domingo, 28 de fevereiro de 1993

Um indianismo precursor

          O autor lhe dá como sub-título novella rio-grandense quando a publicou, no Rio de Janeiro, em 1847. Situa sua ação em Porto Alegre e seus arredores e o personagem central, Almênio, é apresentado como monarca  termo que Luiz Carlos Moraes no seu Vocabulário sul-riograndense define como indivíduo orgulhoso, franco e alegre, amante da liberdade e inimigo dos preconceitos. E, num claro intuito de registrar o universo sulino, insere no texto nomes de plantas (timbaúvas, cedros, grapiapunhas, butiazeiros, trepoeraba, azedinha, sarandim), de peixes (jundiá, piava, traíra) e de pássaros (sabiá, virabosta, gaturamo, pintassilgo) e, também, termos referentes aos costumes dos homens do sul, dos quais, por vezes, explica o significado em notas de rodapé.



         Recursos que Antonio do Valle Caldre e Fião emprega na sua narrativa, para retratar o Rio Grande do Sul numa preocupação que se enriquece quando nela insere um discurso político que está centrado na Revolução Farroupilha e na conquista do Continente pelos europeus. Monarquista e contrário à Revolução Farroupilha, publicando o romance dois anos depois do término da luta, as palavras com as quais condena a guerra fratricida, ainda podem soar como um verdadeiro proselitismo sejam elas pronunciadas pelos personagens ou pelo próprio autor que, freqüentemente, insere na narrativa suas idéias ou sentimentos.

          Assim, contra a Revolução Farroupilha são as palavras de Almênio, de sua prima Adélia e de Hendrichs para quem a revolução é flagelo imenso para todos os povos. Para o autor, trata-se de explosão espantosa a eclosão da Revolução Farroupilha em 20 de setembro de 1835 pois, firmemente acredita que seus motivos foram muito mais de ordem pessoal - ouro e glória - do que verdadeiramente a glória da pátria.
           A conquista do Continente pelos europeus está presente em dois episódios da narrativa e expressa nos monólogos de João e de  Kajururá, personagens de histórias que se acrescentam ao enredo central do romance.

          João, em meio a um passeio pelos campos com a família, às margens do rio Gravataí, lembra de outros momentos em que, também às margens de um rio, o Caí, contemplava as árvores e vinha-lhe à mente o extermínio dos habitantes do Continente pelos europeus da Conquista. Eu meditado tenho largamente e quis mesmo, em outros tempos, achar nos recônditos arcanos dos destinos das nações uma causa dessa revolução de sangue e morte operada na América por esses infames estrangeiros, mas uma voz me gritava, sem cessar ao ouvido, e essa voz os acusava altamente.Os assassinos têm sede de ouro diz ele entre as numerosas palavras de acusação aos usurpadores.
          Outro episódio da Divina Pastora reafirma essa idéia de aniquilamento sofrido pelos primeiros habitantes do Continente que não se ateve somente à perda da terra e das riquezas mas, sobretudo, à perda de identidade.Na história de Kajururá, o que prevalece é a derrota. Chefe dos Tapes e dos Minuanos, livre e corajoso guerreiro, circunstâncias pessoais o levam a aceitar a fé cristã. Submetendo-se assim aos conquistadores, é abandonado pelos seus que se dispersam.

          Na voz de Paulo, um dos ouvintes da história, está evidente o pensamento de Caldre e Fião: Na verdade, é muito interessante esta historieta; qualquer estadista que sobre ela refletisse tiraria uma lição proveitosa; vede, meus filhos, que uma reforma repentina acarreta a destruição de um povo inteiro ainda o mais numeroso e bem regido da terra. Kajururá era de todos os caciques brasileiros o único que podia suspender o curso das vitórias dos portugueses e destruir seus planos de conquistas, mas uma só mudança em seu estado de vida, uma só “reforma” em sua mente, transtornou toda a esperança dos filhos dos indígenas e apagou o luzeiro brilhante de nossa pátria.
          Nestas duas passagens está claramente anunciada uma posição crítica em relação aos conquistadores que mostra um Caldre e Fião avançando sobre sua época pois seria necessário que muito tempo transcorresse para, enfim surgir na Literatura brasileira uma ficção independente da ideologia colonialista em relação aos indígenas. Deveras importante, então, são essas palavras de arguta lucidez que se sobressaem num romance preso a cânones éticos tradicionais.
          O professor Guilhermino Cesar, ao situar Antonio do Vale Caldre e Fião como autor do primeiro romance rio-grandense, lhe atribui também o mérito de ser um dos criadores do romance nacional.
          No entanto, ao escrever a História da Literatura do rio Grande do Sul onde defende esse lugar de precursor para Caldre e Fião ele não tinha em mãos A Divina Pastora que ainda estava desaparecida. Agora, a RBS, ao resgatar essa “obra perdida”, deu aos estudiosos da Literatura brasileira a possibilidade de conhecê-la.
          Certamente, uma análise cuidadosa lhe concederá, também, o mérito de abordar temas, sem dúvida, polêmicos para a sua época e, em relação a eles, ter-se claramente posicionado.
          Uma rara qualidade que, salvo poucas exceções, tem estado ausente, ao longo dos anos, da ficção brasileira.

