domingo, 26 de janeiro de 1997

Relatos testemunhais

          Na sala fazia muito calor. Apertados nas portas e janelas, os que haviam chegado para escutar. Os cinco homens estavam sentados diante do juiz. Um deles falava explicando quem havia sido morto e quem eram eles.
 
          José Dolores Cumplido, o morto. Havia saído para vender gado e fora trazido de volta, sem cabeça. Era rico e aos poucos lhes havia comprado os cinco hectares que possuíam. Como um filtro que gota a gota enche uma tina. Também era ele quem lhes emprestava dinheiro e quando se haviam dado conta, deviam tanto que, diziam, se pagassem com as próprias filhas, ainda assim lhes ficariam devendo.

          E a voz continuava explicando que, realmente, tinham razões para matá-lo. Mas que tal não haviam feito porque não iam acabar com uma criatura de Deus, porque sim, pois isso é pecado.Assim como se iniciou numa ingênua negativa, assim termina o relato: Torno a repetir: nós não o matamos.
 
         É essa expressão que dá título ao conto “Nosotros no lo matamos” que faz parte do livro Una década (Plaza & Janes, Colômbia, 1983), do colombiano David Sánchez Juliao.
 
          Pioneiro na América Latina de textos especialmente escritos para serem gravados em discos e cassetes, neles, é evidente o testemunho que, no dizer de Jacques Gilard que é quem assina a Introdução do livro, surge, claramente, o desejo de captar vozes humanas reais a falar longa e ininterruptamente sobre as próprias vivências.

         Em “Nosotros no lo matamos” é a expressão de um nós na situação de vítimas de uma acusação da qual, para se defender, só conta com a própria palavra. E essa palavra é expontânea e eloqüente, rica.Nascida do sofrimento de quem é deserdado, não da sorte, mas do sistema político social regente de um universo que legitima incongruências: Agora, quem nos comprou o primeiro hectare de terra? Ele. Quem nos comprou o segundo e o terceiro? Ele. E os outros? Ele. E as terras dos nossos ranchos? Ele, quem mais senão ele. Ele, só ele. E à luz das coisas como eram, são e foram organizadas, aquilo estava bem feito, segundo a gente se oriente pela lei que não é mais do que um papel. A quem a gente irá se queixar? A ninguém! Ali ficamos, pois, sem terras, trabalhando à vontade de Deus e da fome.
 
          Palavras que já devem ter sido pronunciadas mil vezes no Continente. E que David Sánchez Juliao, ao se servir de seu gravador no intuito de elaborar relatos testemunhais – o escritor aparecendo como que escondido atrás de seu aparelho, propondo textos que antes de serem escritos com reconhecida exigência formal tinham sido falados por outros diz, ainda, Jacques Gilard – ao gravá-las e ao escrevê-las as reconhece como expressão primeira dessa necessidade de ouvir e de contar histórias. Histórias que no Continente nem sempre tem o desejado ou o esperado final feliz.

domingo, 19 de janeiro de 1997

Entre um mate e outro


Todos disputam direitos,
mas, amigo, sabe Deus
se conhecem seus deveres
...
Que direitos nem que diabos!
Primeiro é a obrigação;
cada um cumpra com a sua
e depois será a razão
que reclame seus direitos.
              Bartolomé Hidalgo
 

            A poesia gauchesca surge com o “cielito” (quarteto com rima assonante, seguido de um estribilho no qual sempre aparece a palavra “cielito”) de Bartolomé Hidalgo, nascido em Montevidéu em 1788.

            Compreendendo ser a linguagem típica dos pajadores, o veículo de comunicação entre aqueles que aspiravam conquistar a liberdade política, ele se valeu dessa linguagem para protestar contra a tirania dos invasores, no caso, os espanhóis na América, e para exaltar o amor pela pátria em formação.

            Entre suas composições diz Domingo A. Caillava na História de La Literatura gauchesca en el Uruguay (Montevidéu, 1945), - odes dramáticas, hinos, epitalâmios, romances – aquela que lhe deu renome e celebridade foi o “diálogo”, gênero muito apreciado na época.

            São três os diálogos de sua autoria: “Diálogo patriótico interesante entre Jacinto Chano, capataz de una estancia en las Islas del Tordillo y el gaucho de la guardia del Monte”, “Nuevo diálogo patriótico entre Ramón Contreras, gaucho de la guardia del Monte y el capataz de una estancia en las Islas del Tordillo” e “Relación que hace el gaucho Ramón Contreras a Jacinto Chano, de todo lo que vió en las fiestas mayas de Buenos Aires en 1822”.

