domingo, 28 de julho de 1996

Sonhos e desvarios, fragata e bergantim


Não me constranjo de sentir-me alegre,
De amar a vida assim, por mais que ela nos minta...
Do soneto XXI
 
              Mário Quintana nasceu no dia 30 de julho de 1906, em Alegrete, uma cidade em plena campanha rio-grandense.

Foi lá, diz Cyro Martins, “vendo de perto gaúchos autênticos, a cavalo, cruzando para todos os lados as ruas da cidade e naturalmente ouvindo suas falas e escutando seus causos, e sabendo, direta ou indiretamente de suas encrencas e de suas tricas que ele passou a infância. E na sua “Nota sobre Mário Quintana” (Escritores gaúchos, Porto Alegre, 1981) observa, ainda, que em toda a sua obra não aparece o mais tênue sinal de sintonia com essa paisagem e com o homem que a habita. E que, em relação a sua criatividade, é como se dessa terra do imediato ele houvesse se desprendido, todo ele voltado para a introspeção.

Na verdade, o primeiro livro de poemas de Mário Quintana, A rua dos cataventos, editado em 1940 mas já concluído em dezembro de 1938, é o livro de um poeta habitado por difusos sonhos e desvarios como se vivesse uma vida feita de breves momentos, de passageiros sons e de efêmeras imagens irreais.


Vago, solúvel no ar, fico sonhando é um verso do primeiro soneto do livro. Um soneto construído a partir da luz que o sol derrama sobre as coisas, dos tons que se misturam, da consciência que tem o poeta de igualmente fazer parte desse mundo que vai sendo banhado pelos jogos de luz. E do qual ele fixa alguns de seus instantes fugazes: o deambular pelas ruas, o ficar imóvel com o livro pousado nos joelhos, o se contentar em ver no ar a se espraiar as lentas espirais de fumaça, o surpreender o menino olhando para a lua, em pleno meio dia.

Um mundo em que se inscrevem os sons. De grilos, de clarins, de goteiras e pregões. Sons de passos nas calçadas e de velhas rondas. Presença da realidade se opondo à fantasia que o leva a reger contra-danças num lugar que não existe, a entrever sapatos floridos e peixes voando em reflexos dourados, a se ver peregrino, iluminado, ou vivendo na Torre do Anto.

E homem do interior do Continente, nascido numa cidade rodeada de planícies verdes, Mário Quintana vislumbra barcos.

Nos trinta e cinco sonetos de A rua dos cataventos a eles se encontram cinco referências. Numa comparação, originada, sem dúvida, desse sonhador contemplar de nuvens em que uma, parada, mais parece um lindo barco a vela! No imaginar do desejo alheio quando coloca um par de sapatos no rebordo da janela e pensa que eles sonham, imóveis, deslumbrados, / que são dois velhos barcos, encalhados / sobre a margem tranqüila de um açude.

E fragata, bergantim e navios são as palavras que usa nos outros poemas. Como um sonho, no meio do silêncio, vaga aparição lunar, surge misteriosa a fragata que não demanda os portos.
 
Velas paradas, o bergantim, sonora palavra que remete à antiga embarcação usada pelos portugueses no Oriente, interrompe o prosaico e o ingênuo com que se inicia o primeiro verso do soneto: Estou sentado sobre minha mala. Seguida do adjetivo desmantelado, prepara a exclamação sobre o tempo malbaratado e essa falta de esperança que faz jogar a bússola quebrada na profundeza da água e de alma cansada e sem direção nada desejar.

No soneto XXII são navios que se afundam (única certeza em meio às duvidas e à incapacidade de decifrar mistérios), a barca ignorando o porto num desassossego que o mover-se sem rumo só ajuda a constatar: Nada mais existe.

São embarcações sem rumo e sem chegada de um poeta que se diz romântico e cujas incertezas encerra em melancólicos sonetos tristes que o levam a uma evasão talvez fugaz, talvez constante.

Escondida cá e lá a sutil alegria de viver expressa no olhar que sabe se pousar no crepúsculo, na luz mansa do dia, na verde ramaria, no céu azul. E nesse desejo que lhe sobrevêm no tempo chuvoso: o de querer iluminar a pobre tarde cinzenta pintando trezentos arco-íris no seu céu tristonho.

domingo, 21 de julho de 1996

O desencontro

           Luiz Carlos Prestes passara mais de dez anos na prisão e, em 1945, fora posto em liberdade. No Pacaembu estava preparado um grande comício e Pablo Neruda viera do Chile para participar doencontro do líder comunista com seu povo. Mais de cento e trinta mil pessoas estavam presentes no Estádio e para elas o poeta leu o poema que depois fez parte do IV Canto, “Los libertadores” do Canto general.

