sexta-feira, 24 de julho de 1992

Relatos do sul


O primeiro relato, “Ilana antes da leitura”, termina com a personagem se preparando para ler os originais de um escritor que se tornara seu amante; no último, “Murilo depois da leitura”, o escritor, numa carta, se desculpa por ter reagido tão mal às críticas de Ilana e se explica para explicar os personagens de seu conto “O tenente”, o segundo do livro, longamente discutido sob o título “Um diálogo”. Neste texto é concedida a voz somente a Murilo que justifica suas opções como narrador; na carta que escreve à Ilana, se amplia o universo do conto “O tenente”.

Breve, como todos os relatos que compõem o livro, ele é construído em dois níveis temporais que são, inclusive, indicados pela apresentação gráfica: os textos em negrito correspondem ao presente, quando Carlos recebe a notícia do assassinato do Tenente. Chora, veste a farda e, no espelho, contempla a imagem de um adolescente de porte impecável. Sua integração à polícia mirim e a atuação que passou a ter na pequena cidade de Pau d’Arco, são narrados no passado.

Passado e presente separados por um pequeno lapso de tempo,  suficiente, no entanto, para transformar o menino tímido, corcunda e medroso, submisso à autoridade materna, no adolescente de postura ereta e ar determinado, cheio da dignidade que lhe conferiam os traços dos galões afixados na manga da farda.

Suficientes, também, para transformá-lo de menino jogador de bola aos sábados no cabo-mirim que, usando da violência, domesticou a cidade já submetida por uma estranha legislação: os jogos de bolinha de gude, futebol, cabra-cega, amarelinha e outros ajuntamentos de meninos estavam proibidos após as vinte horas nos dias úteis. Aos domingos e feriados a proibição era total. Que se dedicassem às coisas de Deus, ou ficassem dentro de suas casas, sem algazarras. No máximo, permitia-se a circulação de duplas de crianças pelas ruas desertas da cidade. Membros de uma mesma família podiam andar em grupos de três ou mais, desde que autorizados pela Secretaria de Ordem Social de Pau d’Arco.
 

Nesse relato que é feito por um narrador onisciente se insere, então, uma primeira pessoa plural (Insatisfeitos, os pequenos guardiães da Nova Lei passaram anos a nos pressionar por ninharias), que logo se transforma numa primeira pessoa singular (Respondi a um processo porque fui flagrado lendo O vermelho e o negro na Praça da Matriz, numa tarde de sol). Processo narrativo que é explicado pelo autor do conto, o personagem Murilo de Assis no texto “Murilo depois da leitura”, carta que escreve à mulher que ama e onde lhe diz da prisão política, da tortura que sofreu na prisão, de seu ato de delatar porque acreditou, embora disso não tenha provas, ter sido preso devido à delação do irmão menor.

Delação que é discutida no texto “Um diálogo” sem que se esclareça a sua veracidade ou as verdadeiras relações do jovem Carlos com o Tenente que tampouco são esclarecidas na carta de Murilo à Ilana.

Inseridos em Um outro olhar, último livro do gaúcho Charles Kieffer, que a Mercado Aberto de Porto Alegre acaba de lançar, os quatro textos “Ilana antes da leitura”, “O Tenente”, “Um diálogo” e “Murilo depois da leitura”, embora de estrutura diferentes, fazem parte da mesma composição narrativa. Mesclando a ficção (a história de Ilana e Murilo, a história de Carlos cujo autor é Murilo - ficção dentro da ficção) com discussões teóricas sobre o fazer literário (o narrador, a verossimilhança dos personagens, o grau de informação oferecido ao leitor), neles se evidenciam a busca de novos caminhos. Desta busca, não está alheio, talvez, o interesse que, ainda tem sido, na maior parte dos casos, eludido pela maioria dos escritores nacionais em enfrentar temas como o abuso de poder, a violência “oficial”, a tortura, a delação.

E, embora nesses quatro textos tenham prevalecido as insinuações, as suposições, as ponderações teóricas, é inegável o registro dessas leis injustas, conduzindo uma submissão coletiva, dessa violência irracional, executada pelos idealizadores ou defensores de tais leis e, principalmente, desse desvio comportamental e abusivo do representante de uma instituição considerada intocável.

E Pau d’Arco, a pequena cidade, espaço ficcional criado por Charles Kieffer, que volta a aparecer nestes seus últimos relatos, ao albergar tais tipos e tais situações, passa a se constituir também uma metáfora do que, com menor ou maior intensidade, impera ou é passível de tornar a imperar no imenso mapa do Continente.

 

domingo, 19 de julho de 1992

As mãos de Inés Suárez 2


            No dia 15 de outubro de 1550, Pedro de Valdívia escrevia ao Imperador Carlos V, informando sobre a Conquista. Em certo momento, diz-lhe que, para  os que estão na recém fundada cidade de Concepción, cada peso lhes custa cien gotas de sangre y doscientas de sudor.

