domingo, 20 de agosto de 1995

O Borboleta e os outros


O Borboleta era um pequeno caminhão Ford. Modelo muito antigo. Via-se sempre no meio da cidade – na sua marcha saltitante, devido a sua leveza e ao fato de ser muito alto, ridiculamente alto. E era muito familiar aos moços de garage, inspetores de tráfego, empregados das bombas de gasolina. Devia esse nome a uma borboleta de louça azul que o primitivo dono mandara pregar nos favos do radiador como uma insígnia. Passos perdidos.

 
          O Borboleta pertencia a Antonio Vitorino, um ricaço (meio ricaço), que o deixara encostado na oficina – talvez para desmontá-lo e vender suas peças – em que trabalhava Maneco Manivela. Para um breve passeio de Porto Alegre até a praia ele o tomou emprestado e partiu com mais quatro conhecidos para o litoral. Na volta, dois deles tomaram outro rumo e Maneco Manivela, Leo e Luiz passam, então, a formar um grupo unido em torno do caminhãozinho. Cuidam que tenha água, óleo e gasolina. 
Procuram lugar em que fique ao abrigo das intempéries e, dentro de suas possibilidades, tentam que nada lhe aconteça e ensaiam muitos cuidados: limpeza das velas, reajustagem, inspeção dos discos. Tampouco fogem das horas de trabalho, desaparafusando, limpando, engraxando, torcendo o Borboleta. E até se afeiçoando a ele nessa convivência em que acabam por lhe atribuir papéis que vão desde servir como garantia de um almoço no hotel, até ser usado, num dos rasgões da lataria, como abridor de garrafa. E também, um lugar de econtro, de aconchego. Perto do Borboleta, eles conversam; perto do Borboleta, eles comem. E o pequeno camihnhão passa a ter um preço diferente daquele que talvez seja o preço real, uns duzentos, uns trezentos mil réis.

       E diz um deles: -Se fosse meu eu não trocaria esse auto por dinheiro nenhum. Mas, acabam vendendo o Borboleta, que não lhes pertencia, para com o dinheiro resolver os problemas imediatos embora sem levar muito a sério a transação que, segundo Maneco Manivela, apenas representa uma solução provisória. O comprador fora tomado de um súbito e espontâneo interesse pelo caminhãozinho que também caíra nas boas graças de sua mulher. -É que o Borboleta impõe uma simpatia mesmo, ele então explica.

          Uma atração que talvez advenha do fato de ser antigo e ter esse enfeite que exibe e lhe dá esse inesperado encanto da surpresa.





          Fixando-se nele, ao ser solicitado para ceder um pouco de gasolina, o chofer de um outro carro primeiramente se admira: -Donde é que tiraram isso? E, antes de obter uma resposta, vai passando a mão no carro e na borboleta azul do radiador: E ele tem um enfeite!... diz, achando graça.
 
          Para Maneco Manivela, o Borboleta é algo semelhante a um lar nessa viagem. A sua sombra ele se abriga, embaixo dele se acomoda para dormir, dentro dele guarda suas coisas: seu macacão de trabalho, a tábua de forrar o chão para mexer nos chassis, o couro de ovelha que surrupiara, o livro que lhe deram de presente. Trabalha muito para consertá-lo, cansando-se de tanto baixar, erguer o capô, se curvar, mexer em fios, em parafusos.
          Planeja, ao chegar de volta a Porto Alegre, fazer-lhe uma reforma completa: submetê-lo a uma compostura em regra. Já  se imagina pulando do Borboleta na hora em que a polícia o alcançasse. Certamente, nada que fizesse prever a decisão de incendiá-lo. Que no entanto lhe passa pela cabeça  no momento mesmo em que o vendeu e que lhe volta e o leva à súbita decisão.

          Depois, lhe perguntaram – o dono, o amigo, o juiz, - por que havia feito isso. Porém, ele não teve respostas para dar. Mas, respostas houve. Habilmente, em breves seqüências, alheias a um tempo cronológico, disseminadas nos romances posteriores, Passos perdidos e Nuanças, momentos dessa perfeita teia romanesca que somente um grande ficcionista – e Dyonélio Machado é um deles – é capaz de tecer.

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