domingo, 25 de setembro de 1994

O lugar certo


          Acaba de sair, pela José Olympio, As armas secretas, o décimo sexto livro de Julio Cortázar publicado em português. Eric Nepomuceno, o tradutor, num posfácio à obra, diz que ela chegouao Brasil com o absurdo atraso de trinta e cinco anos.
 
         Efetivamente, As armas secretas, apareceu, pela primeira vez, na Argentina, em 1958, vinte anos depois de ter sido publicada a primeira obra de Julio Cortázar, Pre­sencia, um livro de sonetos, antecedido de Los reyes (1949) e de Bestiário (1951).
 
         Nos cinco textos de Las armas secretas, o ce­nário é Paris e os personagens, seres inquietos em busca de algo que talvez nem saibam o quê seja.
          Julio Cortázar já então vivia na França e o Continente para ele estava em distante. O que escreve parece  estar igualmente distante daquilo que Ernesto  Sabato presume ser a expectativa dos europeus em relação à Literatura Argentina: a descrição de selvagens cavalgadas de gaúchos nas planícies [...] o exotismo, a cor local.     .

         Nesses contos de Las armas secretas é como se tratasse de um cotidiano quase banal em que, imperceptivel­mente, se instala uma inquietude, um inexplicável, um incom­preensível. E um pouco do fantástico, um pouco do lúdico in­vadem o território do mimético para diluir certezas pois, de­las, a narração pode prescindir.
 
         No segundo conto do livro, “Os bons servi­ços”, a narrativa é feita por uma primeira pessoa, Madame Francinet, e nela aparece essa realidade que lhe é dado per­ceber e que as suas condições de vida tornam muito limitadas.Muito do que acontece nessas horas em que trabalha para a família Rosay lhe escapa e a informação que oferece ao interlocutor a quem se dirige, é truncada; a sua ingenuidade e a submissa aceitação no jogo que lhe é ofere­cido não escondem, no entanto, o antagonismo que define as relações entre as classes.
 
         Assim, contratada para, durante uma recepção, cuidar dos cães da casa ela apenas vê a cozinha e o local em que estavam os animais. As salas onde se realizava a festa, as pessoas que lá estavam e o que entre elas se passava não devia lhe concernir.

         Na cozinha, sim, pode ver as pilhas de louças por lavar e os copos ainda cheios de bebidas e pode se admi­rar de que os cachorros vivessem num quarto, em vez de estarem num canil e que dormissem em colchões e se alimen­tassem de belos pedaços de carne. Ela, que viera apenas para impedir que eles brigassem, vivia num cômodo só - alguns mó­veis e o fogão - com cheiro de cebola e de xixi de gato.
 
         E, na casa dos Rosay, é tratada exatamente de acordo com o valor que lhe dão: uma peça na engrenagem armada para que eles possam se divertir sem preocupações. Mal lhe dirigem a palavra, não lhe oferecem de comer ou de beber e, quando sua tarefa termina, deve caminhar sob a neve até che­gar, tarde da noite, em casa. Na segunda parte do conto, o serviço solici­tado exige-lhe a presença entre os ricos e no espaço em que vivem. Agora ela pode ver e participar - é então a figura principal - do que acontece. Mas, continua sem saber o sen­tido dos atos que lhe pediram para realizar.As barreiras sociais são o seu limite. E, diz Rodolfo Borello, crítico argentino, também a sua falta de cultura, de imaginação, de curiosidade que tornam, plano, su­perficial, quase fotográfico o seu testemunho pois é incapaz de compreender e de analisar.

         Preencher as lacunas, estabelecer os elos au­sentes cabe, então, ao leitor que irá encontrar essa coerên­cia que, aparentemente, falta ao relato. Cumplicidade que irá tornar mais evidente a maestria de Julio Cortázar na arte do conto. Porém, que pouco mais irá acrescentar à dicotomia que rege a sociedade dividindo-a ferozmente e que mesmo no Pri­meiro Mundo, permite que Madame Francinet, velha, pobre, so­zinha e doente, saiba reconhecer o seu lugar e nele se acomo­dar.

