domingo, 26 de fevereiro de 1995

A foto da derrota

          São três fotos que estão sob o olhar de Guillermo Cabrera Infante. De comum, entre elas, o estarem fixando um momento de Derrota na interminável luta que a Ilha foi presenciando desde que os primeiros homens chegaram para habitá-la.Uma trágica derrota pois se trata do registro de mortes. De mortes violentas.

          Uma das três fotos mostra homens baleados, um pedaço de asfalto, o mar. Embora a descrição seja feita como que a seguir a técnica do Nouveau Roman - referências objetivas sobre tudo o que é possível perceber e incertezas confessadas, introduzidas pelas expressões quiçá, deve ser, - no segundo e último parágrafo, dos dois que compõem o texto, se acrescenta uma informação. Que, ou se origina de uma possível legenda não mencionada, ou de fatos conhecidos e inegáveis: faz horas que estão mortos e os deixaram aí para escarmento e medo.

          Mas, principalmente, é um ter conhecimento de fatos relacionados com as fotografias. Conhecimento também evidente nos textos dedicados aos dois retratos.

          Um deles, registra aquele que se fantasiou de soldado para por fim a uma tirania. Ele aparece sentado no chão, olhando para o fotógrafo. Visível, a ferida que tem na perna. Tudo o mais que sobre ele é dito se origina das lembranças que sobraram de seus últimos gestos, de suas últimas palavras. E, de poder adivinhar, profundamente, o que lhe vai no íntimo: que não sente medo e nem dor e que aos que o interrogaram respondeu tranqüilo, como tranqüilo olhou para o fotógrafo que lhe fixou a imagem.

          E imagem, chama Guillermo Cabrera Infante a esse outro retrato que descreve. A de um comandante do Continente, barbudo e de cabelos compridos que veste uma camisa puída e tem ao redor do pescoço um cachecol.Na assaz minuciosa descrição, chamada de inventário por Guillermo Cabrera Infante - e o cinturão, e as botas, e o punhal na bainha, e a pistola no coldre - se inclui o conteúdo dos bolsos e a expressão de seu rosto, de boca séria e olhos que se divertem com a foto.E, no parágrafo seguinte, a informação de que já está morto, vítima da rápida trajetória que fez dele, em seis meses, um comandante mestre da guerrilha e da estratégia, que deixou para trás o comerciante que ele fora. Mas, não o quê, além da coragem, também tinha sido: o mulherengo, o trocista, o quase frívolo que noutro tempo e em outro país teria sido um toureiro de vitórias, um fugaz automobilista, um playboy feliz.


          No Continente, dele ficou a imagem do herói. Ignora-se de qual causa, como se ignora aquela que defenderam os que foram assassinados a bala ou à pancadas e expostos ao olhar público como aviso e lição; ou aquele que foi morto com um tiro na nuca enquanto descia as escadas, mancando pelo ferimento e algemado.
          Sem dizer nomes, sem mencionar lugares ou datas ou as incontestes verdades que, muitas vezes, regem atos injustos e cruéis, o escritor cubano esboça histórias da Ilha onde os heróis e os vilãos existem segundo a ótica de quem os vê. Mas, em Vista del amanecer em el trópico (Barcelona, Seix Barral, 1974) é como se tal não importasse e sim esse repetir constante de atos iguais e semelhantes que parecem nada redimir ou mudar.

domingo, 19 de fevereiro de 1995

As fotos da vitória

          Vista del amanecer en el trópico, breves episódios que parecem nada ter entre si, embora se unam uns aos outros por aquelas razões que sempre conduziram o destino dos povos: as que muitas vezes servem para justificar a opressão e a injustiça. História da Ilha feita de momentos decisivos de uma vida e de ações coletivas. Multifacetados testemunhos emergindo do verso do poeta, do manifesto, do edito, do diário de campanha, da narrativa oral, da correspondência, da história oficial, da gravura, da foto.
          As fotos da Vitória e aquela da Derrota.

