domingo, 25 de junho de 1995

A outra viagem

          Iniciara-se a viagem numa sexta-feira, dia treze, por insistência de Norberto, no “Borboleta”, pequeno caminhão Ford, muito antigo e assim chamado porque o primitivo dono mandara fixar nos favos do radiador, a título de insígnia, uma borboleta de louça azul e com as asas abertas.Seu destino era o litoral e para lá seguiram, além de Norberto, Leo, Luiz, Maneco Manivela e o maluco incorporado ao grupo.

          Quando se propõe retornar, Norberto anuncia que ficará mais tempo e, com ele, o Maluco. Os outros então retornam, desaparecendo nas dobras oblíquas dos cômoros como através uns bastidores.

          Dessa maneira, termina o décimo segundo capítulo de O louco do Cati. Nos seguintes, Norberto e o Louco tomarão rumo e sobre Leo, Luiz e Maneco Manivela nada mais será dito.

          Em 1944, dois anos depois, publicado pela José Olympio, aparece Desolação, romance que irá relatar a continuação da viagem de Leo, Luiz e Maneco Manivela.

          No primeiro capítulo estão em Águas Claras, a caminho de Porto Alegre e o “Borboleta” com sério problema na embreagem, impossibilitado de continuar rodando. Todo o romance irá se constituir na busca de uma solução para o problema mecânico o que permitiria, ao trio, a volta para casa.

          No relato cronológico, se desenham as paisagens de um áspero litoral, se esboçam tipos humanos que, na sua diversidade, guardam em comum uma certa mesquinharia, uma certa desconfiança das quais muito poucos estão isentos. Nesse pequeno mundo de pequenos seres e pequenas misérias, as idas e vindas, querendo vencer percalços e indecisões para alcançar o imprescindível que parece estar centrado unicamente na compra de uma embreagem, se acrescentam para impulsionar a narrativa. Inserindo-se nela, lentamente, quase uma insinuação, o cerco se fazendo em torno de Maneco Manivela. É o elemento provocador, o militante esclarecido, o investigador, o policial, os colaboradores que o observam e o seguem ou para coaptá-lo ou para incriminá-lo.

          Ter levado Norberto, militante de um Partido fora da Lei até o litoral, poderia ter sido o começo de algo em que não pensara: o Movimento, a revolução. Mas, agora, aquela história queria parafuzá-lo e entrar-lhe no corpo à força.

          Recebe avisos e advertências, supõe que o seguem, que o observam e acaba dominado pelo medo. Assim, ao procurar conseguir a embreagem que deve solucionar o problema do “Borboleta” acrescenta a sua própria busca: fugir do que acredita ser a sua inevitável prisão.

          O relato se adensa nesse magistral entrelaçamento das linhas narrativas e do inesperado final cujo significado, profundo, ultrapassa a problemática de uma perseguição político-ideológica – sem dúvida, tema primeiro do livro - para expressar solidão, desespero, impotência, desolação.

          Maneco Manivela, encurralado ou se sentindo encurralado é um homem diante de seu destino. Sobretudo, um cidadão brasileiro, parte desses espaços esquecidos que soem ser, quase sempre, os do Continente onde essa sua viagem é passível de acontecer.

          Compreender tais espaços – o interior e o exterior – ambos desolados, possuir uma técnica narrativa, criativamente distante daquela então usual na década de quarenta, fazem desse romance de Dyonélio Machado uma obra bela e incomum.

