É um pequeno
caminhão muito antigo e muito conhecido de certas rodas: moços de garage,
inspetores do tráfego, empregados das bombas de gasolina. Tirara o nome duma
borboleta de louça azul e asas abertas que o primitivo dono mandara fixar nos
favos do radiador, a título de insígnia. Esse sujeito era um tipo folgazão,
espécie de vendedor ambulante, de viajante comercial. Saía sempre no carro, empreendia
pequenas viagens de negócio. Levava tudo no Borboleta. Desolação.
O Borboleta foi “emprestado”
pelo mecânico da oficina onde o dono o deixara encostado. Maneco Manivela queria
ir até a praia com os amigos. A viagem, por estradas de pedras e areia vai
desgastando o caminhãozinho até que não pode prosseguir a viagem. Às voltas com
achar a solução para poder comprar a peça quebrada e incapaz de resolver seus
próprios problemas, levam Maneco Manivela a atear fogo no Borboleta.
É essa história que Dyonélio
Machado irá construindo, aos poucos, ao longo de quatro romances: O louco do Cati (1942), Desolação (1944), Passos perdidos (1946) e Nuança
(1981). Uma construção pacienciosa, feita de breves descrições do Borboleta e
de breves referências a seu desempenho, disseminadas nesses quatro romances.
O pequeno caminhão é velho,
modelo antigo, leve, ridiculamente alto. Está muito sovado e sua pintura, feita
à mão, tem a cor já um tanto indecisa
entre o azul e o preto. O
niquelado, corroído pela ferrugem, se mostra descascado e os estribos e os
guarda-lamas já estão ruços,
esbranquiçados com a perda gradual,
lenta da camada de tinta. Há muito que a trava não funciona e que ele só
tem um farol.
E é assim que ele sai de
viagem, consumindo combustível – bebe
como um carro grande – frouxo, batendo desajustado, falhando, apenas capaz
de pouca velocidade, inclinando-se para um lado.
E é assim que vai se
estragando, gradativamente, na semana que durou a viagem. A tossezinha do cilindro que
falha, o borbulhar da água e o vapor quase
levantando a tampa de alumínio mal
presa na rosca já gasta. Todo ele cheio de ruídos diante dos obstáculos da
estrada. Por vezes, movendo-se somente em segunda e esquentando muito. Até que
o motor patina no ar e advém esse cheiro de coisa queimada. Fumegando, o
Borboleta para e só vai chegar a Águas Claras, uma etapa da viagem, a reboque.
O tempo e o trabalho e o tratamento recebido o haviam degradado.
No espaço que então lhe concedem, a enramada no jardim de uma casa, ele repousa, mudo, impenetrável, ao mesmo tempo frágil e despótico.
Adjetivos que lhe atribuem
qualidades estranhas a seres inanimados mas que, de certa maneira, podem parecer
verossímeis, se consideradas as relações que são estabelecidas com ele por seus
ocupantes, quando o sentem ou o percebem como um ser vivo, familiar e dócil,
quieto e pensativo. Como um animal doméstico ou mudo e enigmático como um ídolo
ou tão fiel como um bicho.
O Borboleta está presente e
se faz ouvir no pequeno som da areia, no barulho leve da garoa, na goteira que
atravessa a enramada. E se faz ver nas imagens brevíssimas que o mostram, se
distante, uma silhueta franzina, uma figura familiar, massa parda no
acinzentado da areia, ou uma sombra oblíqua, ou meio esguia, meio frágil. Imagens
que o relacionam com seus ocupantes, com o espaço em que se move ou com o
passar do tempo que, embora a sua revelia, ele acaba indicando: A sombra do Borboleta, que o tornava quase
irreconhecível de tão oblíqua, fazia uma faixa diagonal, dum azul violáceo.
E nessas pequenas seqüências
descritivas, nas referências a seu estado e suas possibilidades, delineiam-se,
precisas, as suas funções romanescas. Pontilhando um relato que se estende por
quatro romances, o Borboleta, além dessas suas funções que permitem múltiplas
aproximações, é expressão de um recurso narrativo extremamente rico. Somente
digno de um escritor que domina a arte e a técnica do romance.

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