            Carlos Droguett se ampara dessa frase para o título de seu romance, um romance histórico cuja fonte, porém, ele encontra nos textos dos cronistas e não dos historiadores porque, assim ele diz, era conveniente para os destinos de seus personagens.

            Mas, das crônicas ele não se afasta, já o constatou a historiadora francesa Jacqueline Covo ao estudar seus três romances históricos, Supay el Cristiano, 100 gotas de sangre y doscientas de sudor e El hombre que trasladaba las ciudades que ela denominou a trilogia da Conquista.

            E, para Carlos Droguett, é nessas 300 gotas de que fala Pedro de Valdivia  a seu Imperador que está condensada a história de todo o mundo novo.

            Uma conquista, se sabe, feita de heroísmos e traições, de pequenos gestos de um cotidiano que pode ser tão heroico quanto a mais cruel e trágica luta: o que enfrenta a fome, o frio, o desamparo, o medo.

            Belíssimo, o texto que abre 100 gotas de sangre y doscientas de sudor quando o capitão Pedro de Valdivia e Inés Suárez, com infinitos cuidados, quase amorosamente, semeiam os grãos de trigo salvos da destruição da cidade. Eles estão muito próximos um do outro, sorriem, por vezes, e se inclinam para a terra.

            De súbito, a lembrança da morte dos sete caciques dada pelas mãos de Inés Suárez  na ausência do capitão que a torna, no seu entender, responsável pelo destino de seus homens cuja vida salvou. E inquire ou acusa ou determina: Vós nos deveis o alimento. Não foram essas mãos as que mataram o índio para que vivesse o espanhol?

            Com suas  mãos deve viver Inés Suárez e com o peso da ação que praticou. Estas mãos, minhas mãos? Ela exclama para o capitão contando  não apenas o que ele já sabia, mas seus estados de alma, nesse domingo 11 de setembro de 1541:  Estava tranquila e decidida, naquele dia, tranquila, raivosa, resoluta, ela diz. E os espanhóis sorriam de seu gesto de tomar a espada. Então, foi o medo e não suas mãos, o executor da morte dos caciques. O fogo nos enlouquecia a todos, explica. O fogo e os  gritos dos índios que acometiam a cidade e o ruído das armas espanholas e os relincho dos  cavalos e a  presença, ali perto     dos prisioneiros, imóveis, sérios nos corpos, alegres e cruéis nos olhos, calados e fortes, obervando no céu as flechas que voavam.

            Certamente, porém,  não são essas mãos que tremem quando nelas Inés Suárez pousa os olhos e que embora brancas e sem máculas lhe parecem enredadas em sangue, que lhe tiram a coragem. Sim o desconhecido desse futuro que entrevê sombrio. Não é o remorso que sente por ter degolado os índios. Sente medo e desejo de saber os dias que lhe restam pra viver. O arrependimento que nela aflora não se enovela na morte que as suas mãos deram aos índios mas em terem essas mortes, ao por em fuga os atacantes da cidade, salvo a sua vida e a dos espanhóis. E lamenta: Já seríamos cadáveres. Os mortos não passam fome e neles não penetra o frio.

            Mas, já os espanhóis reconstroem as casas de Santiago e já procuram nos campos comida índia.

domingo, 12 de julho de 1992

As mãos de Inês Suárez 1



          100 gotas de sangre y 200 de sudor tem como dedicatória “Para Isabel, veinte años después”. Vários significados poderia ter esse oferecimento tardio se não tivesse uma explicação muito simples: apenas o tempo transcorrido entre a criação da obra, terminada em 1941, e sua publicação, pela Zig- Zag de Santiago, vinte anos depois.

          Na origem, uma obra volumosa da qual fazia parte outro romance de Carlos Droguett, Supay el Cristiano que, por  razões de custo, foi dividida em duas partes, publicada primeiro, a segunda parte e, seis anos depois, a primeira.

          As páginas finais de Supay el Cristiano descrevem a morte dos sete caciques reféns dos espanhóis que foram sacrificados para , talvez, assim, livrar da morte os habitantes da cidade atacada pelos índios.

           100 gotas de sangre y docientas de sudor se inicia com a volta de Pedro de Valdivia para Santiago que encontra destruída e incendiada pelos índios e Inés Suárez querendo lutar contra a fome que iria reinar na cidade em desolação. Em suas brancas mãos está o pão dos espanhóis: o punhado de sementes que salvou e que deseja ver transformadas em espigas. Mal escuta as palavras do capitão a lhe falar. Estava olhando o campo, apertando as mãos sobre o trigo como uma avezinha desamparada, procurando a terra para depositar o seu tesouro. Espalhava o grão com cuidado na terra recém aberta e quando uma longa fileira foi semeada começou a cobri-la. O capitão a afastou para, com a folha da espada, firmar a terra sobre a semente. Estava em silêncio e assim trabalhava. Inés Suárez lhe diz que, por ordem de Deus e do rei ele possui a terra que segura entre as mãos e sobre a qual está ajoelhado. Que não trabalhe calado e sim  lance sobre ela uma bendição para que não mate a semente. Senhora – Pedro de Valdivia  a interpela – quem deve bendições à terra para que não apodreça o grão é vossa boca. Vós nos deveis o alimento. Não foram essas mãos as que mataram o índio para que o espanhol vivesse? 

