domingo, 13 de agosto de 1995

Presença do Borboleta


É um pequeno caminhão muito antigo e muito conhecido de certas rodas: moços de garage, inspetores do tráfego, empregados das bombas de gasolina. Tirara o nome duma borboleta de louça azul e asas abertas que o primitivo dono mandara fixar nos favos do radiador, a título de insígnia. Esse sujeito era um tipo folgazão, espécie de vendedor ambulante, de viajante comercial. Saía sempre no carro, empreendia pequenas viagens de negócio. Levava tudo no Borboleta. Desolação. 
 
          O Borboleta foi “emprestado” pelo mecânico da oficina onde o dono o deixara encostado. Maneco Manivela queria ir até a praia com os amigos. A viagem, por estradas de pedras e areia vai desgastando o caminhãozinho até que não pode prosseguir a viagem. Às voltas com achar a solução para poder comprar a peça quebrada e incapaz de resolver seus próprios problemas, levam Maneco Manivela a atear fogo no Borboleta.

          É essa história que Dyonélio Machado irá construindo, aos poucos, ao longo de quatro romances: O louco do Cati (1942), Desolação (1944), Passos perdidos (1946) e Nuança (1981). Uma construção pacienciosa, feita de breves descrições do Borboleta e de breves referências a seu desempenho, disseminadas nesses quatro romances.

          O pequeno caminhão é velho, modelo antigo, leve, ridiculamente alto. Está muito sovado e sua pintura, feita à mão, tem a cor já um tanto indecisa entre o azul e o preto. O niquelado, corroído pela ferrugem, se mostra descascado e os estribos e os guarda-lamas já estão ruços, esbranquiçados com a perda gradual, lenta da camada de tinta. Há muito que a trava não funciona e que ele só tem um farol.

          E é assim que ele sai de viagem, consumindo combustível – bebe como um carro grande – frouxo, batendo desajustado, falhando, apenas capaz de pouca velocidade, inclinando-se para um lado.

          E é assim que vai se estragando, gradativamente, na semana que durou a viagem. A tossezinha do cilindro que falha, o borbulhar da água e o vapor quase levantando a tampa de alumínio mal presa na rosca já gasta. Todo ele cheio de ruídos diante dos obstáculos da estrada. Por vezes, movendo-se somente em segunda e esquentando muito. Até que o motor patina no ar e advém esse cheiro de coisa queimada. Fumegando, o Borboleta para e só vai chegar a Águas Claras, uma etapa da viagem, a reboque. O tempo e o trabalho e o tratamento recebido o haviam degradado.

          No espaço que então lhe concedem, a enramada no jardim de uma casa, ele repousa, mudo, impenetrável, ao mesmo tempo frágil e despótico.

          Adjetivos que lhe atribuem qualidades estranhas a seres inanimados mas que, de certa maneira, podem parecer verossímeis, se consideradas as relações que são estabelecidas com ele por seus ocupantes, quando o sentem ou o percebem como um ser vivo, familiar e dócil, quieto e pensativo. Como um animal doméstico ou mudo e enigmático como um ídolo ou tão fiel como um bicho.

          O Borboleta está presente e se faz ouvir no pequeno som da areia, no barulho leve da garoa, na goteira que atravessa a enramada. E se faz ver nas imagens brevíssimas que o mostram, se distante, uma silhueta franzina, uma figura familiar, massa parda no acinzentado da areia, ou uma sombra oblíqua, ou meio esguia, meio frágil. Imagens que o relacionam com seus ocupantes, com o espaço em que se move ou com o passar do tempo que, embora a sua revelia, ele acaba indicando: A sombra do Borboleta, que o tornava quase irreconhecível de tão oblíqua, fazia uma faixa diagonal, dum azul violáceo.
 
          E nessas pequenas seqüências descritivas, nas referências a seu estado e suas possibilidades, delineiam-se, precisas, as suas funções romanescas. Pontilhando um relato que se estende por quatro romances, o Borboleta, além dessas suas funções que permitem múltiplas aproximações, é expressão de um recurso narrativo extremamente rico. Somente digno de um escritor que domina a arte e a técnica do romance.

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