domingo, 27 de outubro de 1996

Os recursos do dizer . 3


              Em 1973, foi publicado pela Noguer de Barcelona; El Hombre que trasladaba las ciudades de Carlos Droguett. Faz parte do que a historiadora francesa Jaqueline Covo chamou, a respeito de sua obra, a trilogia da conquista: romances que refazem na ficção a crônica oficial desse adentrar-se dos espanhóis em terra da América, no século XVI. No seu quarto e último capítulo é narrada a chegada do capitão Francisco de Aguirre à cidade de Barco, seu encontro com o governador da cidade, Juan Nuñez de Prado que então é preso e desterrado.
 
          O que então ocorreu ficou registrado na Crônica da Conquista: a fundação de uma cidade e suas quatro mudanças antes de ser Santiago del Estero. No romancista, o propósito de relatar fielmente os fatos, submetido às fontes históricas que o uso de recursos narrativos e estilísticos transformaram numa belíssima obra de ficção.
          Em El hombre que trasladaba las ciudades, os personagens serão fixados em rápidos traços que se referem menos ao físico que a estados de alma. O cenário irá se diluir na neblina e na distância e os ruídos da natureza se mesclarão aos ruídos efêmeros da vida cotidiana dos recém chegados.         

Neste registro de imagens e de vida em movimento, expresso pela conjunção alternativa ou, se fará presente o impreciso. Ele estará nos estados de alma, na indicação de um espaço ou numa notação temporal.A voz narrativa mostrará, por vezes, o personagem entre dois sentimentos, entre duas verdades: furioso ou melancólico; pregando a felicidade ou a desgraça; mostrando desprezo ou restos de doença; suspirando por uma trança ou sorriso ou pezinho; vitimado pelo terror ou frio ou dúvida. Também os mostrará entre duas ações: se eles advertem ou perguntam, se escutam ou relembram, se o padre admoesta, ou absolve ou excomunga.


            Antropomorfizadas, a bandeira e as medalhas do padre Carvajal, igualmente serão regidas pelo signo da alternativa. A bandeira, pressagiando algo de bom ou de terrível; as medalhas que tilintavam quando da agressão por parte dos soldados ao padre, querendo ser punhais ou saquinhos de veneno, isto é, instrumentos de defesa.
          Essa imprecisão se mostrará igualmente na indicação do espaço (no meio do ruído da selva ou das conversas) e do tempo (até a Páscoa ou a próxima Quaresma). Junto com as dúvidas que assaltam Juan Nuñez de Prado (quantas carretas se moviam sob a chuva? Quantos doentes havia na cidade?) e com suas indecisões (enforcar ou não os dissidentes, matar ou não os enfermos), essas imprecisões darão ao texto uma ambigüidade que, sem negá-lo, diluem os contornos do fato histórico, cristalizado pelo linguajar oficial.

          E, assim, colmam de vida, com tudo o que ela tem de transitório, a ação dos primeiros ibéricos no Continente. Ao mostrá-los nas suas inseguranças e fraquezas, nas suas certezas que nem sempre correspondem às verdades, desenham perfis: o dos que foram instrumento da vontade maior ou o dos que dela foram vítimas.

domingo, 20 de outubro de 1996

Os recursos do dizer. 2



              Em 1973, foi publicado pela Noguer de Barcelona; El Hombre que trasladaba las ciudades de Carlos Droguett. Faz parte do que a historiadora francesa Jaqueline Covo chamou, a respeito de sua obra, a trilogia da conquista: romances que refazem na ficção a crônica oficial desse adentrar-se dos espanhóis em terras da América, no século XVI. No seu quarto e último capítulo é narrada a chegada do capitão Francisco de Aguirre à cidade de Barco, seu encontro com o governador da cidade, Juan Nuñez de Prado que é, então desterrado.
 
Na riquíssima expressão de que é feito o romance El hombre que trasladaba las ciudades, o recurso mais prodigamente usado é a repetição. E de maneira obsessiva como o comprova, nas quarenta e quatro páginas que formam o último capítulo, o número de palavras repetidas: ao redor de cento e oitenta ou seja, uma média de quatro por página.
Carlos Droguett repete adjetivos, advérbios, conjunções, demonstrativos, numerais, preposições, substantivos. Destes, cerca de oitenta. Palavras que se repetem, uma após a outra, na fala de um personagem: rostos,rostos,rostos,olhos,olhos,olhos. Ou que se seguem imediatamente às anteriores, separadas por vírgula, constituindo-se a segunda parte da oração seguinte:viram as luzes, as luzes das tochas passear entre as árvores.