domingo, 21 de fevereiro de 1993

Regionalismo:primeiros momentos

          José Antonio do Vale Caldre e Fião, gaúcho de Porto Alegre publicou no Rio de Janeiro onde foi estudar Medicina, dois romances: A Divina Pastora em 1847 e O Corsário em 1851.

          Curiosamente, as duas obras foram, ao longo dos anos, de difícil acesso. O Corsário, inexistente nas Bibliotecas Públicas do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul foi localizado pelo professor Guilhermino Cesar na biblioteca particular do senhor Olyntho Sanmartin o que permitiu que lhe dedicasse um capítulo na História da Literatura do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Globo, 1971 cuja primeira edição foi em 1955).

          A Divina Pastora que permaneceu um verdadeiro enigma bibliográfico durante 145 anos foi, finalmente, encontrada no ano passado por um livreiro de Pelotas, Adão Fernando Monquelat.

          E, por fim, os dois romances precursores do gênero no Brasil foram postos à disposição dos leitores: O Corsário, publicado pela Movimento e A Divina Pastora, planejado e executado pela L&PM, editado pela Palloti de Santa Maria, especialmente para a Rede Brasil Sul - RBS proprietária do volume original de 1847.

          Em ambos, cada página deixa transparecer o amor que o escritor devota por sua terra natal. Embora longe do Rio Grande do Sul é em Porto Alegre e seus arredores que se passa a ação da Divina pastora; e no litoral próximo a Tramandaí, aquela de O Corsário. Também nos dois romances, diz Guilhermino César, referindo-se ao O Corsário, perpassa o sopro épico da luta farroupilha.

          Mas, cabe à Divina Pastora, publicado quatro anos antes que O Corsário ser a precursora de uma ideologia regionalista que se instalaria mais tarde na Literatura do Rio Grande do Sul e das quais iriam se originar textos verdadeiramente ímpares.

          O professor Flávio Loureiro Chaves em “Um texto resgatado”, Introdução à Divina Pastora (Porto Alegre, RBS, 1992), observa que essa ideologia regionalista estará presente em vários momentos do primeiro romance de Caldre e Fião e que, embora sem empregar o termo gaúcho e sim rio-grandense monarca das coxilhas, ele irá fixar-lhe os trajes e os hábitos e compor-lhe a figura protótipa - e corajoso e audaz e viril e hospitaleiro - que constituir-se-á, um pouco mais tarde, presença na ficção brasileira.

          Em A Divina Pastora não se trata da criação de um tipo gaúcho. Almênio, o personagem masculino que, de certo modo, conduz a ação do romance, não é, como os demais personagens, habitante da campanha, nem se dedica às lides campeiras.No entanto, a primeira vez que é visto pela jovem com quem irá se casar, usa o traje de monarca, termo que aparece grifado e que uma nota de rodapé do professor Flávio Loureiro Chaves esclarece tratar-se de acepção plena de gaúcho, dominador do meio em que vive, possuidor da melhor montaria, ajaezada com prataria e ouro. E assim, sinônimo de indivíduo destemido, orgulhoso, elegante e livre. Mas, na verdade, não será no personagem que o romancista irá se deter para falar do Rio Grande do Sul e sim na paisagem, na menção de suas árvores e de seus pássaros e de seus costumes e nas palavras com que define seus habitantes.

