domingo, 27 de agosto de 1995

Os enigmas


... Guardou aquela última expressão do olhar de Leo, quando eles faziam um círculo em torno de sua pessoa e o acuavam, sob a crepitação das chamas do Borboleta. Tinha o brilho tresvairado da surpresa e do medo...
_ Mas, não estou compreendendo... POR QUE É QUE VOCÊ FOI FAZER AQUILO?... Passos Perdidos.



          Ainda durante a venda do Borboleta lhe viera aquele pensamento: a explosão. Mais tarde, se decide e, repentinamente, sai do hotel em que se hospedava para levar a cabo o que pretendia. Que nem o espaço percorrido entre seu quarto e o pátio onde estava guardado o Borboleta, nem o encontrá-lo, como que a mercê de seu fado: Ali está o Borboleta – pensou ou disse quando o vislumbrou na enramada – o fizeram desistir.


          Maneco Manivela executa, com gestos medidos, a tarefa: acha o galão entre as ferramentas, rasga uma das pernas do macacão, guardado aí mesmo sob o assento e torce até transformá-lo num pavio. Logo, o embebe na gasolina e o introduz no tanque até atingir o combustível. O outro pedaço do macacão, também embebido, ele coloca no motor. O que sobrou da gasolina espalha por todo o caminhãozinho. Depois, o fósforo.

          Quando mais tarde, o dono do Borboleta toma conhecimento do que acontecera, sorri, complacente diante da venda efetuada mas, se torna sério, para interrogar por que ele havia feito aquilo.

          Uma pergunta que já lhe fizera Leo, diante do carro em chamas. Leo, que ao se ocupar do Borboleta, o fazia com o cuidado meio penalizado que se tem, quando se trata de fazer um curativo num ferimento de animal.

          Para o médico, um rapaz companheiro de prisão, tentando interpretar este atear fogo a um calhambeque, a proeza poderia ser o padrão paroxístico da sua conduta diante de uma situação adversa. Maneco Manivela entendeu, então, que seu ato talvez fosse semelhante ao de uma criança quebrando o brinquedo quando admoestada. E bem mais tarde, influenciado pelo raciocínio dominante no meio que freqüentava, pensou para si mesmo que talvez o Borboleta personificasse a polícia (ou seja, o mal) ou que talvez ele próprio, fraquejando diante do mal se castigava com essa morte simbólica.
          Uma decifração natural, incontaminada e objetiva dos fatos que poderia explicar o que lhe fora até então – e aos demais – incompreensível: destruir um carro alheio e pelo qual à maneira fetichista, nutria uma afeição só tributável a uma pessoa humana. Porém, há para Maneco Manivela outras possíveis explicações: estar agindo, sem perder a capacidade de raciocinar, sob a influência de um impulso ou sob os desígnios de uma espécie de delírio. Um delírio parecido ao que tivera quando criança, doente com crupe.

          Não há, na verdade, qualquer certeza sobre a razão que o levou à destruição do Borboleta.Mas, certamente, certezas pouco importavam ao romancista. Publicado em 1944, em plena ditadura de Getúlio Vargas, Desolação é o romance – como depois também o serão Passos perdidos e Nuanças – do homem vigiado.

          No texto de Dyonélio Machado se trata de uma vigilância insinuada, entrevista. Embora por vezes ambígua é uma presença inegável que, ao mostrar o medo e a insegurança de Maneco Manivela, revela muito mais do que seu drama individual num mundo em que se instala o controle ideológico dos cidadãos.

          Um controle de que foi vítima o próprio Dyonélio Machado. Não somente ao sofrer uma prisão humilhante devida exclusivamente às suas idéias político-sociais, mas por ser também marginalizado como escritor.

          Situações que seriam enigmas verdadeiramente difíceis de entender não fosse ele um homem do Continente.

          Um Continente onde tudo é tão possível.

domingo, 20 de agosto de 1995

O Borboleta e os outros


O Borboleta era um pequeno caminhão Ford. Modelo muito antigo. Via-se sempre no meio da cidade – na sua marcha saltitante, devido a sua leveza e ao fato de ser muito alto, ridiculamente alto. E era muito familiar aos moços de garage, inspetores de tráfego, empregados das bombas de gasolina. Devia esse nome a uma borboleta de louça azul que o primitivo dono mandara pregar nos favos do radiador como uma insígnia. Passos perdidos.

