O autor lhe dá como
sub-título novella rio-grandense quando a publicou, no Rio de Janeiro, em
1847. Situa sua ação em Porto Alegre e seus arredores e o personagem central,
Almênio, é apresentado como monarca termo que Luiz Carlos Moraes no seu Vocabulário sul-riograndense define
como indivíduo orgulhoso, franco e alegre, amante da liberdade e inimigo dos preconceitos. E, num claro intuito de
registrar o universo sulino, insere no texto nomes de plantas (timbaúvas,
cedros, grapiapunhas, butiazeiros, trepoeraba, azedinha, sarandim), de peixes
(jundiá, piava, traíra) e de pássaros (sabiá, virabosta, gaturamo, pintassilgo)
e, também, termos referentes aos costumes dos homens do sul, dos quais, por
vezes, explica o significado em notas de rodapé.
Recursos que Antonio do Valle Caldre e Fião emprega na sua narrativa, para retratar o Rio Grande do Sul numa preocupação que se enriquece quando nela insere um discurso político que está centrado na Revolução Farroupilha e na conquista do Continente pelos europeus. Monarquista e contrário à Revolução Farroupilha, publicando o romance dois anos depois do término da luta, as palavras com as quais condena a guerra fratricida, ainda podem soar como um verdadeiro proselitismo sejam elas pronunciadas pelos personagens ou pelo próprio autor que, freqüentemente, insere na narrativa suas idéias ou sentimentos.
Assim, contra a Revolução Farroupilha são as palavras de Almênio, de sua prima Adélia e de Hendrichs para quem a revolução é flagelo imenso para todos os povos. Para o autor, trata-se de explosão espantosa a eclosão da Revolução Farroupilha em 20 de setembro de 1835 pois, firmemente acredita que seus motivos foram muito mais de ordem pessoal - ouro e glória - do que verdadeiramente a glória da pátria.
A conquista do Continente pelos europeus está presente em dois episódios da narrativa e expressa nos monólogos de João e de Kajururá, personagens de histórias que se acrescentam ao
enredo central do romance.
João, em meio a um passeio
pelos campos com a família, às margens do rio Gravataí, lembra de outros
momentos em que, também às margens de um rio, o Caí, contemplava as árvores e
vinha-lhe à mente o extermínio dos habitantes do Continente pelos europeus da
Conquista. Eu meditado tenho largamente e
quis mesmo, em outros tempos, achar nos recônditos arcanos dos destinos das
nações uma causa dessa revolução de sangue e morte operada na América por esses
infames estrangeiros, mas uma voz me gritava, sem cessar ao ouvido, e essa voz os acusava altamente.Os assassinos têm sede de ouro diz ele
entre as numerosas palavras de acusação aos usurpadores.
Outro episódio da Divina Pastora reafirma essa idéia de
aniquilamento sofrido pelos primeiros habitantes do Continente que não se ateve
somente à perda da terra e das riquezas mas, sobretudo, à perda de
identidade.Na história de Kajururá, o que prevalece é a derrota. Chefe dos
Tapes e dos Minuanos, livre e corajoso guerreiro, circunstâncias pessoais o
levam a aceitar a fé cristã. Submetendo-se assim aos conquistadores, é
abandonado pelos seus que se dispersam.
Na voz de Paulo, um dos
ouvintes da história, está evidente o pensamento de Caldre e Fião: Na verdade, é muito interessante esta
historieta; qualquer estadista que sobre ela refletisse tiraria uma lição
proveitosa; vede, meus filhos, que uma reforma
repentina acarreta a destruição de um povo inteiro ainda o mais numeroso e bem
regido da terra. Kajururá era de todos os caciques brasileiros o único que
podia suspender o curso das vitórias dos portugueses e destruir seus planos de
conquistas, mas uma só mudança em seu estado de vida, uma só “reforma” em sua
mente, transtornou toda a esperança dos filhos dos indígenas e apagou o luzeiro
brilhante de nossa pátria.
Nestas duas passagens está
claramente anunciada uma posição crítica em relação aos conquistadores que
mostra um Caldre e Fião avançando sobre sua época pois seria necessário que
muito tempo transcorresse para, enfim surgir na Literatura brasileira uma
ficção independente da ideologia colonialista em relação aos indígenas. Deveras
importante, então, são essas palavras de arguta lucidez que se sobressaem num
romance preso a cânones éticos tradicionais.
O professor Guilhermino
Cesar, ao situar Antonio do Vale Caldre e Fião como autor do primeiro romance
rio-grandense, lhe atribui também o mérito de ser um dos criadores do romance
nacional.
No entanto, ao escrever a História da Literatura do rio Grande do Sul
onde defende esse lugar de precursor para Caldre e Fião ele não tinha em mãos A Divina Pastora que ainda estava
desaparecida. Agora, a RBS, ao resgatar essa “obra perdida”, deu aos estudiosos
da Literatura brasileira a possibilidade de conhecê-la.
Certamente, uma análise
cuidadosa lhe concederá, também, o mérito de abordar temas, sem dúvida,
polêmicos para a sua época e, em relação a eles, ter-se claramente posicionado.
Uma rara qualidade que,
salvo poucas exceções, tem estado ausente, ao longo dos anos, da ficção brasileira.