          Para Caldre e Fião, o rio-grandense é orgulhoso, altivo, forte nos combates, amigo fiel e inimigo implacável, o hospitaleiro por excelência.

          E o romancista considerando que já possui alguns quesitos necessários a um historiador, abandona o seu papel de ficcionista para se permitir supor que essa maneira de ser é devida a uma alimentação sadia e frugal, à uma educação moral em que o Rio-Grandense aprende, desde os primeiros passos a respeitar os velhos, a ser amigo, a desprezar o covarde e a vingar-se do inimigo; guarda fiel os usos que lhe foram transmitidos por seus pais e julgar-se-ia desonrado se um dia deixasse de cumprir os preceitos de seu evangelho.

          Como epígrafe, na própria capa do livro aparece a quadrinha: Cantando a virtude / Na terra natal, / Sorri-me o prazer, / De mim foge o mal que já é uma afirmação dos sentimentos que norteiam o escrever de Caldre e Fião, alimentado por lembranças autobiográficas, por reflexões morais e pedagógicas, por preocupações com o fazer ficcional, por histórias que se acrescentam à história principal.

          Um escrever preso sempre a esse espaço geográfico preciso que o sub-título do romance anuncia: Novella rio-grandense.

          De volta ao Rio Grande do Sul, Luiz Antonio do Valle Caldre e Fião se deixou absorver pela Medicina e sua dedicação não lhe deixou mais tempo para as Letras.
          Sua carreira de ficcionista se encerrara.

domingo, 14 de fevereiro de 1993

Enigma desvendado

         No dia 30 de dezembro de 1978, Guilhermino Cesar (o excelente crítico mineiro radicado há muitos anos no Rio Grande do Sul) publicava, no Caderno de Sábado do Correio do Povo de Porto Alegre, um artigo intitulado “Caçada nacional à Divina pastora"

         De autoria de José Antonio do Vale Caldre e Fião, gaúcho de Porto Alegre, esse romance A divina pastora, publicado no Rio de Janeiro em 1847 desaparecera misteriosamente e completamente. Tido como raridade bibliográfica durante mais de meio século, esse romance  passou a ser considerado um verdadeiro enigma bibliográfico, diz o escritor gaúcho Carlos Reverbel, sem esquecer que houve, inclusive, também aqueles que duvidavam de sua existência.

         É que, na verdade, do romance apenas restaram os anúncios publicados no Rio de Janeiro, tratando de seu conteúdo e informando estar ele à venda na Tipografia que o imprimira.

         Quando, em 1956, Guilhermino Cesar publicou a sua História da Literatura do Rio Grande do Sul, dedicou um capítulo a Caldre e Fião e a sua obra cuja análise, todavia permaneceu incompleta, uma vez que A divina pastora continuava desaparecida.   Mas, foi esse capítulo que, em 1971, quando a obra foi reeditada, renovou o interesse dos estudiosos por esse primeiro romance de Caldre e Fião.

         Guilhermino Cesar refere que muitos foram os que se lançaram a sua procura e que, inclusive por interferência do Ministro Rubem Rosa, o Diretor do Departamento de Assuntos Culturais do MEC, Manuel Diegues Júnior, solicitara, por vias oficiais, a colaboração dos Secretários Estaduais de Cultura no sentido de tentar a localização do romance.

         As tentativas, porém, resultaram todas vãs. Guilhermino Cesar, no entanto, não se deixou desanimar e termina seu artigo, afirmando esperançoso que o milagre desejado poderá vir ainda a acontecer: De onde menos se espera, ali do Passo do Vigário, de um baú de Anta Gorda, de uma lapa de Jaguarão - num dia que ninguém sabe dizer qual seja A divina pastora, achada pelo Negrinho do Pastoreio, virá cair em nossas mãos. O essencial já fiz - acendi o meu coto de vela.

         No ano passado, o alfarrabista de Pelotas, Adão Fernando Monquelat, comprou em Montevidéo um lote de seis livros brasileiros. Entre eles, A divina pastora, o primeiro romance de autor gaúcho e o segundo romance brasileiro, conforme palavras do professor Flávio Loureiro Chaves.  Antes dele, somente A Moreninha de Joaquim Manoel de Macedo havia sido publicado.

         O achado, sem dúvida emocionante para bibliófilos e estudiosos da Literatura, acabou tendo, no entanto, outros significados.

