domingo, 25 de fevereiro de 1996

A crítica

          Em 1944 era publicado, pela José Olympio, Desolação, o terceiro romance de Dyonélio Machado,uma obra de extremo vigor e densidade como a define Sergio Milliet, em 16 de setembro do ano seguinte, no artigo que então lhe dedica.

          Faltava pouco mais de um mês para que se expirasse, no dia 29 de outubro, a ditadura de Getúlio Vargas e o crítico, na sua aproximação ao romance, optou por se deter no que chama de controle avassalador a serviço de uma coletividade dia a dia mais hostil à liberdade do indivíduo da qual é vítima Maneco Manivela. Operário, na verdade só quer viver sossegado mas o ter participado de uma reunião, o ter recebido algum volante e o ter encontrado acidentalmente o Dr. Matos, militante de um movimento político ilegal que lhe manda de presente a “Cartilha” faz com que seja vigiado pela polícia.

          As qualidades de Dyonélio Machado como ficcionista lhe permitem, como diz Sergio Milliet, apenas deixar entrever as causas mais objetivas que impelem seu herói ao desequilíbrio. Optando pelo aprofundamento psicológico, ele deu ao drama uma força e uma tragicidade incomuns o que talvez não lhe fora possível se houvesse entrado mais pretensiosamente no estudo de fatos políticos e sociais.



          Igualmente feito de sugestões e igualmente forte e trágico, O louco do Cati já havia surpreendido os críticos dois anos antes.Livro estranho, Antes o poema da evasão imperativa, antes um poema angustiado que um romance, mesmo surrealista, dissera Sergio Milliet acrescentando, prudente, tratar-se de um romance que ficou mais ou menos incompreendido.

          Mas, se de incompreensão se trata, as palavras de Moisés Velhinho demonstram como essa incompreensão pode ser de lamentar. No artigo “Do conto ao romance” que faz parte do livro Letras da Província (Porto Alegre, 1960) em que analisa os primeiros livros de Dyonélio Machado até então publicados – Um pobre homem (1927), Os ratos (1935) e O louco do Cati (1942) – não concede a este último, uma qualidade sequer. E os presumíveis defeitos – exagerado emprego de parênteses, linguagem deliberadamente descuidada, personagens passivos e fantasmagóricos, desejo de mostrar o efêmero de tudo o que não foi concretizado no romance – o levam a concluir que a obra não tem forma, não tem conteúdo, não tem qualquer propósito acessível a percepção comum.

          No entanto, a edição se esgotou e, sobretudo, as palavras de Mário de Andrade e as de Guimarães Rosa foram, então, profundamente elogiosas.

          Também elogiosas foram as de Ferreira Gullar, em 1979, quando a Vertente publicou uma nova edição da obra. Dyonélio Machado tinha 83 anos e viu transformada em virtude o que alguns anos antes fora considerado uma imperfeição: maestria da linguagem raramente encontrada na ficção brasileira, paranóia do personagem evidencia a continuidade da repressão na história brasileira, maneira nova de contar uma história, modo sutil de conduzir a narrativa, a tal ponto que se tem a impressão de que ninguém a conduz.

          Hoje, quando a ditadura getulista e ditadura instaurada em 1964 já fazem parte do passado e questões estranhas ao fazer literário talvez já não sejam tão importantes para a avaliação de uma obra; quando novas disciplinas são instrumentos que se acrescentam a essa constante busca de respostas para o mistério do texto, sem dúvida, a riqueza e a profundidade da ficção de Dyonélio Machado serão entendidas no seu significado verdadeiro.

          E O louco do Cati, seu magnífico e instigante romance, alvo de tão antagônicas apreciações estará, certamente e em definitivo no lugar que lhe compete como um d’entre os melhores da Literatura Brasileira.

domingo, 18 de fevereiro de 1996

Vassalagem

          “A Literatura como consciência do Povo” faz parte de uma coletânea – entrevistas, reflexões dispersas e um romance inédito – preparada pela professora Maria Zenilda Grawunder, de Porto Alegre, cuja publicação pela Graphia do Rio de Janeiro é de 1955: O cheiro da coisa viva.