         A dedicatória do conto faz saber que Madame Francinet não é uma invenção.  

domingo, 18 de setembro de 1994

Dos indígnos


          No seu texto “Sobre la ausencia”, publicado em 1976 na revista Papeles de Son Armadans de Palma de Mallorca, partindo de um fato real, um Te Deum rezado a mando dos que depuseram Salvador Allende em 11 de setembro de 1973, o romancista chileno Carlos Droguett assume duas vozes: a de um ferino cronista e a de um narrador ficcional.

          Uma fotografia, a que documenta o evento - mostrando entre a assistência, Gabriel González, Jorge Ales­sandri e Eduardo Frei, ex-presidentes do Chile - deu a Carlos Droguett pertinentes razões para presumir o estado de espí­rito em que eles se achavam durante e a cerimônia e o levou a esboçar a biografia de cada um. Lembra circunstâncias decisi­vas que, não somente lhes nortearam a formação como explicam atos de seus governos que provocaram matanças quando gente do povo reivindicou seus direitos, como as ocorridas em 1962, 1966 e 1969, e que o escritor retoma detalhadamente.

          Um denominador comum se estabelece entre os três ex-presidentes que iniciaram no Chile as trilhas da re­pressão e os que destituíram um presidente eleito pelo voto, instalando perseguições, torturas e mortes no país.

          Essa identidade demonstrada no apoio dado pu­blicamente, quando do Te Deum, aos que assumiram o governo e o paradoxo em querer dar graças a Deus por atrocidades que eles mesmos cometeram, leva o ficcionita a recruar a cerumônia, fazendo dela uma sucessão de momentos escatológicos e cheios de espanto e mais em acordo com o que estava acoantecendo  en­tão.\

          Da crônica que se alimenta de fatos, Carlos Droguett envereda pelo caminho do fantástico porque somente o que foge da ordem lógica pode permitir que os sons emitidos nos subterrâneos da tortura - vozes rebeldes proibidas, cla­mores populares, estertores da morte - preencham o espaço do templo em que se realiza o Te Deum; que da boca dos princi­pais responsáveis pelo golpe que derrubou Salvador Allende brotem golfadas de sangue e que o próprio Cristo, num esforço tremendo, se desprenda da cruz em meio a surpreendentes ruí­dos de madeira arrebentada, manifeste - muito humanamente - o seu asco por essa devoção mascarando crimes que era obrigado a suportar.

          Entrelaçando aproximações e distanciamentos ao se desdobrar num narrador objetivo que se atém ao que vê, num outro, todo-poderoso para o qual não há segredos e, ainda, naquele que, ao assumir uma primeira pessoa do plural se situa entre os que se negam a aceitar como verdadeiro o que aconteceu, o ficcionista, gradativamente, vai dando a co­nhecer o que, para os donos do Poder, administrativamente não foi mais do que um incidente. Assim, na ficção droguetiana,embora haja certezas - todos viram o sangue brilhar entre os dourados do altar e todos escutaram o pri­meiro grito - também são mencionadas a descrença de alguns, as versões contraditórias de outros e a impossibilidade de ser lembrado com exatidão, algum detalhe.

          Mas o silêncio que acabou dominando jornais e estações de televisão, as categóricas afirmações de que tudo não passava de histeria coletiva, a convicção de que os movi­mentos de Cristo para se liberar da cruz foram simples ilusão devido ao jogo de sombras quando sem nenhuma razão as velas do altar se apagaram, não foram suficientes para anular os fatos.
 
          Deles ficaram as evidências: o braço da cruz, violentamente arrancado e quebrado, no chão, com seus pregos retorcidos e ensangüentados e a infamante coroa de es­pinhos manchada de sangue fresco e de vômitos [...]. O san­gue, o muito sangue que encharcava grande parte da balaus­trada de mármore, a saber, aquela em que tinham se reclinado os três generais e o almirante, os genuflexórios e também os assentos e, inclusive, o pedaço de chão em que, provisoria­mente, tinham se ajoelhado para comungar, provinha ou manava não da sagrada forma, mas dos quatro uniformizados.

          O templo, porém, foi fechado para reparos e nenhum órgão da imprensa se ocupou do que ali havia aconte­cido ainda que insólito, inesperado, incrível.

        Como se ao silenciar e ao negar os fatos eles tivessem deixado de existir.

domingo, 11 de setembro de 1994

Depois do dia 11

          Ainda era setembro e houve quem se preocu­passe em agradecer a Deus por acontecimentos que - é preciso crer - nada tinham a ver com a vontade divina.