          Guillermo Cabrera Infante, nascido em Cuba em 1929 tem para elas um olhar minuciosamente atento. Filho do Continente, embora tenha optado pela cidadania inglesa, essas imagens lhe oferecem  leituras que alimentam a ironia presente nos textos inspirados nessas fotos.Assim, as fotos da Vitória. Ao se deter sobre uma delas, Guillermo Cabera Infante inicia o seu texto dizendo que a foto é de um curioso simbolismo. Sinaliza o fim de uma tirania militar ao mesmo tempo que entroniza um soldado . Soldado que é o elemento central da foto. Sua postura e seu gesto – cabeça erguida, a mão direita segurando o rifle para o alto – fixam-no em triunfo. Para ele convergem os acenos de dois homens do povo. E detrás deles se percebe parte do cenário: sacadas de ferro forjado, janelas abertas e, na esquina, uma publicidade de linha aérea, em inglês. Uma outra foto mostra o ambicioso general , a paisano, sorridente,rodeado de militares, coronéis e capitães  que uma hora depois serão generais e brigadeiros. E, ainda, uma terceira foto documenta o Comandante em Chefe, entrando na cidade com mais um comandante, num jipe, sendo aclamado pela multidão. Na realidade, eram dois Comandantes que o acompanhavam, mas o fotógrafo não conhecendo um deles o cortou da foto para fazê-la mais compacta. Ato que Guillermo Cabrera Infante chamou de adivinhação histórica pois, meses depois, esse Comandante era acusado de traição e condenado a permanecer trinta anos na cadeia. São retratos  esboçados, desta vez em textos que fortemente os relacionam com os demais do livro. São expressões fugazes e subentendidos a sugerir incertezas: a multidão parece estar entusiasmada com a vitória de sua causa; os militares, beneficiados pela vitória, parecem não se importar com a  cisão que tais benefícios possam provocar; a multidão saudando três comandantes que, poucos meses passados, serão dois, pois um deles irá cair em desgraça.

          Certamente  significados que se acrescentam àqueles oferecidos na rigidez das imagens, permitindo interpretações que se distanciam do propósito que as originou: documentar um momento de vitória, com a pretensão de fazer disso uma verdade.

domingo, 12 de fevereiro de 1995

A ilha

          Guillermo Cabrera Infante começou a escrever em 1947, quando tinha dezoito anos. Contos, crítica de cinema, relatos.

          Em 1964, recebeu o Prêmio Biblioteca Breve da Editora Seix Barral de Barcelona com Três tristes tigres. Esse romance, originariamente se chamaria Vista del amanecer en el trópico, título que serviu para outra de suas obras, publicada, também pela Seix Barral em 1974 e que é constituída de breves relatos.
 
          O primeiro e o último tratam de um espaço geográfico: a longa ilha de cor verde, com algo de dourado ou de vermelho. Entre o oceano e o golfo aí está,expressão com que termina o primeiro texto.  Bela e verde, imorredoura, eterna, são as últimas palavras do livro que assim  definem  a ilha no último texto iniciado com a expressão e aí estará que torna circular a estrutura da obra. Nela, se inscreve a história dos homens que, ao longo dos anos, pelas mesmas razões ou por aquelas que se querem diferentes, foram perseguidos e maltratados e mortos.
 
          Não há datas, não há nomes, não há topônimos, somente fatos que sendo sempre os mesmos se repetem e se repetem como se o relato começasse outra vez: a morte pelo fogo dada ao índio; o tratamento de exceção sofrido, invariavelmente, pelo negro; o massacre que sempre acaba por ocorrer nas lutas desiguais, o definitivo castigo para os que se revoltam ou conspiram; as leis injustas e inconseqüentes; as sessões de tortura; os cadáveres abandonados em lugares públicos para servir de exemplo aos que tencionassem fazer reivindicações.
 
          Entre esses relatos dedicados à tristeza dos humanos do Continente que o passar do tempo não ameniza e às lutas, nem sempre vitoriosas que devem empreender, tentando fugir dos malfadados destinos, se insere um cenário: la sierra, a cordilheira. Que somente é alcançada depois das planícies, potreiros, pomares e rebanhos, erguendo-se entre os pântanos e o mar: quando começam a aparecer os coqueiros e as palmeiras, as árvores de madeira preciosa, as orquídeas selvagens, por vezes as frutas – a goiaba, o mamão, a manga – logo substituídas pelas espécies gigantes unidas por espessa vegetação. E há todo um mundo de insetos, de borboletas, de pássaros. O ar se torna tênue e as nuvens muito próximas. Tão próximas quanto os abismos de quedas verticais. Vez por outra, um planalto inteiramente verde, desde o solo coberto de um verde tapete vegetal e das árvores e arbustos cobertos de líquens até a própria luz solar que se mostra verde.
 
          Paisagem anódina, delineada em traços rápidos, breve relâmpago de harmonia entre os quadros que se sucedem para compor a história de heroísmos e traições que os homens instauraram na ilha.
 