Aparecem expressões repetidas mas separadas por uma oração: Chorava silenciosamente, iria soluçando ainda, afundado na sela, entre a roupa, tiritando de febre e solidão, adormecido entre suas lágrimas, suando de febre e solidão. Ao repetir advérbios, pode fazê-lo de maneira chã ao usar, por exemplo, o advérbio muito na expressão  muito alto e muito só, quando o achado estilístico se mostra em relação ao sujeito e ao predicado da frase:  o sino da igreja se queixava lentamente a essa hora, muito alto e muito só, numa antropomorfização da igreja a se queixar na solidão. Também pode parecer trivial o emprego de advérbios em mente. No entanto ,ainda que modifiquem adjetivos de uso corrente, oferecem significados inusuais ao agrupar elementos díspares: galopavam outros cavalos, cuidadosamente ocupados, cuidadosamente retidos por mãos e por insultos. E existe a repetição de um adjetivo cujo sentido fica mais forte pelo complemento nominal a lhe conferir significados que, embora distintos, completam a situação dos soldados: soldados mortos de fome e mortos de hediondez.

Casos há em que a primeira palavra, no caso um substantivo, é completada por um adjetivo e a segunda por um complemento nominal, mediando, entre elas, sentenças narrativas: sussurro medroso [...] sussurro de alívio. Ainda, a presença do possessivo numa enumeração que pretende dizer do ódio  (talvez) sentido pelo personagem. Ódio que estaria  na sua cabeça, no seu cabelo, na sua memória, na sua garganta, na sua roupa, no seu peito, nas suas coxas, nos seus rins, na sua arrogância, nos seus torpes desejos de ambição ou vingança.

Tais como estas observações, concernentes às categorias gramaticais e ao lugar que elas ocupam na frase sobre as palavras que se repetem, outras podem, igualmente, serem feitas, considerando os sentimentos e as ações de personagens. Muitas vezes, elas são assaz ricas tanto quanto à expressão pleonástica como à nuança psicológica que pelo agir e pelo sentir esboça  perfis. Assim, o capitão  Aguirre, afrontando Ardiles, o outro capitão, lhe toma a espada – teria gostado de embrabecer, teria gostado de embrabecê-lo – e numa expressão verbal repetida, expressa duas vontades: a que lhe seria pertinente e a que desejaria provocar no outro.  Também, ao responder para o capelão que o increpa sobre seus desígnios, pretensamente justos, ele responde:  a alguém matarei, mas não sem justiça e não sem ódio, a ninguém matarei que não mereça ser assassinado. Há casos, ainda, em que a palavra está  na voz do narrador e ao ser repetida, na voz do personagem: Guevara olhou suas mãos e disse olha minhas mãos.

Usado com perfeição, trata-se de um recurso que adquire um maior significado se for considerada a estrutura da obra na qual ele se inscreve: repetitiva nesse fazer e desfazer da cidade que é o tema do romance: uma história louca que o romancista encontrou nas Crônicas da Conquista da América: Juan Nuñez de Prado funda com 60 soldados a cidade de Barco em território que Valdívia pretendia estar sob sua jurisdição. Para fugir a ela, Juan Nuñez de Prado muda a cidade mais para o leste. No entanto, deserções, ataques de índios e más colheitas o levam a efetuar uma nova mudança, levando a cidade para mais longe.

Daí uma estrutura romanesca enlaçada no anseio sempre renovado do capitão Juan Nuñez de Prado de levar a cidade mais adiante.  No repetir-se a sua mudança, mudança que é oriunda do imperativo inescrutável da vontade humana, o dizer do romance, em uníssono com o que narra, se faz igualmente repetitivo.

Um todo, como uma grande metáfora da História do Continente sempre feita das trágicas repetições.

domingo, 13 de outubro de 1996

Os recursos do dizer. 1


              Em 1973, foi publicado pela Noguer de Barcelona; El Hombre que trasladaba las ciudades de Carlos Droguett. Faz parte do que a historiadora francesa Jaqueline Covo chamou, a respeito de sua obra, a trilogia da conquista: romances que refazem na ficção a crônica oficial desse adentrar-se dos espanhóis em terras da América, no século XVI. No seu quarto e último capítulo é narrada a chegada do capitão Francisco de Aguirre à cidade de Barco, seu encontro com o governador da cidade, Juan Nuñez de Prado que é, então desterrado. 
 
          Alain Sicard, professor da Universidade de Poitiers, França, no Colóquio que essa Universidade realizou em maio de 1982, sobre a obra de Carlos Droguett, ao falar sobre a paixão da escrita que sempre dominou o escritor chileno, o define como um apaixonado louco pelas sinuosidades do idioma.Afirmativa que, sem dúvida, é exata e pertinente para definir o autor de uma expressão lingüística que faz de El hombre que trasladaba las ciudades uma das mais belas e perfeitas obras escritas neste século e cuja riqueza formal, emergindo de cada um dos recursos, ainda que o mais simples e despretensioso, como o uso da comparação, é imenso.