 
          O Borboleta pertencia a Antonio Vitorino, um ricaço (meio ricaço), que o deixara encostado na oficina – talvez para desmontá-lo e vender suas peças – em que trabalhava Maneco Manivela. Para um breve passeio de Porto Alegre até a praia ele o tomou emprestado e partiu com mais quatro conhecidos para o litoral. Na volta, dois deles tomaram outro rumo e Maneco Manivela, Leo e Luiz passam, então, a formar um grupo unido em torno do caminhãozinho. Cuidam que tenha água, óleo e gasolina. 
Procuram lugar em que fique ao abrigo das intempéries e, dentro de suas possibilidades, tentam que nada lhe aconteça e ensaiam muitos cuidados: limpeza das velas, reajustagem, inspeção dos discos. Tampouco fogem das horas de trabalho, desaparafusando, limpando, engraxando, torcendo o Borboleta. E até se afeiçoando a ele nessa convivência em que acabam por lhe atribuir papéis que vão desde servir como garantia de um almoço no hotel, até ser usado, num dos rasgões da lataria, como abridor de garrafa. E também, um lugar de econtro, de aconchego. Perto do Borboleta, eles conversam; perto do Borboleta, eles comem. E o pequeno camihnhão passa a ter um preço diferente daquele que talvez seja o preço real, uns duzentos, uns trezentos mil réis.

       E diz um deles: -Se fosse meu eu não trocaria esse auto por dinheiro nenhum. Mas, acabam vendendo o Borboleta, que não lhes pertencia, para com o dinheiro resolver os problemas imediatos embora sem levar muito a sério a transação que, segundo Maneco Manivela, apenas representa uma solução provisória. O comprador fora tomado de um súbito e espontâneo interesse pelo caminhãozinho que também caíra nas boas graças de sua mulher. -É que o Borboleta impõe uma simpatia mesmo, ele então explica.

          Uma atração que talvez advenha do fato de ser antigo e ter esse enfeite que exibe e lhe dá esse inesperado encanto da surpresa.





          Fixando-se nele, ao ser solicitado para ceder um pouco de gasolina, o chofer de um outro carro primeiramente se admira: -Donde é que tiraram isso? E, antes de obter uma resposta, vai passando a mão no carro e na borboleta azul do radiador: E ele tem um enfeite!... diz, achando graça.
 
          Para Maneco Manivela, o Borboleta é algo semelhante a um lar nessa viagem. A sua sombra ele se abriga, embaixo dele se acomoda para dormir, dentro dele guarda suas coisas: seu macacão de trabalho, a tábua de forrar o chão para mexer nos chassis, o couro de ovelha que surrupiara, o livro que lhe deram de presente. Trabalha muito para consertá-lo, cansando-se de tanto baixar, erguer o capô, se curvar, mexer em fios, em parafusos.
          Planeja, ao chegar de volta a Porto Alegre, fazer-lhe uma reforma completa: submetê-lo a uma compostura em regra. Já  se imagina pulando do Borboleta na hora em que a polícia o alcançasse. Certamente, nada que fizesse prever a decisão de incendiá-lo. Que no entanto lhe passa pela cabeça  no momento mesmo em que o vendeu e que lhe volta e o leva à súbita decisão.

          Depois, lhe perguntaram – o dono, o amigo, o juiz, - por que havia feito isso. Porém, ele não teve respostas para dar. Mas, respostas houve. Habilmente, em breves seqüências, alheias a um tempo cronológico, disseminadas nos romances posteriores, Passos perdidos e Nuanças, momentos dessa perfeita teia romanesca que somente um grande ficcionista – e Dyonélio Machado é um deles – é capaz de tecer.

domingo, 13 de agosto de 1995

Presença do Borboleta


É um pequeno caminhão muito antigo e muito conhecido de certas rodas: moços de garage, inspetores do tráfego, empregados das bombas de gasolina. Tirara o nome duma borboleta de louça azul e asas abertas que o primitivo dono mandara fixar nos favos do radiador, a título de insígnia. Esse sujeito era um tipo folgazão, espécie de vendedor ambulante, de viajante comercial. Saía sempre no carro, empreendia pequenas viagens de negócio. Levava tudo no Borboleta. Desolação. 
 
          O Borboleta foi “emprestado” pelo mecânico da oficina onde o dono o deixara encostado. Maneco Manivela queria ir até a praia com os amigos. A viagem, por estradas de pedras e areia vai desgastando o caminhãozinho até que não pode prosseguir a viagem. Às voltas com achar a solução para poder comprar a peça quebrada e incapaz de resolver seus próprios problemas, levam Maneco Manivela a atear fogo no Borboleta.

          É essa história que Dyonélio Machado irá construindo, aos poucos, ao longo de quatro romances: O louco do Cati (1942), Desolação (1944), Passos perdidos (1946) e Nuança (1981). Uma construção pacienciosa, feita de breves descrições do Borboleta e de breves referências a seu desempenho, disseminadas nesses quatro romances.

          O pequeno caminhão é velho, modelo antigo, leve, ridiculamente alto. Está muito sovado e sua pintura, feita à mão, tem a cor já um tanto indecisa entre o azul e o preto. O niquelado, corroído pela ferrugem, se mostra descascado e os estribos e os guarda-lamas já estão ruços, esbranquiçados com a perda gradual, lenta da camada de tinta. Há muito que a trava não funciona e que ele só tem um farol.

          E é assim que ele sai de viagem, consumindo combustível – bebe como um carro grande – frouxo, batendo desajustado, falhando, apenas capaz de pouca velocidade, inclinando-se para um lado.

