domingo, 25 de abril de 1993

A dialética da destruição

          Composto de duas partes, Los siete locos, - publicado em 1929, a primeira e Los lanzallamas, em 1931, a segunda -, é um romance que se escreve à margem do tradicional e da vanguarda.



          Centra-se na primeira parte em Erdosaín, o perfeito anti-herói, um magnífico personagem da galeria dos humilhados e ofendidos, um dos sete loucos que, numa estranha polifonia expressam o desejo de refazer o mundo.
 
          A voz de Erdosaín se alça e se cruza com a do rufião, do militar, do buscador de ouro, do pregador, do assassino para se opor à sociedade viciosa que, impotente para assimilá-los, os anula.
 
          Os monólogos se sucedem e buscam a destruição dos valores e das normas por meio de uma violência que procuram justificar quando pretendem um futuro onde sejam neutralizadas as mazelas desse tempo em que vivem.

          São discursos que reproduzem a realidade social e política do meio e da época argentina da segunda década, afastando-se, porém de seus cânones literários e de seu gosto, ao acrescentarem a esse realismo, elementos não somente críticos mas condenatórios.
 
          E no monólogo interior, no diálogo, no solilóquio, na narrativa onisciente ou naquela cujo status de relator lhe permite acrescentar fatos ou informações há quem fale em Deus, ou mais precisamente, de sua ausência; há quem explique invenções cujo intuito é enriquecer; há quem explane sobre a fácil maneira de obter dinheiro através do lenocínio; há quem, mais torpemente, encontre a solução para problemas financeiros no assassinato.
 
          Porém, mais do que um acontecer, se trata de procurar entender ou explicar um vazio existencial, um desajuste social, uma alucinação predatória.

          E, ricos de dinheiro fácil, como o Rufião e o herdeiro, ou pobres e desorientados, os personagens se nivelam pela infelicidade e por lhes ser impossível o encontro com seus semelhantes.
 
          Há uma solidão intransponível em cada um dos sete loucos que as palavras não tem forças para diluir. E a alienação e a loucura advêm como um caminho. Seja para se salvar de um mundo que é nefasto, seja para modificá-lo, seja, por meio da violência, destruí-lo.
 
          Discurso inovador, estrutura romanesca inusual, Los siete locos surpreendeu.Diz, então, Juan Carlos Onetti que a cidade inteira leu Los siete locos mas que os intelectuais de Buenos Aires resmungavam que Roberto Arlt não sabia escrever. E o romancista uruguaio acrescenta: É verdade, ele não sabia; mas dominava a língua e os problemas de milhões de argentinos, incapazes de comentá-lo em artigos literários, capazes de entendê-lo e senti-lo como amigo que chega - áspero, silencioso ou cínico - na hora da angústia.

domingo, 18 de abril de 1993

O sentido da luz


          Em novembro de 1990, aparece em Buenos Aires, El juguete rabioso. Uma revista que, entre outros sentidos produz o de ser um texto sobre a leitura, diz Maite Celada, professora da USP, quando interpelada sobre a publicação.


          Nesse primeiro número, El juguete rabioso relê a obra que homenageia no seu título e a reinscreve, como as demais de Roberto Arlt, na História Literária Argentina num plano que, até então, não havia sido muito bem delineado.

          “Escritor de ruptura”, os contemporâneos não lhe entenderam a temática centrada em personagens “humilhados e ofendidos”, nem essa linguagem que rigorosamente se afastava daquela a serviço dos mais admirados textos da ficção argentina dos anos vinte. E os primeiros críticos dele se aproximaram presos aos parâmetros vigentes, que, por atrelados a sacrossantos modelos europeus, não admitiam marginalizações.

          Os quatro articulistas de El juguete rabioso retomam, então, afirmações e análises para refazê-las e, assim, redimensionar o lugar que Roberto Arlt deve ocupar na Literatura Argentina.