          O texto data de 1977, quando o escritor gaúcho respondeu a um questionário sobre cultura brasileira, solicitado por Escrita, uma publicação paulista.

          Aparentemente, Dyonélio Machado se submete ao balizamento das perguntas e discute alguns temas – a cooptação dos intelectuais pelo Poder, a relação entre cultura e classes sociais, o imperialismo na reflexão sobre a cultura – que, evidentemente são, sempre, inesgotáveis. Sobretudo para quem já muito vivera – Dyonélio Machado tinha, então, 82 anos – e sem deixar de perceber o que acontecia no país.

          Assim, ainda que pretendendo se ater às perguntas formuladas, muitas outras observações se acrescentam às respostas, enriquecendo-as numa contribuição efetivamente ampla e perspicaz.

          Dyonélio Machado defende a correção e a pureza do idioma, comprometido pelo tipo de autor que ele chama de reivindicador iconoclasta. O que atropela a pontuação, a sintaxe, o significado, a grafia numa rebeldia sistemática que, alheia a qualquer apreciação dialética, busca apenas a originalidade e expressa, então, simplesmente, o vazio e o mau gosto.

          Observação que, é óbvio, se entrelaça com a que diz respeito aos estrangeirismos oriundos, já nessa época, somente da “poderosa nação do norte” cuja língua exerce tanto fascínio quanto seus costumes, suas mercadorias, seus objetos de uso cotidiano que se derramam sobre nós, como uma ganga mineral, resíduo praticamente inaproveitável, devido a uma impossibilidade intrínseca de integração.

          Daí o êxtase que alimenta grande parte da população brasileira por tudo aquilo que procede dessa Meca da atualidade, desse centro continental da tecnologia que é preciso conhecer e se possível imitar, desse país das benesses.

          Sabiamente, Dyonélio Machado esperou (ou almejou) que o tempo dialeticamente levasse os brasileiros a negarem a repetição, a redundância vinculadas a essa desastrosa submissão.

          Vinte anos passados, poder-se-ia, também almejar que pudessem se tornar conscientes do que verdadeiramente representa o imperialismo cultural.

domingo, 11 de fevereiro de 1996

Embates


Nós trabalhamos mil anos a terra antes  que chegassem os agrimensores e os advogados e o exército para dizer: a terra já não é de vocês, a terra já foi subastada, mas fiquem aqui para continuar vivendo, servindo os novos donos ou do contrário morram todos  de fome. Carlos Fuentes. 
 
          Os caminhos deles se cruzaram quando buscavam a morte, a dignidade ou somente um lugar no mundo: o gringo velho procurou o México para morrer e Harriet Winslow para ali viver de seu trabalho. Tomás Arroyo queria, apenas, o direito de viver livre na terra que lhe pertencia. Foram surpreendidos por profundos afetos. Um intermezzo de vida no sombrio destino de cada um.

          São belos e ricos personagens que o romancista conduz mergulhados em aventuras da alma no espaço de um Continente conturbado por uma luta em que os homens perseguem o direito muito simples: o de poder existir como homens e não como escravos.

          Carlos Fuentes, em Gringo viejo (Tierra Firme, 1986) fala de paixões, fala da violência dos embates; dos homens que acreditam na transformação do mundo em que vivem onde impera, sobretudo, a injustiça e a opressão.        Mas, também fala da terra, tornando-a presente em brevíssimas expressões que, inseridas na narrativa, completam, aos poucos, um quadro de aparência tão agreste e rude quanto os homens que a habitam.