Poucas horas antes o escrevera para ser lido e o primeiro verso de “Dicho en Pacaembu” é na verdade uma frase prosaica e coloquial: Quantas coisas quisera dizer, hoje, brasileiros e enumera isto que desejaria contar – histórias, lutas, desenganos, vitórias, pensamentos, saudações do outro lado da América – para falar desse presente em que Luiz Carlos Prestes, é rodeado dum mar de corações vitoriosos. Para lembrar essa noite de Paris em que pedia pelos republicanos  da Espanha quando pronunciou-lhe o nome, seu nome foi saudado pela multidão, velhos operários com os olhos unidos, olhavam para o fundo do Brasil e para a Espanha.

Nesse ano de 1945, viera para vê-lo, para contar  depois como era Luiz Carlos Prestes e o que dizia.

Anos mais tarde, em Confieso que he vivido o irá descrever como pode vê-lo diante da multidão, apenas posto em liberdade: diminuto de estatura, me pareceu um lázaro recém saído do túmulo, pulcro e luzente para a ocasião. Era magro e branco até a transparência com essa brancura estranha dos prisioneiros. Seu intenso olhar, suas grandes olheiras roxas, suas delicadíssimas feições, sua grave dignidade, tudo lembrava o longo sacrifício de sua vida.

No encontro que então tiveram, narrado no capítulo “Prestes” de Confieso que he vivido menciona novamente a aparência frágil que lhe dava sua pequena estatura, sua magreza, sua brancura de papel transparente em acorde com suas palavras e com seu pensamento de uma precisão de miniatura. Fala, também, do trato cordial que recebeu e do convite para almoçar na semana que se seguiria.

Na terça feira, Pablo Neruda foi à praia com uma bela amiga brasileira para, na quarta, se inteirar que o legendário capitão o havia esperado, inutilmente, no dia anterior com a mesa posta enquanto ele passava o dia em Ipanema.

Pablo Neruda já havia feito um poema para Leocádia Prestes, recitado à beira de seu túmulo, no México, onde ela fora em demanda de liberdade para o filho. O Presidente do México havia solicitado a Getúlio Vargas a permissão para que Luiz Carlos Prestes pudesse assistir ao enterro da mãe. Diante da resposta negativa, indignado, Pablo Neruda faz essa homenagem póstuma que passa a ler nos recitais pelo mundo a fora.

Em 1949, torna a escrever outro poema para Luiz Carlos Prestes. Também faz parte do Canto general, o número XL e tem por título “Prestes do Brasil”. É o Prestes da Coluna que percorreu o Brasil que está presente nesses versos, a sua tragédia pessoal, seu martírio de prisioneiro e, ainda, esse apoteótico momento em que frágil e firme sua estrutura, pálido como o marfim fala pela fala pela primeira vez para o seu povo no Pacaembu.
O Luiz Carlos Prestes do cotidiano, porém, Pablo Neruda não conheceu naquele dia em que era esperado. Pelo que diz ser sua absoluta incapacidade de aprender o dias da semana em português ele não compareceu ao encontro marcado.

domingo, 14 de julho de 1996

O jantar

 
          Com voz suave de fantasma, ela o mandou entrar. Tinha os cabelos brancos, era delgada e estava de luto. Pablo Neruda tinha lhe pedido pouso depois de um longo recorrido em que acabara se perdendo em trilhas desconhecidas.

          Saíra sozinho, a cavalo, adivinhando caminhos. No capítulo “La casa de las trés viúdas” de Confieso que he vivido conta essa aventura. Primeiro, a descrição da paisagem. Ainda rude, ainda inexplorados os litorais rochosos, as intermináveis areias, os lagos, os bosques de avelã, as samambaias gigantes, as montanhas se agigantam de beleza e de vida na expressão mágica, própria de Pablo Neruda. Ele se encanta com os pássaros e com os pequenos animais que lhe cruzam o passo até ser, no meio da imensidão deserta, surpreendido pela noite e, um pouco assustado, procurar abrigo. Então, chega ao pórtico branco daquela casa tão insolitamente perdida na solidão.


