domingo, 25 de dezembro de 1994

O pequeno monólogo



[...]assobiou musiquinhas, imitou o queixume da coruja, disse a tabuada até onde sabia e no amanhecer quando o sol começou a tirar brilho do campo e os galos se largaram a cantar, aí mandou que todos os presentes fizessem o sinal da cruz e disse: Em nome do Espírito Santo! Que alegria! Chegou o Natal. O Jesuzinho já está no mundo.
 

          O conto se chama “Guillermo” e faz parte do livro Cuatrocasas, Prêmio Casa de las Américas, 1976.

          Guillermo Pérez, em pleno campo, na véspera de Natal está esquentando sua comida quando chega o filho do patrão, bêbado. Um breve diálogo entre ele e o peão o leva a concluir que para viver tão sozinho e tão pobre, um bicho que a solidão pode tornar feroz, não vale a pena viver. Não pode se controlar e, embora bêbado, tem forças para degolar aquele que acha um coitado.

          À noite, ainda, ou outra vez bêbado, entra na sala em que a família festejava com os amigos e diz que o pai precisa mandar fazer investigações pois os peões andam se matando. Numa bandeja traz a cabeça de Guillermo Pérez.

          Entre os presentes se estabelece o silêncio. Nem o juiz, nem o padre, nem o pai, nem o escrivão erguem a voz. A cabeça de Guillermo Pérez, sim. Disse quem era, os anos de geada que já tinha passado, os trabalhos que sabia fazer. E cantou e imitou a coruja e recitou a tabuada de multiplicar. E quando amanheceu o dia 25 de dezembro, ele ficou alegre porque Jesus tinha nascido e fechou, finalmente, os olhos.

          Pela primeira vez em sua vida foi escutado e, talvez, isso seja mais surpreendente do que ter falado com sua cabeça de degolado.

          No relato, a ruptura da lógica estabelecida se faz já nas primeiras linhas: Foi morto na véspera de Natal, morreu no dia de Natal.

          Quando, porém, as circunstâncias de sua morte são conhecidas, advém um outro tipo de ruptura: essa morte que acontece porque alguém se atribuiu o arbítrio divino de tirar a vida de um ser humano.

          Assim, o elemento fantástico que se dilui diante do absurdo da realidade e passa a ter uma função que vai além de um simples sentido lúdico, negando-se a servir de antídoto contra o desconhecido do Universo como acontece nos textos europeus.

          Na Literatura do Continente, o fantástico mantendo estreitas relações com o contexto que lhe dá origem, funciona como um antídoto contra o conhecido (e repudiado) que, no entanto, nem sempre pode ser dito claramente.

          O conto de Eduardo Mignona busca a lucidez que desmascara a prepotência sem limite. Diante dela que rege a maior parte das relações entre os homens no Continente e de outras transgressões repetidas ao infinito, um dos caminhos da criação literária é a denúncia.

          E o fantástico se presta muito bem a esse caminho ao expressar o que parece não existir embora sempre preso a realidade que tem sido negada e escamoteada no Continente.

          “Guillermo” foi publicado pela revista Crisis de abril de 1976. A Crisis que documentou, durante os quarenta meses em que lhe foi possível circular essa realidade cheia de dúvidas, interrogações, injustiças e absurdos. E a criação ficcional que dela faz parte não apresenta um mundo diferente.
 

domingo, 18 de dezembro de 1994

Oitenta: o caminho interrompido

           Na primavera de 1984, a L&PM de Porto Alegre publicou o número 9 da revista Oitenta, o último de uma publicação periódica, iniciada cinco anos antes.
 

           São artigos centrados em questões polêmicas, entrevistas, pequenos ensaios sobre política, literatura, cinema. Por vezes, um poema, um conto.   

Muitos dos textos são traduzidos do inglês, do francês, do italiano e, alguns deles, de leitura verdadeiramente instigante. Em menor número, os textos brasileiros. Do Continente, a expressão de Fidel Castro, Miguel Angel Asturias, Fontanarrosa, Pablo Neruda, Carlos Fuentes, Juan Rulfo, Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa em discursos, entrevistas, depoimentos, material jornalístico, reflexões. Entre essas a de Mario Vargas Llosa, de título sugestivamente ficcional, “Reflexões sobre uma moribunda”. Sobre a crise universitária de seu país.