          Ainda que à revelia dos críticos.

domingo, 18 de junho de 1995

Parecer


          Foi preparado com três meses de antecedência para se constituir o acontecimento social do ano: um almoço que festejasse as bodas de prata do doutor Lácides Olivella com Aminta Dechamps.
          Ela mandara buscar galinhas vivas da “Ciénega de Oro”, famosas não somente pelo tamanho e pelo gosto mas porque nos tempos da colônia picoteavam em terras de aluvião e nas moelas eram encontradas pedrinhas de ouro puro. E subia a bordo dos transatlânticos de luxo para comprar iguarias de todos os lugares. Do convento de Santa Clara havia encomendado os doces e no jardim, onde as mesas haviam sido colocadas, um estrado fora feito para a banda que tocaria música nacional e para o quarteto de Cordas da Escola de Belas Artes que iria interpretar La Chasse de Mozart, La muerte y la doncella de Schubert e uma peça de Gabriel Fauré.
          Nas mesas – um lado para os homens, outro para as mulheres – um cartãozinho indicava o lugar de cada convidado onde havia impresso, em francês, o cardápio com vinhetas douradas.
          Embora se tratasse de um almoço campestre, a maioria dos convidados estava vestida com trajes escuros e gravata preta e as senhoras usando trajes longos e adereços de pedras preciosas.
          No entanto, houve um pequeno senão, contrariando preparativos e desejos: a chuva torrencial que, de repente, desabou, fazendo com que tudo passasse a acontecer no interior de uma casa, bem menor do que seu jardim. Os convidados nela se acomodaram como puderam, numa promiscuidade de força maior, que, naquele momento, anulou as superstições sociais do Continente.
          E enquanto a comida era servida nos quartos e nas salas por garçons que mal podiam passar entre um conviva e outro, os músicos executaram suas peças e a sobremesa foi oferecida depois do café pois só nessa hora é que, finalmente, chegou. Quando os convidados esperavam que os terraços fossem limpos dos estragos da chuva para poderem dançar – pois como tinha se iniciado, o aguaceiro havia parado de repente – o sol já se mostrava no céu sem nuvens.
          Porém, das iguarias servidas, nada é mencionado. Como, se para Gabriel García Márquez o importante fosse apenas dizer de um ritual, criado para expressar poder e riqueza e, então, estabelecer fronteiras.
          No almoço festivo em que comparecem o Doutor Juvenal Urbino e sua mulher Fermina Daza logo no início do romance El amor en los tiempos del cólera estão evidentes os limites que separam, não apenas os que possuem e disso fazem demonstração, dos que trabalham – arrumando as mesas, montando os estrados para os músicos, preparando a comida, servindo os convidados, executando peças musicais, limpando o recinto – mas, entre os que, pretensamente, pertencem à mesma classe social.
          Algo os faz pensar, porém, que fazem parte de uma elite sem se dar conta que, muitas vezes, ignoram ou esquecem as próprias raízes e que são, sobretudo, marcados pela necessidade de sobrepor o parecer ao ser.
          Uma visão de mundo que pode provocar situações diversas entre as quais aquelas dignas de riso.
          Delas, o Continente se mostra pródigo.

domingo, 11 de junho de 1995

O efêmero

         Quando Jardin de invierno foi publicado em 1974, Pablo Neruda não mais existia. E esses versos que deixou são, muitas vezes, tristes e verdadeiros.
 
         Mas, embora já fosse possuidor da surpreendente compreensão que os anos e seu peso concedem a alguns e da melancolia definitiva que esse compreender, por sua vez, pode ocasionar, a sua ímpar e inigualável capacidade para encontrar tesouros em pequenos nadas, permaneceu intocada.
 
         Em Confieso que vivi, o poeta faz o relato de sua viagem à China, em 1957, e, por momentos, lhe descreve a paisagem que descobre muito próxima das velhas pinturas chinesas.

         Navegando pelo rio Yang-tsê-Kiang, tendo diante dos olhos suas margens cambiantes, sente que dessa natureza grandiosa se desprende uma profunda poesia: poesia breve e despojada como o vôo de uma ave ou como o relâmpago prateado da água que flui quase imóvel entre os muros de pedra.