           Para salvar-se e a cidade, Inés Suárez, com suas mãos, degolara os sete caciques índios. Agora suas mãos semeiam o trigo.

           

 

         

 

domingo, 5 de julho de 1992

O silêncio

           Por ter rido muito, Alonso de Chinchila foi preso. Era o ano de 1541 e Santiago apenas existia. Seu fundador, Pedro de Valdívia voltava das minas de Marga-Marga onde os índios que trabalhavam, tirando ouro para os espanhóis, se revoltaram assim como se revoltaram os espanhóis que viam a construção de um barco nas costas do Chile. O barco foi queimado e o ouro ficou cheio de manchas do sangue que sobre ele correu, diz o narrador de Supay el Cristiano, romance de Carlos Droguett, publicado em 1967.

        Pedro de Valdívia não esconde o que sente, a tristeza que o domina. Alonzo de Chinchila tampouco esconde sua grande alegria pela derrota do outro que trama para aniquilar. E´o único  a rir porque está feliz em saber que o barco, quase pronto para ser empurrado pelo vento, fora destruído. Feliz e rindo corre pela praça de Santiago, pelas poucas ruas e, feliz   e rindo, está na casa do sogro quando chegam para prendê-lo. Sem resistir, deixa-se algemar.
          Na prisão, ficou triste. Antes da chegada da noite, já sabe que será enforcado. E sua noite transcorre cheia de espantos e medos, um desvanecer e despertar da contínuos horrores.
          Encarregado de interrogá-lo e obter confissões, chega, pela manhã, o tenente Monroy a mando de Pedro de Valdívia. E´no capitulo “El silencio o quarto dos seis que compõem o romance. Presentes, seis personagens: o aguazil, o prisioneiro, os dois soldados que lhe fazem guarda, o tenente que aí está para interrogá-lo e uma índia. No pequeno espaço da casa do aguazil, eles se mantém separados.  Alonzo de Chinchila e o tenente Monroy na cela. Ao redor dela, os outros três e a presença efêmera da índia que atravessa o pátio, carregando o cântaro em busca de água. No interior da cela, um diálogo deve acontecer; fora, os três homens querem escutá-lo. Quando a porta se fecha atrás do tenente ela separa dois universos:um que parece mergulhar no silêncio; outro que silencia para escutar.
            O narrador que emerge do texto na expressão de uma forma verbal em primeira pessoa plural, embora não seja a voz nem do aguazil, nem da índia, nem dos soldados, se encontra entre os que esperam escutar o que se passa entre as paredes da  cela.  Minuciosamente, ele descreve cada gesto e cada olhar do aguazil e dos soldados que permanecem imóveis ou se imobilizam no desejo de escutar o que é dito do outro lado da parede. Os três olham para a porta, falam em sussurros, caminham com sigilo. Quando a índia passa entre eles, cantando, sufocam-lhe o canto para que o silêncio permaneça. No dia silencioso apenas ladra um cão, ao longe, ou galopa um cavalo ou soa um disparo.
           Ouvidos atentos ao que se passa na cela, apenas escutam um leve roçar de pés na terra e, logo, o tombar de uma banqueta. Depois, outra vez o silêncio. Preservado, desejado, intacto, definitivo. Nenhum ruído do mundo o interrompe, nem um grito, nem um queixume, nem o tenente ao deixar a cela do prisioneiro. Nenhum barulho faz ao fechar a porta, nem ao caminhar. E assim, silenciosamente, foi embora.
            Os três homens, o narrador e leitor  ficam sem saber o que na cela se passou.
            No capítulo seguinte,  ao cair da tarde, o soldado Martin Candia que também tramava contra Pedro de Valdivia, com alegria por se saber livre, entra a passo na cidade. Sabe que um pouco mais que o tenente tivesse apertado já Alonzo de Chinchila teria soltado, soluçado, todos os nomes, sem faltar nenhum. Mas, seu amigo e cúmplice não havia falado. O silêncio prevalecera naquela manhã.
            Ao dar a volta ao cerro que os índios chamam de Huelén divisou uma forma e pendurado nela o corpo de Alonzo de Chinchila. O entardecia, a parte superior estava envolta em sombras, mas os raios do sol caíam ainda sobre os borzeguins, que no ar tinham um leve balanço.