          A partir de uma argumentação que se apóia na gênese da obra, no trabalho de elaboração dos textos, na formação do escritor e na relação que mantém com seu meio e com sua época, nas influências recebidas e no estudo do próprio texto ficcional, passam a ser irrelevantes as preocupações demonstradas por alguns críticos com um vocabulário considerado pobre e vulgar ou com temas tidos como degradantes.

          E, sobressaem qualidades que não haviam sido aquilatadas nessa ambigüidade que caracteriza o texto de Roberto Arlt.

          No romance El juguete rabioso, onde se acumulam misérias, atos mesquinhos e marginais, seres humanos em descaminhos e infelizes, como uma crença, uma esperança, uma imutável realidade, se infiltra a luz, está presente o sol.
 
          Assim, no fundo da loja de livros usados dominada pelo cheiro de mofo, a mancha de sol bate nas lombadas de couro; assim, no quarto em que desperta de uma tentativa de suicídio, o personagem vê um raio de sol que faz desenhos na parede branca; e assim, as carnes penduradas no açougue são iluminadas pelo sol da manhã.

          Uma luminosidade que chama o jovem personagem para a vida. Na estrutura do romance, uma presença para contrabalançar o mal que parece dominar e que deve ser vencido.

          Talvez uma esperança vã no espaço do Continente.

domingo, 11 de abril de 1993

As memórias de Silvio Astier

           Tinha Roberto Arlt vinte e seis anos quando o seu primeiro romance El juguete rabioso foi publicado.

 
           Narrado numa primeira pessoa que rotula os seus escritos de memorias, nele são fixados, no entanto, apenas quatro episódios: a rápida aventura de uma gangue juvenil que no primeiro susto com a polícia, correndo em perseguição de um de seus membros, se dissolve; a experiência de um emprego, também de curta duração, numa sórdida loja de livros usados; o fracasso como candidato a aprendiz de mecânico na Escola Militar de Aviação; uma ação traidora aparentemente sem causa.

           Cada um dos quatro episódios constitui um capítulo do romance e a técnica narrativa com que é construído dá, a cada uma dessas partes, um sentido que não necessita das demais para se completar sem que isso impeça que formem um todo.
 
            Nos quatro capítulos, “Los ladrones”, “Los trabajos y los dias”, “El juguete rabioso” e “Judas Iscariote” domina Silvio Astier, o narrador. Revela, na sua narrativa, suas angústias de adolescente, por vezes a sua esperança nesse caminho de pobreza que precisa percorrer em busca de um lugar ao sol.
 
           Incipiente ladrão, explorado trabalhador, fracassado aspirante a mecânico, vendedor medíocre ele quebra essa prisão de um destino vulgar, por um maldoso ato de traição.

           Não será traindo, porém, que Silvio Astier irá, obter o que teria desejado - dinheiro, glória, amor - e a infelicidade daquele que traiu somente vai servir para obter uma promessa da pessoa beneficiada pela sua traição: eu o ajudarei e lhe conseguirei um emprego em Comodoro. O que poderia ser um final feliz para as suas atribuladas andanças: ir para o Sul, para onde haja gelos e nuvens ... e grandes montanhas. Mas, nos episódios anteriores, as promessas que recebera resultaram sempre vãs, cortando-lhe, sempre, a alegria sentida ao vislumbrar uma luz que mudasse a sombria vida de órfão obrigado a ajudar a mãe viúva e pobre. E, agora, esses trinta dinheiros podem significar apenas mais uma esperança perdida.
 
           Por vezes patético ou cínico, infantilmente ingênuo por vezes, é um personagem de intensa riqueza que se move num mundo lúgubre onde existem personagens grotescos mas profundamente humanos.
 
           Em breves momentos, ele vislumbra algo do que é possuido por aqueles que pertencem à outra classe: jardim florido, lustre de cristal, móveis, quadros. Acenos de uma outra vida que, entretanto, só existe para alguns e que jamais será atingida por essa maioria que vive a realidade vulgar de um imutável cotidiano. Neles é que se fixa Roberto Arlt.
 
           E, toda uma visão crítica da sociedade de Buenos Aires é feita em surpreendentes textos que rompem com a narrativa da época.
 
