O primeiro relato, “Ilana
antes da leitura”, termina com a personagem se preparando para ler os originais
de um escritor que se tornara seu amante; no último, “Murilo depois da
leitura”, o escritor, numa carta, se desculpa por ter reagido tão mal às
críticas de Ilana e se explica para explicar os personagens de seu conto “O
tenente”, o segundo do livro, longamente discutido sob o título “Um diálogo”. Neste
texto é concedida a voz somente a Murilo que justifica suas opções como
narrador; na carta que escreve à Ilana, se amplia o universo do conto “O
tenente”.
Breve, como todos os relatos
que compõem o livro, ele é construído em dois níveis temporais que são,
inclusive, indicados pela apresentação gráfica: os textos em negrito
correspondem ao presente, quando Carlos recebe a notícia do assassinato do
Tenente. Chora, veste a farda e, no espelho, contempla a imagem de um
adolescente de porte impecável. Sua integração à polícia mirim e a atuação que
passou a ter na pequena cidade de Pau d’Arco, são narrados no passado.
Passado e presente separados
por um pequeno lapso de tempo, suficiente, no entanto, para transformar o
menino tímido, corcunda e medroso,
submisso à autoridade materna, no adolescente de postura ereta e ar
determinado, cheio da dignidade que lhe conferiam os traços dos galões
afixados na manga da farda.
Suficientes, também, para
transformá-lo de menino jogador de bola aos sábados no cabo-mirim que, usando
da violência, domesticou a cidade já submetida por uma estranha legislação: os jogos de bolinha de gude, futebol,
cabra-cega, amarelinha e outros ajuntamentos de meninos estavam proibidos após
as vinte horas nos dias úteis. Aos domingos e feriados a proibição era total.
Que se dedicassem às coisas de Deus, ou ficassem dentro de suas casas, sem
algazarras. No máximo, permitia-se a circulação de duplas de crianças pelas
ruas desertas da cidade. Membros de uma mesma família podiam andar em grupos de
três ou mais, desde que autorizados pela Secretaria de Ordem Social de Pau
d’Arco.
Nesse relato que é feito por
um narrador onisciente se insere, então, uma primeira pessoa plural (Insatisfeitos, os pequenos guardiães da Nova Lei passaram anos a nos pressionar por ninharias), que logo se transforma numa
primeira pessoa singular (Respondi a um
processo porque fui flagrado lendo O
vermelho e o negro na Praça da Matriz, numa tarde de sol). Processo narrativo que é
explicado pelo autor do conto, o personagem Murilo de Assis no texto “Murilo
depois da leitura”, carta que escreve à mulher que ama e onde lhe diz da prisão
política, da tortura que sofreu na prisão, de seu ato de delatar porque
acreditou, embora disso não tenha provas, ter sido preso devido à delação do
irmão menor.
Delação que é discutida no
texto “Um diálogo” sem que se esclareça a sua veracidade ou as verdadeiras
relações do jovem Carlos com o Tenente que tampouco são esclarecidas na carta
de Murilo à Ilana.
Inseridos em Um outro olhar, último livro do gaúcho
Charles Kieffer, que a Mercado Aberto de Porto Alegre acaba de lançar, os
quatro textos “Ilana antes da leitura”, “O Tenente”, “Um diálogo” e “Murilo
depois da leitura”, embora de estrutura diferentes, fazem parte da mesma
composição narrativa. Mesclando a ficção (a história de Ilana e Murilo, a
história de Carlos cujo autor é Murilo - ficção dentro da ficção) com
discussões teóricas sobre o fazer literário (o narrador, a verossimilhança dos
personagens, o grau de informação oferecido ao leitor), neles se evidenciam a
busca de novos caminhos. Desta busca, não está alheio, talvez, o interesse que,
ainda tem sido, na maior parte dos casos, eludido pela maioria dos escritores
nacionais em enfrentar temas como o abuso de poder, a violência “oficial”, a
tortura, a delação.
E, embora nesses quatro
textos tenham prevalecido as insinuações, as suposições, as ponderações
teóricas, é inegável o registro dessas leis injustas, conduzindo uma submissão
coletiva, dessa violência irracional, executada pelos idealizadores ou
defensores de tais leis e, principalmente, desse desvio comportamental e
abusivo do representante de uma instituição considerada intocável.
E Pau d’Arco, a pequena
cidade, espaço ficcional criado por Charles Kieffer, que volta a aparecer nestes
seus últimos relatos, ao albergar tais tipos e tais situações, passa a se
constituir também uma metáfora do que, com menor ou maior intensidade, impera
ou é passível de tornar a imperar no imenso mapa do Continente.