          O Te Deum foi efetivamente realizado e não lhe faltaram assistentes embora para muitos dos chilenos des­ses dias de 1973 cabia somente pedir por justiça.

          Três anos depois, a revista Papeles de Son Armadans publica “Sobre la ausencia”. Um texto em que se jus­tapõem uma ácida crônica de fatos e uma ficção delirante que somente parecem ser possíveis no Continente.

          Carlos Droguett o iniciou em 31 de agosto de 1975, ainda em Santiago do Chile, e o deu por terminado no dia 31 de julho de 1976 quando já se encontrava no seu exílio europeu.
 
          Nesse mesmo ano, Camilo José Cela o inseriu na revista que dirige em Palma de Mallorca e, no início de 1977, foi, outra vez, publicado pela revista Casa de las Amé­ricas de Cuba.

          Como tudo o que escreve Carlos Droguett, trata-se de um texto profundamente comprometido com a reali­dade de seu país. Em “Sobre la ausência” ele não se afasta da realidade chilena que nesses anos estremeceu o mundo, ao re­criá-la, pela palavra, é como se efetivamente estivesse a elaborar uma espantosa obra de ficção.

          A dedicatória que precede o texto, registra a tortura e morte infligida pelo Sistema instaurado no Chile em 11 de novembro de 1973, a Ignacio Osso, poeta, dramaturgo e docente da Universidade Católica de Santiago. Nela, constar que Ignacio Osso foi encontrado nu, martirizado, sem unhas e sem olhos permite acreditar ser perfeitamente possível a rea­lização de um ritual de ação de graças ao Senhor pelo sucesso obtido nessas práticas, bem menos santas, que passaram a as­solar o país de ponta a ponta e cujos antecedentes foram re­lembrados por Carlos Droguett ao esboçar o perfil dos três ex-presidente do Chile que prestigiavam, com suas presenças, o Te Deum.

          Cada um deles ordenando ou permitindo a vio­lência oficial sobre a população marginalizada a fim de pro­teger o interesse de uma elite ou dos estrangeiros que espo­liavam o país, submissos à vontade dos outros ou às suas pró­prias e desenfreadas conveniências.São retratos acabados de personagens dos quais o ficcionista não elude nomes, nem traços de caráter, nem os atos mais infames, num testemunho implacável e impres­cindível para completar essa História do Continente sempre tão cheia de comprometidos silêncios.

          Logo, abandonando abruptamente a crônica dos fatos com seus personagens, o texto de Carlos Droguett parece explodir numa imaginação sem limites. Que, no entanto, não está distante, naquilo que descreve, do que era uma realidade para milhares de chilenos nesses violentos e renovados dias de perseguições, de mortes, de terror.

          Os mandantes da execução do Presidente e de tudo o que se seguiu, são os personagens que passam então a atuar - e só eles - em meio aos que lotavam o templo. Não de maneira usual e de acordo com o ritual religioso que continu­ava o seu curso, mas em conseqüência do pavoroso inesperado que se inseriu na cerimônia; precisamente num de seus momen­tos mais solenes.
 
           Ao ser distribuída a comunhão, da boca desses personagens, mandantes das atrocidades, brotaram jorros de sangue. Aterrorizados e grotescos, eles, então, se submergem no seu susto e no seu medo e sangue e excremento se misturam, fazendo com que se repita no templo em festa e sob o signo do fantástico o que ocorria nos subterrâneos do Sistema.
Na verdade que registra e naquela que in­venta, cabe uma irrefutável denúncia e essa constante paixão pela justiça que o escritor chileno transforma nos mais lúci­dos e perfeitos textos do Continente.

domingo, 4 de setembro de 1994

O doutor e o coronel

 
          Talvez ou, quem sabe, certamente, outras pa­lavras e intenções possam ser lidas nas últimas linhas de Pe­dra da memória: [...] na cozinha, a governanta dá ordens para a próxima refeição: além das gaúchas costelas de ovelha, ela manda incluir, por determinação do Doutor, vários pratos da culinária do Brasil. De agora em diante farão parte de todas as mesas, banquetes, jantares do Castelo no Pampa.

