domingo, 14 de julho de 1996

O jantar

 
          Com voz suave de fantasma, ela o mandou entrar. Tinha os cabelos brancos, era delgada e estava de luto. Pablo Neruda tinha lhe pedido pouso depois de um longo recorrido em que acabara se perdendo em trilhas desconhecidas.

          Saíra sozinho, a cavalo, adivinhando caminhos. No capítulo “La casa de las trés viúdas” de Confieso que he vivido conta essa aventura. Primeiro, a descrição da paisagem. Ainda rude, ainda inexplorados os litorais rochosos, as intermináveis areias, os lagos, os bosques de avelã, as samambaias gigantes, as montanhas se agigantam de beleza e de vida na expressão mágica, própria de Pablo Neruda. Ele se encanta com os pássaros e com os pequenos animais que lhe cruzam o passo até ser, no meio da imensidão deserta, surpreendido pela noite e, um pouco assustado, procurar abrigo. Então, chega ao pórtico branco daquela casa tão insolitamente perdida na solidão.


          Nela, há trinta anos viviam as três mulheres. Duas nascidas em Avignon e a terceira já chilena de nascimento.
          Foi recebido na sala de grandes cortinas vermelhas e lustres de bronze e cristal, uma sala do século passado, indefinível e inquietante como um sonho.
          Na melancolia da noite fria e das palavras proferidas entre elas e o poeta, irrompe de súbito a alegria, quando ele pronuncia o nome de Baudelaire. Em plena montanha, rodeadas de alguns camponeses e de alguns empregados, só elas podiam ler Les fleurs du mal.
          Ainda estavam presas à França por esses versos, como longe da pátria no tempo e com os mares de permeio, lhe estavam, ainda, ligadas ao cultivar a sagrada herança da boa mesa.
       Convidado para jantar, Pablo Neruda fica atônito ao se deparar com uma mesa redonda de longas toalhas brancas, iluminada com dois candelabros de prata cheio de velas acesas. A prata e o cristal brilhavam naquela mesa surpreendente onde lhe foram servidos pratos requintados e um vinho envelhecido de acordo com as leis francesas.
          Quarenta e cinco anos depois, Pablo Neruda relembra essas três mulheres que na sua selvagem solidão lutaram sem proveito algum para manter um antigo decoro, defendendo o que aprenderam de seus antepassados. E se pergunta: o que terá sido delas, desterradas com seu livro de versos no meio da selva, de suas garrafas de vinho, de sua mesa resplandecente, iluminada por vinte velas, da casa branca perdida entre as árvores.
          O tempo que passou diz para o poeta que a morte as levou e que talvez a selva tenha devorado a casa remota. Também esse fichário onde, ao longo de trinta anos elas anotaram o nome, a data da visita e o cardápio servido de cada um dos vinte e sete viajantes que a negócio, por curiosidade ou levados pelo acaso foram por ela recebidos. Caso voltassem, elas, buscando a perfeição na hospitalidade, não serviriam as mesmas iguarias já oferecidas antes.
          Pablo Neruda, talvez como todos os outros, não mais tornou a vê-las. E nesse rememorar do que lhe pareceu um sonho estranho e encantador ele as salvou do esquecimento.

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