Na
civilizada Europa de hoje há, ainda, aqueles que acreditam ser a Declaração dos
Direitos do Homem diretriz que norteia as relações entre os homens e se
escandalizam diante de situações que mostram
como esses direitos continuam, neste século XX, a serem ignorados.
Esquecem, muitas vezes, que as estruturas econômicas, políticas e sociais
vigentes, quase sempre, no Continente, são as mesmas instauradas pelos
colonizadores e que permitem uma exploração do homem pelo homem que o Primeiro
Mundo já não admite para os seus cidadãos.
Jean
Franco, pesquisadora inglesa, na sua Historia de la Literatura
Hispanoamericana, ao tratar de Cecilia Valdés, observa que a indignidade da escravidão consiste em que
um grupo de seres humanos tem o direito de tomar posse de
outros seres humanos e tratá-los como se fossem objetos. Estamos chegando ao século XXI e, realmente, bem longe desse
tráfico negreiro que, sob a bandeira inglesa, transportava para a América os
negros da África.
Mais
perto dessa trágica ineqüidade, esteve
Cirilo Villaverde nascido em Cuba em 1812. Em Cecilia Valdés, romance
que o imortalizou nas letras do Continente, a escravidão não apenas é uma
presença constante, como ultrapassa as fronteiras da ficção. Cecilia Valdés não
pode pretender casar com homem branco por ter nas veias sangre negro que, no
entanto, apenas é percebido nos seus cabelos ondulados, no leve escurecer da
pele próxima ao nascimento dos cabelos.
À
tragédia que desse obstáculo advém, razão primeira da narrativa ficcional, se
alinham outras. As que, geradas na estrutura social que admite ser constituída
de homens livres e de escravos. Os maus tratos – filhos separados das mães,
castigos corporais desmedidos, torturas mentais e físicas -, realidades testemunhadas pelos historiadores
são inseridos em
Evidenciam-se
como ignominiosos os homens que tratam os outros homens como se fossem objetos
de pouco valor. Don Candido Gamboa, riquíssimo comerciante de Havana, é deles
síntese fiel. Mostra-se, exemplarmente, mau, no sexto capítulo, quando relata
para sua mulher os percalços d e seu barco negreiro que está prestes a chegar
com o seu carregamento. Para ficar mais leve, num momento em que devia
desenvolver maior velocidade para escapar de um navio inglês, o capitão manda
jogar no mar os negros que viajavam na coberta. Para salvar oitenta ou cem
fardos, iria o capitão da marinha
expor sua liberdade e o restante do carregamento que era o triplo?, explica
o proprietário que tampouco nega a necessidade de terem sido fechadas as
escotilhas e, assim, perecerem sufocados os negros que viajavam nos porões.
Diante
do susto de sua mulher ao pensar nessas mortes todas, sem batismo, Dom Cândido
Gamboa argumenta: E continua essa
teimosia de acreditar que os fardos da África tem alma e que são anjos. Isto é
blasfêmia. Pois daí nasce o erro de certas pessoas...Quando o mundo se
convencer de que os negros são animais
não homens, então, vai acabar um dos motivos que alegam os ingleses para perseguir o
tráfico da África. Coisa semelhante acontece na Espanha com o fumo: proíbem o
seu tráfico e os que vivem disso quando são perseguidos pelos guardas, soltam a
carga e salvam a pele e o cavalo. Acreditas tu que o fumo tem alma? Faz de
conta, então, que não há diferença entre um rolo de fumo e um negro, pelo menos
no que se refere a sentimentos.
No
prólogo a seu romance, Cirilo Villaverde
admite que ele é feito de cores sombrias
e que os quadros que mostra não ensinam deleitando.
Na
realidade, a História do Continente apenas deleitou os seus colonizadores.