            Esses diálogos são poemas narrativos onde a estrutura é sempre a mesma: eles se iniciam com o encontro dos interlocutores (um vem de visita ao outro), o convite para apear do cavalo, o oferecimento do chimarrão, o contar das notícias sobre acontecimentos políticos, o expressar de opiniões.

            Os interlocutores se exibem, então, como gaúchos patriotas que, na sinceridade das assertivas, se mostram tal como são nesse linguajar popular e rico de figuras em que se expressam.

            E o diálogo que se instala manso se transforma e diz dos anseios de igualdade e dos anseios de liberdade que os homens que lutam presumem devam ser para todos. Dizem das preferências dadas aos aduladores, dos gastos públicos, enquanto as estradas permanecem intransitáveis e os edifícios inconclusos e os pensionistas do Estado morrendo de fome.

            Incongruências que fazem desse presente em que viviam, algo não somente para lamentar como para levar ao surgimento desse patético desejo de corrigir, de melhorar, de vislumbrar um futuro.

            Então, no cenário simples e brando das campanhas do sul do Continente, combativo e forte há um cantar verdades.

            Entre um mate e outro.

domingo, 12 de janeiro de 1997

A condessa

            Olímpio Borges da Fonseca e Menezes era um republicano ferrenho, más, em pleno campo rio-grandense construiu um castelo medieval, perigosamente rondando o mau gosto. E casou com uma condessa austríaca.

            No que o autor, Luiz Antonio de Assis Brasil chama uma série, Um castelo no pampa, composta de três romance (Perversas famílias, Pedra da memória, e Os senhores do século) é contada a sua história desde o dia em que nasce até o momento de sua morte. Naturalmente, a ela se agregam muitas outras entre as quais a história da condessa: Charlotte Von SpelHerb, órfã, herdeira de propriedades nos arredores de Engelharststeten, perto da Hungria que visita, em Paris, a Exposição Universal.

            Olímpio arrebata-se por ela e seu pedido de casamento é aceito com tal rapidez que o faz presumir tratar-se de uma condessa com as finanças arruinadas e na expectativa de um bom casamento.

            E o casamento se realiza – o noivo era rico pelos dois – e a traz para o Brasil onde sua vida acompanhará a de Olímpio, latifundiário e político e ela será uma presença nos três romances que formam Um castelo no pampa.

            Presença que se instala a partir de uma banal informação do narrador ou de um personagem (volta sozinha da Europa; não freqüenta a sua casa na cidade; aperta a campainha para chamar a empregada; responde a alguém com uma ou duas palavras, por vezes definitivas; dá alguma ordem ou se presume que a tenha dado). Ou, a partir de um episódio complexo como o da visita da amante a seu marido no castelo ou aquele em que é relatada a sua morte.

            Mas, salvo o uso de um ou dois verbos pensou (que logo teremos o outono), decidiu (que ficaria no banho até o anoitecer), é um personagem perfeitamente construído do exterior, somente pelo olhar dos demais personagens ou muito breves referências do narrador.

            Para Olímpio, quando a conhece em Paris, sua magreza não é agressiva, antes diáfana. Mais tarde a verá bela, aristocrática.      Para os frequentadores do Clube Comercial de Pelotas, ela é seca, mais alta do que o marido. O cunhado no teatro a enxerga tesa, muito branca e magra e para o filho Proteu a sua gravidez não chega a dobrar a nobre verticalidade de um ser acostumado às elegâncias do espírito e do corpo. E, assim, a encontra o marido ao voltar de uma de suas ausências: ereta em sua dignidade, emoldurada pela buganvília. E, assim a vê o neto Páris vertical, tesa e magra e assim, esguia, pálida a vê Antonia, a copeira.        As mulheres observam-lhe os trajes no dia 1º de janeiro de 1900 quando se exibe em cetim pesado e azul e tules e rendas e bordados em ouro e gargantilha de pérolas e diamantes. A mãe de sua futura empregada a presume rica com seu colar de pérolas e para o pequeno cunhado é uma jovem dama perfumada.

            Impassível, sarcástica, preconceituosa, ela inquire, determina, ordena, se ocupa de seus bordados, seus pincéis, seus jogos de carta, reza, escuta rádio, coordena a legião de empregadas.

