mão na pistola. Mas, interrompe o gesto – já se benzera, já encostara a arma no ouvido – ao ver as Três Marias luzindo na água, ao sentir o cusco encarapitado na pedra, lambendo-lhe a mão, ao escutar o relincho de seu cavalo e a cantoria alegre de um grilo ali perto. Pressente uma mensagem divina naqueles sinais e inicia o caminho de regresso, fazendo as contas para pagar esse dinheiro que passara, com a perda, a estar devendo. Foi só quando entrou no galpão da fazenda onde os homens da comitiva, com quem cruzara ao sair, tomavam mate é que viu enroscada como uma jararaca na ressolana a sua guaiaca, perto da chaleira.

            O conto termina com as risadas dos homens, perguntando como lhe havia sido o susto e é como se na história, muito pouco tivesse acontecido.

            Impondo-se, a paisagem do campo que a maestria de Simões Lopes Neto torna inesquecível. É a presença da água, o ruído manso da água tão limpa, tão fresca rolando sobre o pedregulho; dos pastos serenos, verdes, clareados pela luz macia do sol morrente, manchados de pontas de gado que iam se arrolhando nos paradouros da noite; dos pássaros na brancura de um joão grande voando sereno, quase sem mover as asas. E da luz cambiante do fim de tarde, completando com vermelho dourado ou com um clarão afogueado, como de incêndio num pajonal o quadro onde, no silêncio, se movem o cavaleiro, o cavalo, o cusco.

            No todo, a expressividade do verbo (rumos da água pipocando no escuro) ou do adjetivo (noite que vinha peneirada), de uma comparação ingênua (coração dentro do peito luzindo como um espinilho ao sol, num descampado, no fim do meio dia).

            E a simplicidade do personagem- narrador, em acorde com a natureza que o rodeia tão profunda e confiantemente que irá lhe obedecer os desígnios quando não se deixa sucumbir diante do que acreditava irremediável.