          O heroísmo dos que enfrentam com tranquilidade a morte decidida pelo mais forte ou o de suportar todas as perdas. A traição ignóbil presente em cada luta que não respeita os que se rendem nem os que ainda acreditam nas palavras proferidas.
 
          Uma história que é feita sobretudo de desacertos e de esperanças nos quais se enredam os habitantes do Continente.

          Porque a Ilha estará sempre aí, a mercê dos homens que conduzem seu destino.

domingo, 5 de fevereiro de 1995

Ofélia dos trópicos

          Cabelos lisos, tez mate, pernas longas e seios miúdos, talhe fino, Ofélia havia deixado para trás as formas fortes e rústicas de sua mãe, índia do Continente.Envolta  em musselinas claras, perfumada e radiosa, vivia em Paris, falando com voz macia e tocando, tocando outra vez “Para Elisa que jamais conseguia isentar de notas desafinadas.O primeiro  magistrado de uma republiqueta qualquer ao sul do Rio Bravo, era seu pai. Com a riqueza dos cofres públicos que, tradicionalmente e como algo natural, nesses casos, passa a ser de usufruto do mandatário do país, estava instalada perto do Arco do Triunfo.Ofélia não se ofendia de, no dizer de um francês, lembrar a beleza das mulheres de Gauguin e seu linguajar era fino e sutilmente matizado, desde que sua vontade não fosse contrariada. Porque, então, sua cólera se expressava em gestos obscenos e num vocabulário considerado pelo seu pai como aquele usado pela escória dos quilombos.

          É uma presença breve e rara no romance El recurso del método de Alejo Carpentier, publicado em 1974. A primeira vez que aparece, é anunciada pelo som de sua interpretação ao piano. “Para Elisa cada dia lhe sai melhor diz o secretário do tirano. Pouco depois, ouve-a, também, um visitante que julga oportuno esclarecer que a peça que está sendo tocada é de Beethoven. Somente depois de um longo repassar da partitura é que Ofélia chega onde está o pai para anunciar que viajará à noite para Bayreuth onde irá se realizar a temporada de Wagner.

          E nas suas andanças européias ela fica, enquanto o pai deve voltar ao país para sufocar um contra golpe e outro mais.

          As mortes dos revolucionários e a eterna miséria são para ela, algo de muito distante e alheio. Tem a bondade que desabrocha para a “Obra missionária na China”, para a “Liga de proteção à arte gótica”, para a “Fundação da gota do leite”, ignorando as mulheres descalças que não tem um lugar onde dar à luz, ao oferecer a essas instituições os milhares de dólares subtraídos de um tesouro nacional que, na verdade, parece pertencer somente a seu pai. Ou, aquela que o pai lhe incumbe e a faz ir de povoado em povoado com o uniforme da Cruz Vermelha, expondo fotos da destruição deixada pela Primeira Guerra Mundial em terras francesas e coletar fundos para a reconstrução das regiões devastadas, sem pensar nos seus compatriotas que, sem ter para si, ajudavam uma França longínqua e desconhecida.

          Depois desse feito que apaga os crimes de seu pai, Ofélia desaparece de uma cena em que ele não admite perder o papel principal, feito de todos os contornos de um típico ditador do Continente: o que censura, persegue, aprisiona, tortura e mata.

          E que, ao ser por fim vencido e se retirar para Paris, conhece outra derrota. A que lhe impinge Ofélia que, embora dizendo agora, sim, vamos voltar a ser felizes: não vais ter que voltar a esse país de selvagens lhe rouba o espaço e o poder de decisão.

          “Ex” Primeiro Magistrado, como ele mesmo se intitula, passa a viver na mansarda de sua casa já não mais decorada com os objetos de arte que escolhera mas com aqueles que o gosto da filha determinava.  

          E na Paris em que buscara refúgio, como nas páginas cor de rosa do Petit Larousse buscara a frase para pronunciar ao morrer, ele morre deitado na rede que levara do Continente e que mandara pendurar nas paredes da casa francesa.

          Quando fecha os olhos, Ofélia – dando ordem para que sua morte seja anunciada apenas no dia seguinte – corre com os amigos parisienses para a festa programada.


         Suas raízes há muito se haviam dissolvido no contato com a cultura européia que ela acreditava pudesse ser sua pelo simples ato de renegar o país em que nascera.

         Havia se esquecido que um dia dissera ao Primeiro Magistrado, seu pai: A casaca que o macaco veste não lhe oculta o rabo.