           Em 1926, ano de publicação de El juguete rabioso, também foram publicados Cuentos para una inglesa desesperada de Eduardo Mallea e Don Segundo Sombra de Ricardo Güiraldes que indagavam sobre essa mesma Argentina que está presente na obra de Roberto Arlt.
 
           Mas, se Eduardo Mallea e Ricardo Güiraldes buscavam explicações ou evocavam, o autor de El juguete rabioso constatava um mundo descoberto nos vários humildes ofícios que desempenhou. O que significa que esse seu mundo se inscreve em qualquer espaço do Continente.

domingo, 4 de abril de 1993

O léxico da hipocresia

          Há vinte anos atrás , a Arca de Montevidéo publicava a nona edição de El país de la cola de paja. Na contra-capa, os Editores diziam tratar-se de um dos livros mais polêmicos e atraentes da última década.
 
          E o disseram com muita propriedade porque, antes de ser proibido pela ditadura que se instalou no Uruguai em 1973, quando de seu lançamento em 1960, já havia recebido severos e discutíveis julgamentos dos críticos ao considerá-lo um livro de sociologia.
 
          No entanto, não foi essa a proposta de Mario Benedetti. Romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta e crítico literário, ao escrever El país de la cola de paja ele desejou apenas dizer de suas preocupações pelo que ocorria no país.
 
          O Uruguai era, então, considerado pelos europeus, a Suiça da América Latina. Uma asserção plenamente justificada em práticas inusuais nos demais países do Continente como ensino gratuito, separação entre Igreja e Estado, eleições corretas, analfabetismo quase nulo, eficazes leis sociais, inexistência de descriminação racial e religiosa, liberdade de imprensa.
          Mas, os doze artigos publicados nessa primeira edição e os oito acrescentados na edição de 1970, que tratam do relacionamento instituído entre o cidadão do Estado democrático e a Democracia vigente possuem um denominador comum: uma perspicácia crítica que lhe permite estabelecer reais fronteiras entre o que parece existir e o que realmente existe.
 
          Daí, tornarem-se certas verdades - aquelas  quase sempre  indiscriminadamente aceitas - passíveis de oportunos questionamentos.
 
          Mario Benedetti discute, por exemplo, a elogiosa situação do país quanto ao analfabetismo que no Uruguai, dessa época, praticamente não existia. Mas, acrescenta que saber ler não é, necessariamente, ler. Isto, de fato, leva à observações que se relacionam com as atividades editoriais, a qualidade da Imprensa e as possibilidades econômicas que serão definitivamente responsáveis pela ausência de leitores num universo de alfabetizados.


      O que, sem dúvida, impede que o estabelecido sofra qualquer ranhura - afinal os bons livros tem o defeito de serem intranquilizadores - ao deixar a maioria de seus cidadãos incapaz de cultivar uma visão mais cuidadosa e acurada que lhe dê condições de perceber toda a ambigüidade contida numa democracia - maravilhosa rede de aparências, diz Mario Benedetti, - praticada por democratas de superfície. Aqueles que acreditam “frivolamente” na autonomia da Universidade mas não percebem o interesse oficial em buscar meios para cerceá-la; ou que negam haver descriminação racial no país não ignorando que em Montevidéo existem cinemas e confeitarias onde negros são impedidos de entrar; ou que estão convictos da existência de uma consciência sindical embora saibam que uma ou outra agremiação profissional faça o jogo do patrão; ou que não duvidam que a imprensa seja realmente livre mesmo sem desconhecer que a matéria publicada é apenas aquela que não contraria interesses; e, assim, sucessivamente..

           Incongruências - das quais, certamente, não estão isentas democracias outras - que mostram quanto um conceito pode estar a serviço de inescrupulosas manipulações.
           Sobretudo em países do Continente onde a maior parte da população continua ingenuamente despreparada também para entender o léxico daquele que - “mais iguais do que os outros” - tem acesso à palavra e se serve dela para usufruto de privilégios.