Acaba de sair, pela José
Olympio, As armas secretas, o décimo
sexto livro de Julio Cortázar publicado em português. Eric Nepomuceno, o
tradutor, num posfácio à obra, diz que ela chegouao Brasil com o absurdo atraso de trinta e cinco anos.
Efetivamente, As armas secretas, apareceu, pela
primeira vez, na Argentina, em 1958, vinte anos depois de ter sido publicada a
primeira obra de Julio Cortázar, Presencia,
um livro de sonetos, antecedido de Los
reyes (1949) e de Bestiário
(1951).
Nos cinco textos de Las armas secretas, o cenário é Paris
e os personagens, seres inquietos em busca de algo que talvez nem saibam o quê
seja.
Julio Cortázar já então vivia na França e o Continente para ele estava em distante. O que escreve parece estar igualmente distante daquilo que Ernesto Sabato presume ser a expectativa dos europeus em relação à Literatura Argentina: a descrição de selvagens cavalgadas de gaúchos nas planícies [...] o exotismo, a cor local. .
Nesses contos de Las armas secretas é como se tratasse
de um cotidiano quase banal em que, imperceptivelmente, se instala uma
inquietude, um inexplicável, um incompreensível. E um pouco do fantástico, um
pouco do lúdico invadem o território do mimético para diluir certezas pois, delas,
a narração pode prescindir.
No segundo conto do livro,
“Os bons serviços”, a narrativa é feita por uma primeira pessoa, Madame
Francinet, e nela aparece essa realidade que lhe é dado perceber e que as suas
condições de vida tornam muito limitadas.Muito do que acontece nessas horas em
que trabalha para a família Rosay lhe escapa e a informação que oferece ao
interlocutor a quem se dirige, é truncada; a sua ingenuidade e a submissa
aceitação no jogo que lhe é oferecido não escondem, no entanto, o antagonismo
que define as relações entre as classes.
Assim, contratada para,
durante uma recepção, cuidar dos cães da casa ela apenas vê a cozinha e o local
em que estavam os animais. As salas onde se realizava a festa, as pessoas que
lá estavam e o que entre elas se passava não devia lhe concernir.
Na cozinha, sim, pode ver as
pilhas de louças por lavar e os copos ainda cheios de bebidas e pode se admirar
de que os cachorros vivessem num quarto, em vez de estarem num canil e que
dormissem em colchões e se alimentassem de belos pedaços de carne. Ela, que
viera apenas para impedir que eles brigassem, vivia num cômodo só - alguns móveis
e o fogão - com cheiro de cebola e de xixi de gato.
E, na casa dos Rosay, é
tratada exatamente de acordo com o valor que lhe dão: uma peça na engrenagem
armada para que eles possam se divertir sem preocupações. Mal lhe dirigem a
palavra, não lhe oferecem de comer ou de beber e, quando sua tarefa termina, deve
caminhar sob a neve até chegar, tarde da noite, em casa. Na segunda parte do conto, o
serviço solicitado exige-lhe a presença entre os ricos e no espaço em que
vivem. Agora ela pode ver e participar - é então a figura principal - do que
acontece. Mas, continua sem saber o sentido dos atos que lhe pediram para
realizar.As barreiras sociais são o
seu limite. E, diz Rodolfo Borello, crítico argentino, também a sua falta de
cultura, de imaginação, de curiosidade que tornam, plano, superficial, quase
fotográfico o seu testemunho pois é incapaz de compreender e de analisar.
Preencher as lacunas,
estabelecer os elos ausentes cabe, então, ao leitor que irá encontrar essa
coerência que, aparentemente, falta ao relato. Cumplicidade que irá tornar
mais evidente a maestria de Julio Cortázar na arte do conto. Porém, que pouco
mais irá acrescentar à dicotomia que rege a sociedade dividindo-a ferozmente e
que mesmo no Primeiro Mundo, permite que Madame Francinet, velha, pobre, sozinha
e doente, saiba reconhecer o seu lugar e nele se acomodar.
A dedicatória do conto faz saber que Madame Francinet não é uma invenção.


