domingo, 24 de setembro de 1995

Sob o pretexto da lenda


          Em 1979, foi vencedor do Concurso de Contos do Paraná com alguns dos episódios que, em 1981, fariam parte de um livro publicado pela L&PM, Ibiamoré o trem fantasma, agora em segunda edição pela Mercado Aberto de Porto Alegre.

          Relatos construídos ao redor de uma lenda muito simples: o repetido trajeto do trem fantasma que percorre as planícies do Rio Grande do Sul, atraindo nas suas paradas, passageiros que, levados por uma razão ou outra, enfrentam o desafio de se lançar na viagem que sabem sem retorno.
          Sempre em número de quatro, os relatos se agrupam sob onze topônimos, nome das estações. No primeiro, a lenda contada em suas diferentes versões. Seguem-se os outros três: histórias heróicas de índios no momento de confronto com os ibéricos, dramáticas histórias de amor entrelaçadas às dos próprios cronistas, narradores que, se baseando em páginas ficcionais, cartas, artigos, testemunhos anônimos contam ou relembram, por mero prazer ou por inequívocas intenções moralizantes, fatos acontecidos no extremo sul do país.
          E uma História do Rio Grande do Sul se faz. 
          Numa ficção que ao não eludir o que existe de ambíguo no mundo que retrata, se torna de perfeita verossimilhança; ainda que alimentada por esse mítico aparentemente maior do que as interrogações que, subjacentes, povoam o texto.
          Mas, no Continente, sobre dúvidas que envolvem a verdade inconteste da religião, sobre preconceitos, sobre injustiças, quase nunca há respostas.
          E Roberto Bittencourt Martins não o ignora. Por isso, entre as muitas metáforas de seu texto há também espaço para as entrelinhas.
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domingo, 17 de setembro de 1995

Livre como a Seriema

          Assim, livre como a seriema, partiu o gaúcho Lothar Francisco Hessel para conhecer a Europa em meados de 1966. O que viu, então, foi registrando, dia a dia e, em 1994, esse testemunho de quase trinta anos passados foi publicado pela Editora Parlenda de Porto Alegre sob o título Europeus vistos de perto.

          Lothar Hessel partiu do Brasil pelo Cabo San Vicente, navio espanhol cujo irmão gêmeo se chamava Cabo San Roque. Naqueles idos da década de 60, suas idas e vindas pelo Oceano Atlântico se cruzavam no meio da viagem e acontecia, então, aquele momento de confraternização entre um navio e outro. Soavam as sirenes, acendiam-se todas as luzes e os passageiros cumprimentavam alegres os que iam em sentido contrário, emocionados com a visão que se perdia na noite e no mar.

          No dia 15 de março, de madrugada, as primeiras luzes das costas da África e da Europa começavam a se avistar. E se iniciavam as andanças de Lothar Hessel pelo Velho Continente.

          Nas cidades, as visitas às igrejas e aos museus, o prazer dos espetáculos e de ser recebido pelos professores que, ligados por interesses comuns, foram, tantas vezes, seus anfitriões.

E, desfilando pela janela do trem, algo da paisagem européia que em breves descrições iluminam o texto, assim como aquelas que se originam do que vai descobrindo nas caminhadas por pequenos povoados: planícies bem cultivadas, verdes, de um verde por vezes claro e sem os matizes que oferece no Brasil; vinhedos, oliveiras, álamos, choupos, pequenos rebanhos de ovelhas, pradarias ondulantes e aprazíveis, o detalhe de um quintal de canteiros de miosótis floridos entre os quais esgueiram suas lindas corolas, algumas tulipas. E uma ou outra visão efêmera cristalizando esse momento em que um lavrador ara seu campo, um outro trabalha no trator entre as vinhas rasteiras e a mulher planta alhos perto de sua casa.

          Por vezes, insinuando-se naquilo que tem diante dos olhos, a lembrança dos campos verdes do Rio Grande do Sul, das plantações de eucaliptos, do gado solto.

          E então, quando já se viu no trem, iniciando a viagem de regresso, se sentiu contente. Pensou no cavalo gaúcho que ao perceber estar voltando para a querência, fica mais alegre, anda mais ligeiro.

          No dia 13 de junho, em Cádiz, cidade de aspecto velho e cinzento, ele embarcava outra vez, agora de volta ao Brasil, depois de três meses e vinte e dois dias pelo velho Continente.

          Deixou-o, quem sabe, um pouco melancólico ao dizer na última frase de seu livro que talvez o deixasse para sempre.