          Republicano, ao retornar da Europa para um Bra­sil que se tornara republica às pressas, se vê marginalizado pelo Poder: O amigo deve voltar para o Rio Grande. Lá é o seu chão. A Republica precisará muito de seu formidável ta­lento..., ordena um dos recentes ministros. E volta o Doutor Olimpio para recusar o governo do Município que os novos administradores lhe oferecem sabendo, porém   que seu destino é outro, maior, um destino na­cional.

          No romance da trilogia Um castelo no Pampa de Luiz Antonio de Assis Brasil (Mercado Aberto de Porto Ale­gre), esse destino não se concretiza.Tampouco no Rio Grande ele encontra o seu lu­gar, opondo-se à política dos dirigentes e justifica-se, ar­gumentando que ajuda o país ao introduzir práticas modernas de criação de gado nas suas terras.E, é em nome do progresso que irá deitar abaixo a velha casa da fazenda para construir o castelo, um estranho enclave que procura a civilização para abrigar uma verdadeira condessa austríaca.Charlotte von Spiegel-Herb chega ao Porto de Rio Grande e após uma viagem de trem, finalmente à fazenda onde a esperam, além das homenagens com as cores da Áustria, uma fileira de empregadas com impecáveis uniformes brancos e ramos de rosas.Mas a sua convicta certeza, ao se sentar à mesa para jantar de que a arte da civilização prova-se no campo, choca-se com a insolência da cozinheira que, explo­rando cia em coisas da terra, serve-lhe durante três dias, espinhaço duro de ovelha com pirão.

          E foi, então, substituída por Zulmira Pacheco que se iniciara nas lides da cozinha num obscuro cabaré-restau­rante de Rio Grande e foi se aperfeiçoando até chegar à cozi­nheira do melhor hotel da cidade.

          Hospedava estancieiros e políticos, exporta­dores de charque, sebo e crina e comandantes de navios es­trangeiros. O salão de refeições tinha espelho no teto e lus­tres de cristal. E Zulmira, na cozinha toda branca, passou a reinar no preparo dos peixes e frutos do mar, aprendendo no­vas receitas ora com os fregueses, ora inventando receitas próprias, aprendendo em livros ingleses e franceses que al­guém lia para ela e até, pagando a cozinheira mais velha para aprender a fazer massas.
          No Castelo, onde chegou numa tarde de calor, se enterneceu ao ver a cozinha de azulejos portugueses e du­rante trinta anos nela pontificou tão sábia que a lenda da Condessa por vezes confundia-se com a lenda de sua mesa.

          Os ensopados de ovelha que eram servidos ao Doutor haviam ficado para trás. Na mesa do Castelo passam a se mostrar guardanapos de linho, os pratos de porcelana, os cálices, os finger bowls. E o Doutor Olimpio e sua mulher jantavam, vestidos a rigor, na grande mesa.

          Quando o coronel Nicácio Fagundes, com seus homens e seu estado maior solicita pouso é recebido por um Doutor Olimpio de fraque, cartola e luvas que não se ame­dronta com os quase dois metros de altura do outro vestido com poncho de lã e que reluta em se acomodar na biblioteca onde os tapetes e as porcelanas pertencem a outro universo. E quando o faz, suas botas embarradas esmagam os delicados mo­tivos persas e suas mãos se pousam no croché branquíssimo que protege os braços das poltronas.

          Na mesa de jantar, o Coronel recomenda a seus homens cuidado com a louça e elogia Muito bonito isso tudo. Mas, quando chega a carne, eles dispensam os talheres e com as mãos a levam aos dentes. A condessa os imita e com a ponta dos dedos leva um fiapo de carne à boca, vencida pelos costumes da terra.

          São selvagens mas pitorescos lhe dissera o marido ao convidá-la para os conhecer.Foi o melhor que soube dizer sobre o Coronel que, pouco antes, recusando um vinho do Porto que lhe era oferecido pelo anfitrião, explicava: Não posso beber quando meus homens estão lá fora passando frio.

          O Doutor talvez não tenha compreendido a frase embora ao passear a cavalo, pelas suas propriedades, com a mulher, sempre se vestisse como os gaúchos. Embora to­masse mate e reafirmasse sempre o seu amor pelo Rio Grande.

          Mas, com certeza, um Rio Grande feito a sua medida e para lhe pertencer.