         Adquirido pela Rede Brasil Sul - RBS através do Projeto Memorial para o acervo da Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho, foi publicado três meses depois. Planejado e executado pela L&PM de Porto Alegre e impresso pela Editora Palloti de Santa Maria, esta segunda edição de A divina pastora resultou num belíssimo exemplar distribuído pela RBS que assim comemorou o seu 35º aniversário. Um ato simbólico de projeção para o futuro com o reconhecimento de uma referência do passado, disse, no momento em que era anunciado a aquisição da obra e a sua republicação, o Diretor-Presidente da RBS, Nelson Pacheco Sirotsky.

         Sem dúvida, este entrelaçar do passado com o futuro é algo de imprescindível para a manutenção ou construção dos valores de um país, principalmente quando nele se apresentam muito tênues o desejo de preservar-lhe a memória e o desejo de construi-lo com alicerces menos imediatistas.
          O ter a RBS possibilitado a leitura de uma obra que durante 145 anos permaneceu inalcançável é, certamente, contribuição valiosíssima que irá permitir, finalmente, seja A divina pastora estudada e possa ocupar o lugar de precursor que lhe é devido na História Literária do Rio Grande do Sul e do Brasil.
E os votos de professor Guilhermino Cesar, a sua quase certeza de que A divina pastora um dia iria aparecer, passados quase quarenta anos, se cumpriram.



domingo, 7 de fevereiro de 1993

Guerrilhas de palavras

          Guerrilha de palavras, disse Dom Pedro Casaldáliga da poesia de Ernesto Cardenal.
 
          Poeta, Revolucionário, ele foi perseguido, foi encarcerado, foi vítima do exílio. Verdadeiramente, um “perigoso adversário" que se serve da palavra para denunciar as injustiças do sistema e tecer esperanças para o Continente, ele parte de uma vivência profundamente introspectiva à qual se mescla essa outra, vivida pelo homem de ação.
 
          No poema "En el lago" parte da obra La santidad de la revolución (Salamanca, 1976), os primeiros versos (como, aliás o próprio título) remetem a um texto aparentemente romântico: O céu nigérrimo com todas suas estrelas / e eu no meio do lago, olhando para elas de uma velha lancha - a “Maria Danélia" - deitado na popa sobre os sacos de arroz.
 
          Eles introduzem as reflexões interrogativas sobre esses imensos mundos, esses luminosos mundos, mundos que nos chegam somente como luz que a sua imaginação cria diante do espetáculo celeste.
 
          Porém, o que leva, abruptamente, dessa aparente simples contemplação do firmamento às reflexões sobre o universo e as galáxias está contido no quinto verso que, de forma prosaica e incisiva informa: Acabo de ser interrogado pela Corte Militar.
 
          E o olhar que se voltava para as galáxias, se volta, a partir dessa lembrança, para um universo agora próximo e real e cruel em que reinam as atrocidades do Sistema. Seguem-se oito versos que, juntamente com os outros dois que aparecem mais adiante, se constituem essa guerrilha de palavras que, certamente não provocam a queda de nenhum governo mas impedem que permaneça desconhecido, pelo menos da minoria que tem acesso à leitura, esse terror que é presença quase constante no Continente: E penso no companheiro “Modesto” na montanha; de origem camponesa; não se conhece o seu nome. E nos camponeses pendurados pelos pulsos / arrastados pelo sexo. / Um menino de 8 anos degolado, dizem os capuchinhos. Os prisioneiros metidos em latrinas coletivas / uns sobre os outros, mulheres, crianças, velhos.
 
          E, inserido entre outros versos: Muitos estão presos, outros clandestinos. / Dos helicópteros, os camponeses são lançados.
 
          Informações claras, diretas e das quais parecem estar ausente a emoção do poeta e o sofrimento que, no entanto, são as razões que o impulsionam nessa luta em favor de seu povo e dos demais povos da América Latina.
 
          Descritivos, narrativos, testemunho, são poemas que se tornam Crônica‚ História do Continente.
 
          E, confiante, Ernesto Cardenal lhes prevê perenidade: Nossos poemas ainda não se podem publicar. / Circulam de mão em mão, manuscritos, / ou copiados em mimeógrafo. Mas um dia / O nome do ditador contra quem foram escritos será esquecido / e continuarão sendo lidos.