         O efêmero, uma breve beleza que somente o olhar daquele que se confessa – o Simpósio organizado pela Biblioteca Nacional de Santiago, em 1964, para marcar os seus sessenta anos, registra essa confissão – perseguido pelos acontecimentos de sua vida e pela natureza que não deixa de chamá-lo com suas múltiplas vozes, pode reter. E, dessa fugidia imagem, criar algo de humanamente eterno.
 
         Como o encontro com o pássaro. Na primavera, na Normândia, elegante, patas delgadas, dois riscos azuis, nervosos olhos, ardentes plumas, se aproximou do poeta intrépido e curioso. Mas, ao encontrar um grão qualquer, um inseto qualquer, se afasta, abandona o enigma / deste gigante que fica sozinho / sem sua pequena vida passageira.
 
         O poema faz parte de Jardim de invierno e, reiterando um antigo tema – o pássaro – acompanhado de outro que nunca deixou de estar presente na sua obra mas que, nesse tempo em que se aproxima da morte, se faz mais constante e espontâneo: a solidão.
 
         Assim, esse poder se extasiar sempre diante da natureza, seja ela o bosque, a chuva, o mar, seus habitantes, o leva a descrever o pássaro que dele se aproxima aos pequenos saltos e que aos pequenos saltos dele se afasta e a interpretar-lhe o olhar, as interrogações nele contidas.
 
         Perguntas que o poeta, pobre humano possuidor apenas de um tempo limitado, não pode responder.
 
         Gigante diante do pássaro, é tão frágil quanto ele. Sozinho, é  dono também, de somente uma vida passageira.

domingo, 4 de junho de 1995

Quase em louvor do cinema

 
          Entre os mais belos poemas de amor que Pablo Neruda selecionou para compor Todo el amor, publicado em 1971 pela Losada de Buenos Aires, figura “Oda a un cine de pueblo”.

          Um desses poemas em que Pablo Neruda fixa um momento mágico de sua vida cuja ingenuidade aparente torna mais forte um dizer pleno de sugestões.


          Sem dúvida, nada mais modestamente simples do que a primeira estrofe, Meu amor, / vamos ao cinema do povoado. Seguem-se os versos  que dão conta do tempo – é noite e de bom tempo, pois, se trata de uma noite transparente de estrelas visíveis. Na mesma estrofe, outra vez, o tom prosaico tu e eu entramos no cinema do povoado, que se transforma com a informação de que é um cinema cheio de crianças e que cheira a maçã. Nele, na sua tela já da cor da pedra e da chuva, passam os velhos filmes: e a prisioneira, e os cavalos, e os vaqueiros furando com seus tiros a perigosa lua do Arizona e a luta e a avalanche implumada / dos índios / abrindo seu espaço na planície.
          Pablo Neruda se confessa com a alma em suspense diante desses ciclões de violência. E na estrofe seguinte – certamente o filme acabou e as luzes se acendem – nota que muitos jovens do povoado, dormiram cansados do dia de trabalho.

          O poeta retorna, nos últimos versos, ao vocativo inicial meu amor já agora para traçar – usando o pronome nós – um caminho de participação intensa. Um afã de viver plenamente, faremos nossas, todas as vidas verdadeiras e de acreditar nos sonhos, em todos os sonhos. Na aventura do futuro, na certeza de que será como deseja, envolve o ser amado, essa mulher que deseja a seu lado, companheira.


          A mulher que – diante daqueles velhos filmes de “cow-boy”, fazedores de festa na matinés de domingo, em que os altos e loiros, armados de armas de fogo eram sempre vencedores na destruição dos escuros e toscos – possa, como ele, se emocionar e temer pelos vencidos.Também, lastimar a perversidade das imagens, enfatizando um Bem passível de se transformar em Mal, ao sul do rio Bravo, se o olhar que sobre eles se pousam não estivessem a priori, obnubilados por conceitos falsos. A mulher que saiba sonhar com ele um outro mundo para o Continente.
          Em que desde crianças seus habitantes já soubessem distinguir os verdadeiros heróis quando na luta brilhasse a lua do Arizona.