          E é assim que vai se estragando, gradativamente, na semana que durou a viagem. A tossezinha do cilindro que falha, o borbulhar da água e o vapor quase levantando a tampa de alumínio mal presa na rosca já gasta. Todo ele cheio de ruídos diante dos obstáculos da estrada. Por vezes, movendo-se somente em segunda e esquentando muito. Até que o motor patina no ar e advém esse cheiro de coisa queimada. Fumegando, o Borboleta para e só vai chegar a Águas Claras, uma etapa da viagem, a reboque. O tempo e o trabalho e o tratamento recebido o haviam degradado.

          No espaço que então lhe concedem, a enramada no jardim de uma casa, ele repousa, mudo, impenetrável, ao mesmo tempo frágil e despótico.

          Adjetivos que lhe atribuem qualidades estranhas a seres inanimados mas que, de certa maneira, podem parecer verossímeis, se consideradas as relações que são estabelecidas com ele por seus ocupantes, quando o sentem ou o percebem como um ser vivo, familiar e dócil, quieto e pensativo. Como um animal doméstico ou mudo e enigmático como um ídolo ou tão fiel como um bicho.

          O Borboleta está presente e se faz ouvir no pequeno som da areia, no barulho leve da garoa, na goteira que atravessa a enramada. E se faz ver nas imagens brevíssimas que o mostram, se distante, uma silhueta franzina, uma figura familiar, massa parda no acinzentado da areia, ou uma sombra oblíqua, ou meio esguia, meio frágil. Imagens que o relacionam com seus ocupantes, com o espaço em que se move ou com o passar do tempo que, embora a sua revelia, ele acaba indicando: A sombra do Borboleta, que o tornava quase irreconhecível de tão oblíqua, fazia uma faixa diagonal, dum azul violáceo.
 
          E nessas pequenas seqüências descritivas, nas referências a seu estado e suas possibilidades, delineiam-se, precisas, as suas funções romanescas. Pontilhando um relato que se estende por quatro romances, o Borboleta, além dessas suas funções que permitem múltiplas aproximações, é expressão de um recurso narrativo extremamente rico. Somente digno de um escritor que domina a arte e a técnica do romance.

domingo, 6 de agosto de 1995

O Borboleta e seu destino


Como viera parar ali o Borboleta e com aqueles donos, é o que não se sabia. O Borboleta era um pequeno caminhão Ford, muito antigo e muito conhecido de certas rodas - moços de garage, inspetores de tráfego, empregados das bombas de gasolina. Pertencera durante muito tempo a um sujeito folgazão espécie de vendedor ambulante, que mandara colocar na trama em favos do radiador, uma borboleta de louça, com asas azuis muito abertas. Na ocasião, ele parecia estar desarranjado, à sombra escassa (era pouco mais de meio dia) duma grande árvore, encordoada de grossas raízes, que ficava na frente e um pouco sobre um canto do armazém. 
 
          Assim começa a história do Borboleta nas primeiras páginas do O louco do Cati.Era uma Sexta-feira, dia treze e logo se iniciou a viagem da qual ele não voltaria. Mas, o que sofreu com a falta de óleo e de água e de gasolina nos dias em que rodou por estradas áridas e como sua embreagem falhou, foi contado em Desolação.

          Ele não aguentaria a viagem sem óleo, alguém pergunta. E há um respondendo que sim, que aguentaria e outro carregando de longe uma lata de combustível ou roubando de outro carro para por no seu tanque. Sempre um de seus ocupantes disposto a cuidá-lo, a consertá-lo.

          Embora alto, o Borboleta não era carro para enfrentar as pedras e as areias dessas estradas ruins que percorria. Levado, porém, a tal aventura, vai rodando até que um cheiro de borracha queimada anuncia o desastre que o impossibilita de seguir. E é de reboque que ele chega até Viamão onde o deixam sob a ramada do pátio de uma casa enquanto soluções eram ensaiadas para conseguir fazê-lo andar. Ali ele ficou, mais ou menos protegido do sol e da chuva.
          Veio, então, Maneco Manivela que o tirara da oficina, onde fora encostado pelo dono, para ir de passeio – coisa de passar na praia um dia ou dois – e num ato inexplicável e inconseqüente lhe prende fogo.
          Era Sexta-feira e uma semana havia transcorrido desde que fora posto na estrada para passear e, sem razão aparente, acabar em cinza.
          No entanto, a frase o Borboleta se acha envolto em chamas que dá conta de sua destruição no último parágrafo do romance Desolação não o faz desaparecer da ficção de Dyonélio Machado. Ainda em Passos perdidos e em Nuanças o Borboleta estará presente.
          Uma presença cujo intuito dir-se-ia ser o de conduzir a uma das facetas da alma humana.Bastaram os dois anos de cadeia e esse breve tempo de reintegração na sociedade para que Maneco Manivela já estivesse convencido que incendiar o carro que não lhe pertencia não era, certamente, algo de tão grave. 
          Afinal, o Borboleta era apenas um calhambeque.