domingo, 5 de fevereiro de 1995

Ofélia dos trópicos

          Cabelos lisos, tez mate, pernas longas e seios miúdos, talhe fino, Ofélia havia deixado para trás as formas fortes e rústicas de sua mãe, índia do Continente.Envolta  em musselinas claras, perfumada e radiosa, vivia em Paris, falando com voz macia e tocando, tocando outra vez “Para Elisa que jamais conseguia isentar de notas desafinadas.O primeiro  magistrado de uma republiqueta qualquer ao sul do Rio Bravo, era seu pai. Com a riqueza dos cofres públicos que, tradicionalmente e como algo natural, nesses casos, passa a ser de usufruto do mandatário do país, estava instalada perto do Arco do Triunfo.Ofélia não se ofendia de, no dizer de um francês, lembrar a beleza das mulheres de Gauguin e seu linguajar era fino e sutilmente matizado, desde que sua vontade não fosse contrariada. Porque, então, sua cólera se expressava em gestos obscenos e num vocabulário considerado pelo seu pai como aquele usado pela escória dos quilombos.

          É uma presença breve e rara no romance El recurso del método de Alejo Carpentier, publicado em 1974. A primeira vez que aparece, é anunciada pelo som de sua interpretação ao piano. “Para Elisa cada dia lhe sai melhor diz o secretário do tirano. Pouco depois, ouve-a, também, um visitante que julga oportuno esclarecer que a peça que está sendo tocada é de Beethoven. Somente depois de um longo repassar da partitura é que Ofélia chega onde está o pai para anunciar que viajará à noite para Bayreuth onde irá se realizar a temporada de Wagner.

          E nas suas andanças européias ela fica, enquanto o pai deve voltar ao país para sufocar um contra golpe e outro mais.

          As mortes dos revolucionários e a eterna miséria são para ela, algo de muito distante e alheio. Tem a bondade que desabrocha para a “Obra missionária na China”, para a “Liga de proteção à arte gótica”, para a “Fundação da gota do leite”, ignorando as mulheres descalças que não tem um lugar onde dar à luz, ao oferecer a essas instituições os milhares de dólares subtraídos de um tesouro nacional que, na verdade, parece pertencer somente a seu pai. Ou, aquela que o pai lhe incumbe e a faz ir de povoado em povoado com o uniforme da Cruz Vermelha, expondo fotos da destruição deixada pela Primeira Guerra Mundial em terras francesas e coletar fundos para a reconstrução das regiões devastadas, sem pensar nos seus compatriotas que, sem ter para si, ajudavam uma França longínqua e desconhecida.

          Depois desse feito que apaga os crimes de seu pai, Ofélia desaparece de uma cena em que ele não admite perder o papel principal, feito de todos os contornos de um típico ditador do Continente: o que censura, persegue, aprisiona, tortura e mata.

          E que, ao ser por fim vencido e se retirar para Paris, conhece outra derrota. A que lhe impinge Ofélia que, embora dizendo agora, sim, vamos voltar a ser felizes: não vais ter que voltar a esse país de selvagens lhe rouba o espaço e o poder de decisão.

          “Ex” Primeiro Magistrado, como ele mesmo se intitula, passa a viver na mansarda de sua casa já não mais decorada com os objetos de arte que escolhera mas com aqueles que o gosto da filha determinava.  

          E na Paris em que buscara refúgio, como nas páginas cor de rosa do Petit Larousse buscara a frase para pronunciar ao morrer, ele morre deitado na rede que levara do Continente e que mandara pendurar nas paredes da casa francesa.

          Quando fecha os olhos, Ofélia – dando ordem para que sua morte seja anunciada apenas no dia seguinte – corre com os amigos parisienses para a festa programada.


         Suas raízes há muito se haviam dissolvido no contato com a cultura européia que ela acreditava pudesse ser sua pelo simples ato de renegar o país em que nascera.

         Havia se esquecido que um dia dissera ao Primeiro Magistrado, seu pai: A casaca que o macaco veste não lhe oculta o rabo.
  
 
 

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