          Nela, há trinta anos viviam as três mulheres. Duas nascidas em Avignon e a terceira já chilena de nascimento.
          Foi recebido na sala de grandes cortinas vermelhas e lustres de bronze e cristal, uma sala do século passado, indefinível e inquietante como um sonho.
          Na melancolia da noite fria e das palavras proferidas entre elas e o poeta, irrompe de súbito a alegria, quando ele pronuncia o nome de Baudelaire. Em plena montanha, rodeadas de alguns camponeses e de alguns empregados, só elas podiam ler Les fleurs du mal.
          Ainda estavam presas à França por esses versos, como longe da pátria no tempo e com os mares de permeio, lhe estavam, ainda, ligadas ao cultivar a sagrada herança da boa mesa.
       Convidado para jantar, Pablo Neruda fica atônito ao se deparar com uma mesa redonda de longas toalhas brancas, iluminada com dois candelabros de prata cheio de velas acesas. A prata e o cristal brilhavam naquela mesa surpreendente onde lhe foram servidos pratos requintados e um vinho envelhecido de acordo com as leis francesas.
          Quarenta e cinco anos depois, Pablo Neruda relembra essas três mulheres que na sua selvagem solidão lutaram sem proveito algum para manter um antigo decoro, defendendo o que aprenderam de seus antepassados. E se pergunta: o que terá sido delas, desterradas com seu livro de versos no meio da selva, de suas garrafas de vinho, de sua mesa resplandecente, iluminada por vinte velas, da casa branca perdida entre as árvores.
          O tempo que passou diz para o poeta que a morte as levou e que talvez a selva tenha devorado a casa remota. Também esse fichário onde, ao longo de trinta anos elas anotaram o nome, a data da visita e o cardápio servido de cada um dos vinte e sete viajantes que a negócio, por curiosidade ou levados pelo acaso foram por ela recebidos. Caso voltassem, elas, buscando a perfeição na hospitalidade, não serviriam as mesmas iguarias já oferecidas antes.
          Pablo Neruda, talvez como todos os outros, não mais tornou a vê-las. E nesse rememorar do que lhe pareceu um sonho estranho e encantador ele as salvou do esquecimento.

domingo, 7 de julho de 1996

O primeiro poema.


naci a la vida, a la tierra, a la poesia y a la lluvia. 
 
          As primeiras palavras de Confieso que he vivido dizem da intermitência e do olvido dessas Memória que Pablo Neruda escreve na sua pulcritude de detalhes, como um memorialista, e nas lembranças diluídas de seu viver de poeta, na lírica evocação das sensações que o universo dos bosques chilenos lhe provocavam.

          Quem não conhece o bosque chileno, não conhece este planeta. Daquelas terras, daquele barro, daquele silêncio eu saí a caminhar, a cantar pelo mundo, assim termina esse texto que, verdadeira poesia em prosa, antecede o relato memorialista. Adjetivos, comparações e metáforas, antropomorfizações e cores, cheiros e sons refazendo o caminho a desvendar tesouros que, assim evocado, aparece com a beleza feérica, nascida das vivências infantis cujos relatos formarão o capítulo “Infância e poesia” de Confieso que he vivido.

          Nele, os primeiros anos vividos em Temuco, povoado do extremo sul do Chile. O pai, ferroviário, por vezes o levava com ele para Boroa onde o trem ia buscar as pedras para colocar entre os dormentes. A natureza ali me dava uma espécie de embriaguez, atraído que eu era pelos pássaros, os besouros, os ovos de perdiz. E os achados se transformam em deslumbramentos: o besouro de muitas cores, relâmpago vestido de arco-íris; o ninho silvestre, tecido em musgo e pequenas plumas; as bolotas do carvalho, maravilhosa bolota verde e polida com sua casca enrugada e gris.

          E as cores lhe explodiam nos olhos e os ouvidos se lhe enchiam de sons: o apito do trem, o lamento romântico do acordeão, o estrondo de coração colossal das ondas do mar, os nomes das estações de trem na região dos antigos araucanos: nomes com aroma de plantas selvagens cujo significado era algo de delicioso: mel escondido, lagoas ou rio perto de um bosque ou cerro com nome de pássaro.

          E em meio à infância solitária, Pablo Neruda explora a natureza forte e misteriosa do sul do Chile, das árvores cheias de frutos, dos insetos que vai encontrando e, apenas alfabetizado, escreve os primeiros versos. Lembra dessa emoção, desse traçar de palavras semirrimadas, estranhas, diferentes da linguagem cotidiana que pôs no papel, preso de uma ansiedade profunda, de um sentimento até então desconhecido, espécie de angústia e tristeza. Ainda cheio de emoção, leva os versos para mostrar aos pais. Eles cochichavam, submergidos numa dessas conversas em voz baixa que dividem mais do que um rio o mundo das crianças daquele dos adultos.

          Pablo Neruda lhes estendeu o que havia escrito e o pai, distraído, passa os olhos e o devolve, perguntando de onde havia copiado aquilo. E continuou falando de seu importante assunto com a mulher.

          E diz o poeta: Parece que eu lembro que assim nasceu meu primeiro poema e que assim recebi a primeira mostra distraída da crítica literária.