            Poucas vezes é apanhada em uma emoção. Se indignada, fecha os olhos e comprime os lábios numa cólera surda. Sabe-se de sua mágoa pela incapacidade demonstrada pelo jardineiro em dizer, em inglês, após muitos anos de serviço eu sou Jonas, o jardineiro. Mas, se discute com o filho, se lhe escreve uma carta com queixas e reprimendas, se conversa com a cunhada sobre a filha doente, tudo isso ficará ausente da narrativa.

            Como também seus afetos. Ignora o cunhado, recebe os norte-americanos à distância e à distância permanece de sua única filha: quando, quando, mamãe você me enxergará? indaga Selene numa pergunta não formulada.

            Com o passar do tempo, se transformará. Os cabelos embranquecem, as mãos se cobrem de manchas escuras, as articulações enrijecem. Emagrece mais um pouco, passa a ler com óculos. E seu adorável sotaque se acentua. Bebe conhaque e fuma cigarrilhas cubanas. Já não corrige as empregadas, não adverte, não aconselha. Fascinada por Hitler, depois da derrota da Alemanha na Segunda Guerra, ela não mais sairá da Biblioteca.

            Toda essa gama de informações sobre ela ao longo dos três romances não a deixa, porém, menos distante. Porque personagem talhado a partir de uma focalização externa, dela tudo se presume e muito se ignora.E´dada a conhecer apernas por algo de sua aparência, eventualmente por seu traje, por um hábito ou gesto ou expressão.

            Nas páginas dos três romances, é uma figura esmaecida e guardando o mistério de suas motivações interiores que,no entanto, é ricamente plena de significados que ultrapassam as tsimples funções e os simples perfis romanescos.

domingo, 5 de janeiro de 1997

O desejo

          Mais de trezentos artigos foram escritos sobre ele na Ilha. Quase outro tanto, ele os escreveu. José Antonio Ramos, nascido en La Habana no dia 4 de abril de 1885.
          Com o romance Humberto Fabra, publicado em Paris quando ele tinha vinte e três anos, inicia a sua carreira de romancista, dramaturgo e ensaísta da qual Caniquí será um dos importantes momentos.

          Trata-se de uma bela obra romântica, construída a partir da figura de Mariceli. Muito jovem e rica, a exagerada educação religiosa a faz confundir os sentimentos que nutre pelo primo com uma nefasta inclinação mística.

          Então, entre os dois há silêncios, mal entendidos, desencontros e uma sofrida separação até que os sentimentos venham a se definir.

          Entremeando-se à narrativa, o cenário de uma velha cidade cubana com suas festas religiosas, suas relações sociais profundamente regulamentadas  é tão importante quanto as breves digressões sobre a política vigente em Cuba nos primeiros anos do século XIX: a Metrópole ordenando e exigindo, a Colônia se submetendo.

          Insolência e intransigência por parte dos peninsulares, pugnando por idéias “rançosas”, opondo-se a qualquer desejo de progresso dos habitantes da Colônia enquanto, no Continente, as lutas pela liberdade decidiam os caminhos.

          Nessa oposição entre “godos”, os espanhóis e “mulatos”, os cubanos, havia os que se embriagavam com sonhos da liberdade que os franceses tinham experimentado uns anos antes e os que pensavam não estar o povo preparado para a independência porque lhe faltava educação, sentido econômico e prático da vida, restando-lhe, apenas, curvar-se diante da autoridade da metrópole, “paternal”, “ilustrada” que pretendia domesticá-lo.

          Na verdade, embora em Caniquí, José Antonio Ramos esteja a falar dos ibéricos, “os donos” de turno, está pensando na outra mais recente vassalagem à qual Cuba se submeteu no instante mesmo em que se libertava do jugo espanhol.

          Porque, nas palavras introdutórias ao livro, ele dirá que a vassalagem à usura ianque em Cuba parece se acentuar com graves sintomas de decomposição social e que seu romance só será entendido muitos anos mais tarde.

          Recém corria o ano de 1935 e hoje ninguém ignora a que ponto chegou em Cuba essa decomposição social. Tampouco ninguém ignora o quanto o poderio ianque jamais deixou de querer o usufruto da Ilha que perdeu.

         Assim, quando José Antonio Ramos faz dizer a um de seus personagens que se estiverem dominados pela avidez de Liberdade na Ilha, os Amos Brancos jamais irão viver em paz. Mais do que um desejo, ele formulou um vaticínio.