domingo, 14 de julho de 1991

O romance romântico na América: Cecilia Valdez I


            No prólogo escrito, em 1879, para seu romance Cecilia Valdés, Cirilo Villaverde se afirma um escritor realista. Ele vivia em Nova Iorque o seu segundo e definitivo exílio. Fugira da prisão a que fora condenado por conspirar contra a Espanha. Queria, acima de tudo, a liberdade de Cuba e, nos Estados Unidos, continuou a lutar por seu país, através do jornalismo. Foi redator  de La Verdad  e fundador de El Independiente, jornais que,  pregavam a independência da última colônia espanhola da América. Principalmente, Cirilo Villaverde se dedicou à política militante.

Mais tarde, sobre esses anos de luta, ele dirá: longe de Cuba, mudei meu gênero de vida; troquei meus gostos literários por mais altos pensamentos; passei do mundo das ilusões para o mundo das realidades; abandonei, enfim, as frívolas ocupações do escravo em terra escrava, para tomar parte nos empreendimentos do homem livre em terra livre.

Assim, não é de estranhar o ter afirmado, quando se propôs  a  concluir Cecilia Valdés, que Walter Scott e Manzoni foram os únicos autores que lera nos últimos vinte anos. Mais do que esse tempo, precisou   para terminar o seu romance. Em meados de 1839, acabara a primeira parte, publicada em Havana e dera início à sua continuação. Já voltado ao magistério e às suas atividades políticas e jornalísticas só veio a se dedicar, novamente, a sua redação, quarenta anos depois. Sentiu, então, e o confessa, dificuldades em manter a unidade de tom, de linguagem e de ação, assim como do ritmo da narrativa.

            Talvez, mais do que os lapsos de tempo transcorridos entre uma redação e outra (por vezes escrevia apenas aos domingos, ou quinzenalmente ou de mês em mês)  foi a sua própria intenção de retratar caracteres, narrar cenas reais, registrar os costumes e paixões de  um povo  de carne e osso, submetido à leis políticas e civis, imbuído de certas ordens de idéias e rodeados de influências reais e positivas que interrompe o fluir sereno da narrativa.

            Cirilo Villaverde considera que teria sido melhor para a sua obra se ela tivesse seguido o modelo de Paul et Virginie, de Atala, de René. No entanto, a história de Cecília Valdés não está muito distante dessas ou de outras histórias tão ao gosto da época. Foi afastada de sua mãe logo ao nascer para ser posta na roda e, assim, receber um sobrenome que lhe seria negado como filha ilegítima de um homem casado. A mãe, sem entender o porquê de lhe terem levado a filha e sem acreditar que a criança lhe seria restituída, perde a razão. Criada pela avó que não possui energia suficiente para educá-la, tem uma infância sem freios e obedece, somente, a seus impulsos. Dotada de rara beleza, acredita ser isso razão suficiente para poder se casar com branco, ela, mulher mestiça que despreza os mestiços. O destino faz com que se apaixone pelo seu meio irmão com o qual mantém relações incestuosas. Mas, rico e branco, Leonardo sobe ao altar para se casar com Isabel, branca e rica. Na igreja, encomendada por Cecilia Valdés, a bala que devia  ser dirigida à noiva, atinge Leonardo. Perseguida, Cecilia Valdés acaba, como a sua mãe anos antes, encerrada num asilo de loucos.

Ao redor dessa trama folhetinesca – uma acusação, lembra o historiador da Literatura, Raimundo Lazo, que facilmente lhe fazem os críticos do romance – se desdobra um amplo panorama social: a elite do Poder, a elite econômica, os trabalhadores chamados livres, os escravos negros. Uma estrutura social, claramente, dividida  em brancos, mestiços e negros.
            Descrever essa estrutura social parece ser tão importante para Cirilo Villaverde quanto a história que narra cujo ritmo, então, se interrompe para permitir a fixação dos ambientes: uma casa em Havana, uma casa rica, uma casa pobre. Numa delas, apenas dois quartos, poucos e indispensáveis móveis entre os quais o catre que deve ser desmontado de dia para dar mais lugar;   na outra,  muitas peças e móveis de bela madeira. Quanto da fazenda de cana de açúcar, ele descreve, minuciosamente, o engenho, suas diferentes construções para abrigar a casa das caldeiras, de purgar, do bagaço e da purificação do açúcar. Também, com vagar, se detém na refeição usual de casa abastada. Servida por dois escravos, o almoço da família se compõe de pratos de carne de gado, frango,  vitela, porco, além de ovos, arroz, banana frita e salada de alface e agrião. E, para terminar, uma xícara de café com leite, servida pelo próprio cozinheiro. Contrastando, a refeição de um mulato antes de ir para o trabalho, consta, apenas, de um pedaço de pão com queijo.

            É’ que, na busca do real, Cirilo Villaverde não pode se impedir de registrar essas diferenças  entre a diversão dos ricos e a dos pobres, o traje dos ricos e o dos pobres e o tratamento que um e outro são merecedores por parte dos demais. Trata-se de um dualismo que, em diferentes níveis, está presente em toda a obra e que alberga uma denúncia sobre a iniqüidade que domina as relações de classe, principalmente, as relações de raça na sociedade cubana do século XIX.

            Em conseqüência, Cecilia Valdés  passa a ser mais do que um romance. Porque, sem dúvida, encerrados na tradicional história romântica de amores contrariados, sofrimentos, tragédias, os melhores textos da obra são aqueles que descrevem a  organização cotidiana de uma sociedade colonial, essencialmente racista.

            São preciosos documentos sobre uma época ainda desconhecida pelos habitantes do Continente porque Cirilo Villaverde acabou cumprindo o que somente alguns poucos historiadores são capazes de fazer: História voltada para um futuro que poderá ou poderia ser inovador.

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