No
prólogo escrito, em 1879, para seu romance Cecilia Valdés, Cirilo
Villaverde se afirma um escritor realista. Ele vivia em Nova Iorque o seu
segundo e definitivo exílio. Fugira da prisão a que fora condenado por
conspirar contra a Espanha. Queria, acima de tudo, a liberdade de Cuba e, nos
Estados Unidos, continuou a lutar por seu país, através do jornalismo. Foi
redator de La Verdad e fundador de El Independiente, jornais
que, pregavam a independência da última
colônia espanhola da América. Principalmente, Cirilo Villaverde se dedicou à
política militante.
Mais tarde, sobre esses
anos de luta, ele dirá: longe de Cuba,
mudei meu gênero de vida; troquei meus gostos literários por mais altos
pensamentos; passei do mundo das ilusões para o mundo das realidades;
abandonei, enfim, as frívolas ocupações do escravo em terra escrava, para tomar
parte nos empreendimentos do homem livre em terra livre.
Assim, não é
de estranhar o ter afirmado, quando se propôs
a concluir Cecilia Valdés,
que Walter Scott e Manzoni foram os únicos autores que lera nos últimos vinte
anos. Mais do que esse tempo, precisou
para terminar o seu romance. Em meados de 1839, acabara a primeira
parte, publicada em Havana e dera início à sua continuação. Já voltado ao
magistério e às suas atividades políticas e jornalísticas só veio a se dedicar,
novamente, a sua redação, quarenta anos depois. Sentiu, então, e o confessa,
dificuldades em manter a unidade de tom, de linguagem e de ação, assim como do
ritmo da narrativa.
Talvez, mais do que os lapsos de
tempo transcorridos entre uma redação e outra (por vezes escrevia apenas aos
domingos, ou quinzenalmente ou de mês em mês)
foi a sua própria intenção de retratar caracteres, narrar cenas reais,
registrar os costumes e paixões de um povo
de carne e osso, submetido à leis políticas e civis, imbuído de certas
ordens de idéias e rodeados de influências
reais e positivas que interrompe o
fluir sereno da narrativa.
Cirilo Villaverde considera que
teria sido melhor para a sua obra se ela tivesse seguido o modelo de Paul et
Virginie, de Atala, de René. No entanto, a história de
Cecília Valdés não está muito distante dessas ou de outras histórias tão ao
gosto da época. Foi afastada de sua mãe logo ao nascer para ser posta na roda
e, assim, receber um sobrenome que lhe seria negado como filha ilegítima de um
homem casado. A mãe, sem entender o porquê de lhe terem levado a filha e sem
acreditar que a criança lhe seria restituída, perde a razão. Criada pela avó
que não possui energia suficiente para educá-la, tem uma infância sem freios e
obedece, somente, a seus impulsos. Dotada de rara beleza, acredita ser isso
razão suficiente para poder se casar com branco, ela, mulher mestiça que
despreza os mestiços. O destino faz com que se apaixone pelo seu meio irmão com
o qual mantém relações incestuosas. Mas, rico e branco, Leonardo sobe ao altar
para se casar com Isabel, branca e rica. Na igreja, encomendada por Cecilia
Valdés, a bala que devia ser dirigida à
noiva, atinge Leonardo. Perseguida, Cecilia Valdés acaba, como a sua mãe anos
antes, encerrada num asilo de loucos.
Ao redor dessa
trama folhetinesca – uma acusação, lembra o historiador da Literatura, Raimundo
Lazo, que facilmente lhe fazem os críticos do romance – se desdobra um amplo
panorama social: a elite do Poder, a elite econômica, os trabalhadores chamados
livres, os escravos negros. Uma estrutura social, claramente, dividida em brancos, mestiços e negros.
Descrever
essa estrutura social parece ser tão importante para Cirilo Villaverde quanto a
história que narra cujo ritmo, então, se interrompe para permitir a fixação dos
ambientes: uma casa em Havana, uma casa rica, uma casa pobre. Numa delas,
apenas dois quartos, poucos e indispensáveis móveis entre os quais o catre que
deve ser desmontado de dia para dar mais lugar; na outra,
muitas peças e móveis de bela madeira. Quanto da fazenda de cana de açúcar,
ele descreve, minuciosamente, o engenho, suas diferentes construções para
abrigar a casa das caldeiras, de purgar, do bagaço e da purificação do açúcar.
Também, com vagar, se detém na refeição usual de casa abastada. Servida por
dois escravos, o almoço da família se compõe de pratos de carne de gado,
frango, vitela, porco, além de ovos,
arroz, banana frita e salada de alface e agrião. E, para terminar, uma xícara
de café com leite, servida pelo próprio cozinheiro. Contrastando, a refeição de
um mulato antes de ir para o trabalho, consta, apenas, de um pedaço de pão com
queijo.
É’ que, na busca do real, Cirilo
Villaverde não pode se impedir de registrar essas diferenças entre a diversão dos ricos e a dos pobres, o
traje dos ricos e o dos pobres e o tratamento que um e outro são merecedores
por parte dos demais. Trata-se de um dualismo que, em diferentes níveis, está
presente em toda a obra e que alberga uma denúncia sobre a iniqüidade que
domina as relações de classe, principalmente, as relações de raça na sociedade
cubana do século XIX.
Em conseqüência, Cecilia Valdés passa a ser mais do que um romance. Porque,
sem dúvida, encerrados na tradicional história romântica de amores
contrariados, sofrimentos, tragédias, os melhores textos da obra são aqueles
que descrevem a organização cotidiana de
uma sociedade colonial, essencialmente racista.
São preciosos documentos sobre uma
época ainda desconhecida pelos habitantes do Continente porque Cirilo
Villaverde acabou cumprindo o que somente alguns poucos historiadores são
capazes de fazer: História voltada para um futuro que poderá ou poderia ser
inovador.
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