           Após contar um episódio ocorrido quando de sua presença na Universidade de Bologna, ele expõe as origens do movimento reformista universitário no Peru para, então, analisar as soluções que desse movimento advieram e, que no seu entender, nem sempre foram as mais acertadas, uma vez que originaram, exatamente, o inverso de objetivos que ele considera imprescindíveis: elevar os níveis acadêmicos, manter a Universidade atualizada, produzindo cientistas e profissionais capacitados para resolver os problemas do país.


           Para Vargas Llosa as práticas instauradas visando o debate intelectual, a análise e a crítica, a democratização do saber resultaram num mal entendido que não foram além das greves indiscriminadas, do patrulhamento ideológico, da concessão de mais direitos do que deveres.


           Constatações que o levam a concluir que em países com desigualdades sociais e problemas seriíssimos como os latino-americanos, os universitários, professores ou alunos, são uns privilegiados.    

            E como privilegiados contraem uma dívida moral com aqueles que, pelo seu esforço e pelo seu trabalho, tornam possível a existência da Universidade.
 

           Dívida que devem saldar com um estudo sério e capacitação para exercer um trabalho e para adquirir a consciência cívica sem a qual não é possível construir uma nação.


           É um dizer convicto que faz mais do que discutir a relação Universidade versus Movimento Estudantil ao lembrar compromissos que no Continente muito poucos são os que estão dispostos a assumir. Pois a herança ibérica recebida determina a manutenção de privilégios. Poder usufruí-los sempre foi, indubitavelmente, mais importante do que o respeito a qualquer legislação.

          Ao escolher esse texto de Mario Vargas Llosa, como o de Anita Leocádia Prestes sobre a reforma agrária no Brasil, o de Lino Agra sobre os refugiados do Vietnam, o de Fidel Castro sobre os não-alinhados, para citar apenas alguns, Oitenta, certamente, se propôs sanar ausências, oferecendo à leitura escritos ainda inéditos no Brasil ou convidar à leitura e releitura de outros, talvez, ainda desconhecidos.
 

         Valioso projeto que por qualquer razão ou por presumíveis razões teve seu caminho interrompido.


domingo, 11 de dezembro de 1994

O mito

           Mafalda olha para a pomba pousada num galho de árvore e lhe pergunta se ela é a pomba da paz. Não obtendo resposta e para desfazer sua dúvida, ela exclama: Viva a agressão e a bomba H. Do alto do galho cai a resposta quase sobre Mafalda que, feliz, conclui tratar-se, efetivamente, da pomba da paz.

           A paz que ela, contemporânea dos Beatles, almeja se concretize num Vietnam que, na condição de David frente a Golias, ocupou durante dez anos as páginas dos grandes jornais. Nessa história de Quino, construída em cinco quadrinhos, aparece Mafalda, a árvore, a pombinha. Uma árvore urbanamente solitária e outonal, de raízes protegidas por grades e umas poucas folhas. A pombinha pousada num dos galhos adquire, diante do olhar infantil, um significado que lhe é alheio. E, também, evidentemente, lhe permanece alheio o sentido que é dado por Mafalda a seu natural ato fisiológico.

           Receptiva a tudo o que acontece, Mafalda é capaz de discernir as desarmonias que imperam a seu redor sem que a imaginação própria de sua idade seja cerceada pelo senso crítico que, repetidamente, ela exerce. É essa imaginação infantil que a faz acreditar ter estabelecido com a pomba um diálogo que na realidade é um monólogo. Seu poder sugestivo está precisamente no silêncio de um dos “interlocutores” e na interpretação, por parte do outro, de que um ato espontâneo seja uma tomada de posição.

           Se os quadrinhos de Quino se mantém no nível da mais aceitável verossimilhança, o desenho de Edgard Vasques parte de uma situação fantasiosa que remete a uma situação mimética de um determinado e conhecido cotidiano. Uma pombinha, voa, altiva, com um ramo de oliveira no bico. Chaco aponta na sua direção o estilingue e Rango aparece, correndo, para dizer: Não! Essa aí, não!

           Porque Chaco, o índio que representa a fome na América, como Rango, usa de qualquer expediente para encontrar o que comer. O surpreendente é que Rango, faminto, chegue para impedir que ele atinja a pomba da paz e, assustado, intervenha.

           O único quadro, em que um rápido olhar é suficiente para abarcar os três personagens e a frase breve é de um efeito surpreendente. Seu significado se torna maior, porém, se conhecido o estatuto dos personagens: continuamente e, pelo que tudo indica, condenados à fome e em constante busca de comida.

