domingo, 25 de maio de 1997

O aceno

          Sempre parecera espontaneamente natural que na década de setenta aparecessem três romances sobre os ditadores latino-americanos pois, mesmo quando intitulados presidentes, eles pululavam na América Latina. Igualmente, parecia ser imprescindível imortalizar-lhes as estranhas e perigosas figuras na ficção. Porque, não sendo possível a sua eliminação real, vê-los registrados, sobretudo no seu infalível ridículo, se constituía uma prazerosa catarse. Talvez, assim tenham sido escritos e tenham sido lidos El recurso del método, Yo, el supremo, El otoño del patriarca.

          No entanto, a gênese desses romances não ocorreu, embora tudo fizesse crer que assim fosse, simplesmente como uma fortuita opção individual mas a partir de um momento bem definido na vida de Carlos Fuentes e de Mario Vargas Llosa.

          No artigo que escreveu sobre Augusto Roa Bastos, “Augusto Roa Bastos: El poder de la imaginación” e que, reunido com vários outros, faz parte do volume Geografía de la novela (México, Fondo de Cultura Económica, 1993), Carlos Fuentes narra o episódio.

          Em 1967, se encontrava em Londres e comentava com Mario Vargas Llosa um livro de Edmund Wilson, Patriotic Gore, coleção de retratos da Guerra da Secessão norte-americana que ambos haviam lido e admirado. Ocorreu-lhes que um livro assim, com personagens latino-americanos não seria nada mau. Porém à galeria de retratos imaginados, imediatamente, se superpôs uma interminável lista de personagens históricos, tão loucos e poderosos que era difícil acreditar que, verdadeiramente, tivessem existido. O que não impediu que a idéia continuasse válida e, então, convidaram uma dúzia de escritores latino-americanos para participar do projeto. Cada um deveria escrever um romance, de no máximo cinqüenta páginas, sobre o seu tirano nacional favorito. O volume coletivo teria por título “Los padre de la pátria” (Os pais da pátria) e como padrinho, o editor francês, Claude Gallimard.

          No entanto, foi-lhes impossível coordenar o tempo e a vontade dos escritores e os planos fracassaram. Três deles, porém, levaram adiante a idéia e fizeram suas próprias obras: Gabriel García Márquez, Alejo Carpentier e Augusto Roa Bastos.
          Gabriel García Márquez, segundo Carlos Fuentes, se inspirou no venezuelano Gomez, no boliviano Peñaranda, no dominicano Rafael Trujillo e, sobretudo, nos ibéricos Francisco Franco e Antonio Oliveira Zalazar para criar o seu general todo-poderoso de El otoño del patriarca (1975).

          Um personagem composto pelo venezuelano Guzmán Blanco e pelo guatemalteco Manuel Estrada Cabrera será o general Ataulfo Galván de El recurso del método (1974) de Alejo Carpentier. E, Gaspar Rodriguez Francia que governou o Paraguai como “ditador perpétuo” de 1816 a 1840, ano de sua morte, o modelo de Augusto Roa Bastos para o seu Yo, el supremo (1974).

          Todavia, houve muitos que ficaram sem retratar e Carlos Fuentes os menciona: aquele que protegeu seu país da escarlatina, envolvendo as luminárias públicas com papel vermelho; aquele que anunciou a sua própria morte para castigar os que se atrevessem a celebrá-la; aquele que perdeu uma perna na guerra e a enterrou com grande pompa na Catedral.

          E, claro, uma infinidade de outros, ainda bem próximos no tempo e no espaço, mascarados ou não com os melhores epítetos democráticos e cujas ações não estão distantes daquelas que a ficção dos romancistas registra como fruto da imaginação: alimentar as arcas do governo com as jóias ofertadas pelas mulheres patriotas; salvaguardar bens, propriedades, concessões e monopólios das empresas norteamericanas; construir pontes sobre rios que nunca existiram, importar sementes que jamais atravessaram os mares.

          Isto é, sobra matéria no Continente, e muita, para essa ficção que de repente, faz lembrar as palavras da canção: o que dá prá rir, dá prá chorar.

domingo, 18 de maio de 1997

Lembrando o poeta

          Chama-se “Um soneto”, pertence ao Caderno H, publicado no “Letras & Livros” do Correio do Povo, de Porto Alegre, no dia 23 de outubro de 1982, embora tenha sido escrito trinta anos antes.

          É uma breve história triste: o reencontro, então, desencontro, de velhos amigos. No primeiro quarteto, que se inicia com um prosaico - Boa tarde... Boa tarde! já está presente esse algo de inquietação – a busca um do outro – que o caminhar lado a lado não elude.

          No segundo quarteto, a tentativa de, em nome do passado, Representar de novo a história antiga mas já com a certeza de que são outros – transformados pelo tempo – os que se encontraram. No terceto que se lhe segue fazem o plausível: separar-se com um eufemístico até breve e um grande espanto que o segundo terceto explicará: constatar que não existem mais aquelas duas pessoas que haviam sido tão amigas.

          Encerrada entre o encontro e a separação, a melancolia do que passou, do sentimento que desaparece, se transforma em nada.

          É o passar do tempo que tudo calcina, cristalizado em versos de extrema simplicidade. É ainda o Mário Quintana do soneto ao qual ele volta depois de ter publicado Canções. Neste “Um soneto”, de 1952, a forma fixa perde a rigidez – dela o poeta nunca foi prisioneiro – e é fortemente iluminada por esse poder de fazer versos alimentados pelo efêmero que foi tão próprio de Mário Quintana.