           Nas quarenta e quatro páginas que compõem o quarto, último e o mais breve capítulo do romance, elas se destacam, sobretudo, pelo inusitado da composição.  As comparações que se referem à qualidades ou à ações, como as citadas por Wolfgang Kayser na sua obra Interpretación y análisis de la obra literaria, no romance de Carlos Droguett, por vezes,  são bastante breves : clara e delgada como uma facada,  cavalo inteiramente seco, penteado e lustroso como se o houvessem fabricado para ele. Na verdade, sobressaem aquelas de forma detalhadas, lembrando as comparações épicas, próprias dos longos poemas clássicos. É o caso desta, em que o elemento real, as carretas, se confronta com vários elementos imaginários, ainda que seja possível se tornarem realidade: foi caminhando apressado, olhando com dissimulação as carretas, com duvidoso e vago desassossego, como se estivessem cheias de ameaças visíveis e prováveis, de índios pérfidos, de sujos traidores que surgiriam sigilosos delas, de qualquer noite, quando tivesse se pacificado o medo, a solidão, o silêncio que haviam deixado na cidade a prisão e o destino de Juan Nuñez de Prado.

          De maneira dispar, se constrói a comparação em que um elemento, respiração, é confrontado com: fumaça da terra, perfumes, plantas, flores, raízes ao qual se acrescenta, ainda, uma condição circunstancial: raízes quando vem rompendo alegres ou pesarosos os torrões e empurrando as pedras porque amanhã, dentro de três dias, será primavera.

          Em outro caso, o primeiro elemento algo indefinido, coisas concretas, se confronta, três vezes, sempre introduzido pela palavra como com dois elementos objetivos, reais (carne, sangue) significando corpo e outro elemento abstrato, significando sofrimento. Nessas três vezes, a expressão por exemplo reafirma o coloquial do texto, um fluir da consciência do padre Carvajal ao ser amarrado e golpeado pelos soldados do capitão Francisco de Aguirre que chegou na cidade para exercer a justiça: coisas concretas como tua carne, por exemplo, como teu sangue, por exemplo, como teu sofrimento, por exemplo.

          Verdadeiramente diluídas no texto de El hombre que trasladaba las ciudades, essas comparações não se constituem a marca primeira da escrita de Carlos Droguett. No entanto, em acorde com o todo ao qual pertencem, são prova de uma capacidade inventiva que se alimenta do denso e do afetivo porque nesse escrever da História da América é do homem e de seu trágico destino no Continente que o escritor chileno está a falar.

domingo, 6 de outubro de 1996

Carlos Droguett : In Memoriam

          ... um pouco depois das dez da manhã, manhã inteiramente hibernal e suiça, grande frio, uns cinco graus abaixo de zero, céu na realidade mais cheio de bruma do que de nuvens, esse ambiente implacável e trágico que deixava louco o louco Nietzsche quando magnificamente se queixava... eis aqui o outono que nos fere o coração com sua espada de gelo... escrevia numa carta do dia 7 de dezembro de 1995 o romancista Carlos Droguett.

Desde 1975, ele vivia em Berna num exílio sem retorno. E, nesse espaço alheio, escrevia desesperadamente – nunca escreveu tanto como no exílio – sobre o que acontecera no seu país a partir do dia 11 de setembro de 1973 quando grandes textos seus já haviam sido publicados.


Queria dar voz a esses chilenos que não saíram ou não puderam sair do país e que nos dois anos em que ainda permaneceu no Chile teve o privilégio de conhecer: testemunhas do que então ocorria, alguns desses heróis que, como estava programado pelo fascismo, deveriam morrer na tortura ou se desvanecer na outra morte natural dos gorilas, o desaparecimento.

Em “Literatura do Exílio”, fala desses homens que enfrentaram a delação, a prisão, a tortura, o desaparecimento, o assassinato e que em lugar de se desesperar, de se anular, em lugar de emudecer para sempre, deixaram uma luz, uma palavra, um rastro balbuciado de seu padecimento: os artistas natos que falam, sonham, esperam, escrevem resgatando experiências que não saíram do tinteiro mas dos terríveis e humilhantes sofrimentos das perseguições e dos cárceres. Também, daqueles que, diante da morte, foram levados a usar uma ferramenta que não era a sua, o idioma, para deixar, ainda que escrevendo uma única vez, a marca de sua alma antes de serem conduzidos ao extermínio.

Nesse momento em que refletia sobre a Literatura do exílio que medrava pelo mundo afora e sobre o seu valor, para Carlos Droguett era uma certeza que das palavras originadas do padecimento extra-literário e extra-artístico irão nascer os novos escritores do Chile: vozes sem uso e sem cansaço que irão construir, quando o fascismo já tiver desaparecido, a ressurreição do país.

E os anos se passaram e diluíram-se as esperanças.

No exílio, em Berna, no amado e odiado exílio, Carlos Droguett, que um dia esperara retornar ao Chile, morreu no dia 30 de julho de 1996.