           Assim, ter renunciado a abater a pomba que poderia servir de alimento é um gesto extremamente valioso pois ainda que miserável e com fome Rango se mostra capaz de uma escolha altruísta
           Sempre tão requisitada num mundo de conflitos perenes, nessa década 1965-1975 em que no Vietnam foram despejadas toneladas de bombas, a paz foi desejada não apenas pelas vítimas das agressões como pelos que entenderam o conflito além do que a potência agressora queria fazer acreditar.

           Se nos quadrinhos de Quino a pomba da paz, sob os olhos de Mafalda, expressa o seu repúdio à violência, em acorde com todos os que repudiam a guerra, no desenho de Rango ela passa, sem perceber os dramas próprios do Terceiro Mundo que está a sobrevoar.

           Os anos se passaram, a paz entre o Vietnam e os Estados Unidos foi assinada, as relações diplomáticas restabelecidas.

           Mafalda, porém, continuaria pensando na paz diante dos novos conflitos bélicos que foram surgindo.

           A pomba da paz certamente prossegue sobrevoando territórios com seu pequeno ramo de oliveira no bico.

           E Rango mais do que nunca se encontra preso no seu monturo.

domingo, 4 de dezembro de 1994

Rango e os ouvidos moucos

          Em outubro de 1974 era publicado o primeiro livro da L & PM de Porto Alegre Rango 1. Histórias em quadrinhos que Érico Veríssimo ao apresentar o livro dizia terem o valor de um editorial realista, corajoso e pungente. Porque Rango é o deserdado que vive dos restos, o “herói” que tenta apenas sobreviver, submetendo-se às condições que a sociedade lhe impõe.

          Quando o filho pergunta se eles não trabalham porque são aleijados Rango responde: Não, nós somos alijados.

          Alijados da alimentação da moradia. Principalmente do direito de viver como cidadão.

          Rango vive no monturo, no meio do lixo, sobre o lixo, aceitando como presença inevitável os ratos, as moscas, os urubus que compartilham o seu habitat. Muitas vezes, dentro da lata de lixo. Outras tantas falando desse lixo. Que é a sua realidade: monte de lixo, depósito de lixo, produção de lixo, brigar pelo lixo, comer lixo. Um lixo que é jogado pela janela ou transportado pelo caminhão da limpeza pública representando uma esperança de alimento num mundo de fome. Um mundo onde o impossível é quase tudo para ele. Sobram-lhe, apenas, constatações e perguntas.

          Assim, no espaço estéril da grande cidade, aquele que rega um vaso de flor ele considera um subversivo. Considera, também, que o menor abandonado foi abandonado pelo maior abandonado e que a maneira de detectar o lugar mais poluído do mundo é o eletroencefalograma. E que o mais antigo best seller de suspense é a política salarial.
 
         Mas, evidentemente, suas perguntas são irrespondíveis. Ao aviso de não pise na grama,Rango pergunta ao jardineiro comer pode? Escutando alguém da outra classe dizer que os marginais não produzem e se lamentam o tempo todo, ele pergunta: se eu não usar a boca para me queixar, vou usar para que? Diante da pergunta do filho: quando vão comer, ele, por sua, interroga:dia, hora, mês e ano?
 

          Embora tenha condições de interpretar os fatos – só é ladrão quem rouba pouco, o carnaval é um remédio que o povo toma uma vez por ano, - seu pensamento se prende a uma só vontade, a de matar a fome. E é o tema que se repete ao longo das historietas. Porque Rango, o faminto, não pode expressar outra coisa a não ser que lhe falta o que comer.

          Até porque, parece que mesmo o Deus a quem ele se dirige, o condena a ser faminto. Ao inquiri-lo sobre a palavra mágica que lhe resolveria os problemas como é habitual a todo herói de histórias em quadrinhos, a resposta que ouve é amém. Na verdade, é esse assim seja que condiciona a visão de mundo de Rango.

          Quando em 1977 foi editado Rango bis, Jose Onofre, nas linhas que escreveu sobre ele, diz que o único brado de protesto nessas suas histórias é o ronco do estômago vazio. E conclui que o “herói” de Edgar Vasques lembra uma certa paciência que acaba conduzindo à explosão.

          Ameaça que parece não estar preocupando ninguém.