          Há nesse soneto a perfeição de seu decassílabo, as suas muitas rimas ricas, a harmonia de seu ritmo, a emoção de um encontro sem mistérios.

          Sobretudo, há nele contida a imensa sabedoria de alguém que não ignora o quanto existe de cambiante e de infiel na alma dos homens.

domingo, 11 de maio de 1997

A espera

          Alfonsina Storni nasceu em 1892 na Argentina e publicou o primeiro livro de versos aos vinte e quatro anos, La inquietud del rosal cujo título talvez seja uma síntese de toda a sua poesia que virá depois. Porque Alfonsina Storni viveu em desassossego, em busca de um amor que, seus poemas dizem, jamais a colmou. Uma roseira ela foi nas suas palavras exuberantemente mergulhada na natureza e cujo tom, por vezes agressivo não esconde a profunda ternura, a profunda paixão que ela nutre pelo que vive a seu redor.

          Em seus primeiros versos existe, talvez, algo de romântico que se vai endurecendo na experiência da vida, no passar dos anos a lhe ensombrarem os sonhos e fazer surgir essa poesia de antagonismos onde há luzes e sombras; onde há fraquezas e valentias.

          Raramente, Alfonsina Storni se mostra luminosa como no poema “Sábado” (que faz parte de El dulce daño, publicado em 1918), expressão límpida de uma alegria de viver. Primeiro, ela é alguém a se mesclar com as plantas, com a emanação da terra, com a água, com o perfume das flores. Depois, será o ritual da acolhida nos sons de louças e cristais, no roçar da toalha de mesa e na sua espera sob o sol da manhã.

          Construído como breve narrativa prosaica (me levantei cedo, deitada na grama, penteei meus cabelos), nela vai se entrelaçando um dizer cujo poético advém, precisamente, dessa simplicidade cotidiana que uma ou outra expressão – douradas migalhas, garças melindrosas – modifica e torna quase feérica.

          Se a realidade se impõe com uma preciosa notação de tempo ou com os ruídos da casa, o que liricamente domina é esse esperar feminino, felicidade que se antecipa ao momento feliz.

          Esperava-te são as últimas palavras do poema e poucos versos de Alfonsina Storni expressaram tão amorosa feliz certeza. Um feliz momento de luz nesse seu universo sempre mergulhado em incertezas.

domingo, 4 de maio de 1997

Para Jorge Amado

           Em março, deste ano, foi publicado o número 3 de Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles.O primeiro número foi dedicado a João Cabral de Melo Neto, o segundo a Raduan Nassar e, este terceiro, a Jorge Amado.

           Trata-se de uma revista de cuidada diagramação, enriquecida com belas fotos da terra do escritor além daquelas outras, inúmeras, que o mostram desde o seu primeiro ano de idade até convalescente da angioplastia a que foi submetido, em 1996.

           A matéria que a compõe é feita de uma “Memória Seletiva”, apresentação cronológica, ano atrás ano, dos acontecimentos de sua vida, de uma longa entrevista concedida à equipe da revista e a seus convidados (Ana Miranda, Lilia Moritz Schwarcz, Francisco Iglésias, Dias Gomes, José Paulo Paes e Wilson Martins) cujas cem questões versaram sobre Literatura. O objetivo, ao centrar as perguntas no terreno literário, foi procurar oferecer ao leitor a oportunidade de conhecer melhor o que o escritor pensa atualmente sobre seu ofício.

           Em tão longa entrevista, nem sempre as respostas devem ter correspondido às expectativas de quem formulou as perguntas. Mas, com certeza, do homem não se esmaeceram os contornos, também delineados sob a rubrica que congregou Darcy Ribeiro, Mario Vargas Llosa, Nelson Pereira dos Santos, Celso Monteiro Furtado, Alice Raillard, Oscar Niemeyer. Nessas Confluências está presente o amigo e, então, as suas outras qualidades. Inúmeras.

           Darcy Ribeiro lembra esse seu poder de comunicação que tão igual se apresenta na Bahía como em Paris ou nos seus romances; esse destino que fez dele o romancista brasileiro que mais teve livros apreendidos pela polícia e, também, o romancista brasileiro mais traduzido e mais lido no mundo inteiro. E Darcy Ribeiro confessa a sua admiração pelo escritor que todo mundo quer ler e que obriga a gente a tomar partido contra as injustiças desse mundo.

           Injustiças que, em relação a Jorge Amado – escritor, parece não terem ocorrido haja visto Guia, a rubrica em que são referenciadas as suas obras e as traduções que delas se fizeram, assim como os livros e artigos que sobre elas se escreveram.

           Trabalhos críticos de Fábio Lucas e de Eduardo de Assis Duarte completam a revista, assim como o “borrão” de duas cenas iniciais do livro que ele está escrevendo “A apostasia universal de Água Brusca” e as variantes da primeira página do conto “Do recente milagre dos pássaros acontecido em terras de Alagoas nas ribanceiras do rio São Francisco”. E, ainda, a correspondência de três amigos: um bilhete de Mário de Andrade, uma carta de Otto Lara Rezende e outra de Pablo Neruda.

           Cadernos de Literatura Brasileira ao proporcionar aos admiradores e aos estudiosos de Jorge Amado um material inédito de grande valor ao qual se acrescentam as belíssimas gravuras de Caribé e de Carlos Scliar, se constitui uma prova de que é possível, ainda num país de Terceiro Mundo, realizar edições sérias e inteligentes e das quais o bom gosto não permaneça alheio.