          E as regiões desérticas, habitadas por cobras e escorpiões, onde a vegetação se ergue afiada e nervosa, onde espinhos protegem a beleza de uma flor selvagem, está em acorde com esses homens cuja história foi feita de fugas, de negações, de um querer se preservar: expedições em busca do ouro, tribos errantes e moribundas, movimento perpétuo de fundações e dissoluções, bonanças e depressões, genocídios tão gigantescos como a terra e tão esquecidos como o rancor acumulado dos homens.
          Um romance em que as histórias de medo, de amores e de desenganos conduzem palavras e idéias.
          O velho norte-americano morre na morte que foi procurar no México; a mulher que atravessara a fronteira para ensinar, apreendeu o mais profundo da vida. E, vítima de uma vontade inventada, cai, baleado, o general mexicano.
          Além da paisagem esboçada em tintas de um quadro acabado e perfeito, além do momento em que se incrustaram as paixões, é um narrar que faz emergir também, os sentidos do Continente.
          Sentidos que a maioria mal sabe entender ou explicar. E que os outros, os espoliadores, transformam naqueles que lhes proporcionam os ilimitados privilégios.

domingo, 4 de fevereiro de 1996

Salão de espelhos

          Em 1985, Carlos Fuentes publicou Gringo Viejo, pela Fondo de Cultura Económica.

          O título sugeriria ser o velho norte-americano a razão da narrativa. Foi, certamente, dela a origem como esclarece a nota do autor no final do romance, construído a partir das circunstâncias em que Ambrose Bierce, jornalista da rede Hearst e ficcionista, desapareceu no mês de novembro de 1913.

          Havia se despedido epistolarmente de seus amigos; dizia-se velho e cansado e se acreditando no direito de escolher a maneira de morrer.

          Inventar o que poderia ter ocorrido na última aventura em que se engajou, foi tarefa do romancista. Em Gringo Viejo, como personagem, é o norte-americano de quem todos ignoram o nome, cuja vida se entrelaça com a de Harriet Winslow e com a vida de Tomás Arroyo: uma professora de Washington perdida em meio a uma revolução que ignorava estar em curso; e o mexicano, um dos generais dessa revolução.

          Seres antagônicos com uma visão de mundo a impedir que se compreendessem mas vencidos pelos sentimentos nos quais se enovelaram.

          Os norte-americanos, fugindo de seus fantasmas; o mexicano em busca de uma identidade negada, do espaço que lhe fora roubado. Fruto da violência, a conquista do que não possuíra só poderia, então, acontecer pela violência. Porque uma nova violência era necessária para acabar com a velha violência.

          A professora, acreditando nas regras que seguia; o mexicano, querendo criar aquelas que fariam desaparecer as humilhações, a submissão. Que levariam a um mundo já não mais dominado pelos caciques, pelas sacristias, pelas aristocracias ridículas.

          Era o general – a desgraça me nomeou general – igual a seus homens. Igual àqueles que não mais queriam viver de cabeça baixa e que haviam se dado o direito de lutar.

          Na fazenda, cercada por um deserto que os proprietários desejavam estéril e duro para se proteger e que não impediu, porém a passagem dos revolucionários, eles entraram vitoriosos. Dela tomam posse e no salão de baile, um Versalhes em miniatura, irrompe a festa. Gritos e risos se erguem, seguidos de um repentino silêncio. Quando os homens e as mulheres da tropa do General Tomás Arroyo, pela primeira vez, se vêem refletidos num espelho.Paralisados por suas próprias imagens, pelo reflexo corpóreo de seu ser, pela integridade de seus corpos, giraram lentamente, como para se certificar de que não era mais uma ilusão. Foram capturados pelo labirinto de espelhos.

          As paredes cobertas de espelho, destinadas a refletir, perpetuamente a dança elegante dos donos da terra, reproduziram, nesse momento, a gente do povoado e da Revolução. De repente, eles se haviam reconhecido nas imagens que viam. Somos nós, disse alguém e a expressão se repetiu enquanto a música se fazia ouvir.

          E os passos de dança e a alegria se instalaram no salão de espelhos.

          Os antigos donos já se haviam refugiado em Paris fugindo do pó, das balas, do confronto.