          Mas, nessas páginas em que foi anotando o seu itinerário de observador prazeroso, não apenas prolongou, para si mesmo, a sua presença como a ofereceu àqueles para quem o ato de ler é, ainda e também, uma viagem que não deve ser perdida.

domingo, 10 de setembro de 1995

Setembro


O mês de setembro, no sul do Continente latino-americano, é um mês amplo e florido. Também este mês está cheio de bandeiras. Pablo Neruda 
 
          Pausa no seu livro de memórias, Confieso que he vivido esse lembrar-se das insurreições que, no começo do século passado, despontaram ou se consolidaram nas terras do Continente. Sob o título “Bandeiras de setembro”, Pablo Neruda se põe a recordar os libertadores – Bolívar, San Martín, José Miguel Carrera, O’Higgin – que, entre façanhas, amores e sofrimentos, iniciaram no Continente um novo caminho para mudar-lhe o destino. Conclui que a História continua o seu caminho e que uma nova primavera habita os intermináveis espaços de nossa América.

          Em 1973, depois de viver essa esperança que apregoara como crença, Pablo Neruda viveria a sua última primavera. Era outra vez mês de setembro, o Chile estava vivendo a sua época de terror quando em Santiago, no dia 23, ele morria.

          Sobre a angústia, a solidão e o constante amor por Matilde, sentimentos que o acompanharam nos últimos tempos de vida, ficaram os versos dos livros publicados postumamente.

          Mas, como a hora de nascer, também os momentos da morte são vedados aos demais.

 

        
Se sabe que nacemos, diz no poema “Los nacimientos”, um dos que fazem parte do livro Plenos poderes (Losada, 1962). Quanto ao mais, porém, seja onde for – na sala, na exígua casa de pescadores, no tórrido canavial – o que existe é silêncio no momento em que a mulher se dispõe a parir.

          E a memória que se perde desse importante instante em que se transita para o existir, para ter seu corpo e amar e amar, e sofrer e sofrer.
 
          Tudo se perde na memória. De lembranças, os homens tem nada mais do que a vida, anotada dia a dia, no tempo que transcorre, no amor concedido.

          Sobre aquele minuto de morrer, nada se diz, ele é dado a outros de lembrança / ou simplesmente à água, à água, ao ar, ao tempo.

          Nesse refletir sobre o nascer e o morrer, a verdade de Pablo Neruda é para todos. Como para todos, verdadeira oferenda, é a beleza de seus versos.

 

 

 


 

 

 

 

domingo, 3 de setembro de 1995

As águas esquecidas

          Mais de dez livros de poesia e outros tantos em prosa já havia publicado João Manuel Simões quando, em 1982, indignado, escreve o belo poema que irá alimentar a memória de algo que não deverá ser nunca esquecido: a destruição das Sete Quedas.

          Réquiem para Sete Quedas é um longo poema, feito de sete cantos cuja intenção primeira é claramente expressa na dedicatória. Uma dedicatória que não presta homenagem mas, incisiva, atribui responsabilidades aos homens que por ação ou omissão determinaram a extinção das Sete Quedas.

          Cada um dos cantos se constitui um poema em si, independente dos demais. Unidos, eles são por esse primeiro verso de cada um deles. Encerrados entre o topônimo Sete Quedas, que inicia o poema e se repete no primeiro verso do sétimo canto, os verbos presentes nesses versos (fazem e não tornam), os substantivos (sete noivas e motoniveladoras) e o adjetivo (mortas) formam uma verdadeira síntese da realidade que o poeta quer apreender. Tentando fixar a beleza desaparecida e erguendo a voz para acusar o crime cometido. Primeiro, nas breves e esplêndidas definições do que foram as Sete Quedas. Depois, no testemunho dessa agressão de sabê-las imobilizadas, enterradas sob a fria e impura lápide. Para, então, anunciar o responsável por essa destruição irreversível sobre a qual resta apenas um dobrar de sinos e a utopia de que talvez renasçam quando sete milhões de anos houverem passado.

          Uma belíssima expressão poética, ora a desenhar esse mundo de água condenado a morrer pelos mortais, ora a sugerir cores e sons e formas. E as águas das Sete Quedas se antropomorfizam. Do verso de João Manuel Simões emergem um rosto, cabelos, colo, ventre que, no entanto, feitos de cristal, de afluentes de sol, de claros diamantes, distam dos humanos. Mas, é, ainda sob o código dos humanos – sete noivas mortas, desaparecidas – que o poeta as vê no silêncio, na angústia, na solidão.Silenciadas pelos punhais pungentes, / obscenos, / tecnológicos, / dos homens que só sabem / sonhar sonhos inúteis, / metalúrgicos.

          Desoladamente, o poeta registra esse silêncio ignominiosamente decretado e irreversível, esse desaparecer ao qual só resta a súplica de um orai por elas.

          É um grito acusatório no qual se combinam o sofrimento pela perda injusta e a coragem de levantar a voz para clamar contra a arbitrariedade num tempo difícil em que era exigido que reinasse no país o silêncio. João Manuel Simões falou no seu poema pelos que se sentiram injustiçados, derrotados, impotentes. Pelos que, diante das imagens que então, foram sendo mostradas – das águas represadas a subir pouco a pouco, espantando a vida das terras circundantes – só lhe restou chorar.

          E chorar diante do irremediável, imposto pelos senhores parece ser o fado dos homens do Continente.