domingo, 25 de novembro de 1990

Um mundo desejado



            Em outubro do ano passado, numa edição bilíngüe, a Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, publicou Contos da Selva de Horacio Quiroga. O escritor uruguaio havia escrito esses contos para seus filhos e os fora publicando em periódicos até que, em 1918, apareceram em livro editado pela Sociedad Cooperativa Editorial Limitada “Buenos Aires”.

            Juntamente com inúmeros artigos sobre a fauna da região missioneira argentina e sobre a erva-mate, a criação do bicho da seda, o cultivo da mandioca e a  destilação da madeira, esses contos são resultado da vida que passou na selva.

            Uma vida que escolheu ou que foi levado a escolher. Depois de estudos que não completou, depois de escrever versos modernistas e de ir a Paris e de pertencer a um círculo literário de Montevidéu, a tragédia de ter matado, acidentalmente, um de seus melhores amigos, o levou ao auto-exílio.

            Inicialmente, nos primeiros anos de 1900, viveu no Chaco argentino, perto de Resistência onde plantou algodão numa época em que não havia para isso apoio governamental e nem interesse pela  fiação. Mais tarde, se instalou na região das Missões, dedicando-se ao cultivo da erva-mate. O que era feito primitivamente, ele tencionou realizar com método. Mas, foi a época em que aqueles que industrializavam a erva-mate na Argentina, se abasteciam no Brasil e no Paraguai. Então, Horacio Quiroga se lança na venda de laranjas, na produção de sucos, na destilação de azeite.

            No entanto, apesar de sua imensa capacidade de trabalho e do entusiasmo pelo que fazia, seus empreendimentos, por uma razão ou por outra, fracassaram sempre. Como diz Philippe Humbé na orelha da edição brasileira de Contos da Selva: escrever contos para manter plantações não podia dar muito certo. Certo foi, então o quê Horacio Quiroga. Textos que o situam entre os mais expressivos escritores do Continente.

            Ainda que desconhecido do grande público e, sem dúvida, apenas conhecido de alguns críticos literários, sua obra atravessou as fronteiras. A professora Tânia Piacentini que traduziu Contos da Selva para o português encontrou edições de suas obras no México, Venezuela, Chile e Equador. No Brasil, em 1977, Salim Miguel publicou em Ficção, o conto “Os desterrados” e, em 1981, a Rocco publicou Anaconda.

            Contos da Selva se compõe de oito relatos para crianças. Dois deles, são histórias de animais. “A abelha preguiçosa” conta a luta de uma abelha para se salvar num momento de perigo e, então, compreender a necessidade de trabalhar como as outras o quê, até então, não fizera. “As meias dos flamingos” é uma fantasiosa explicação para a cor das pernas  e para o hábito que tem os flamingos de ficarem longo tempo apoiados numa perna só.

            Assim como as abelhas falam e como falam os flamingos nessas duas histórias, nas outras seis os animais também falam. E, não apenas entre si, mas com os humanos. No conto “A guerra dos jacarés”, os homens destroem o dique construído pelos jacarés para impedir a navegação perniciosa que espantava os peixes. Em dois contos, os animais já domesticados, sofrem danos de outros animais selvagens e procuram voltar para junto dos humanos que os tratavam bem e com os quais haviam aprendido a se comunicar.

            Duas histórias tem por personagens homens solitários que vivem em meio à natureza e quando em perigo de vida são salvos por animais .Em outra, é o animal em dificuldades que busca o auxílio do homem e o recebe.

            Muito embora, nesses contos, por vezes sucedam mortes, elas são conseqüência de uma luta, de um enfrentamento cujo motivo se inscreve na lógica da luta pela sobrevivência. Assim, o homem mata tigres para se defender, um navio é destruído pelos jacarés e apenas o velho jacaré desdentado devora um dos adversários: o oficial com galões de ouro na roupa e que dera voz de ataque.

            E o equilíbrio retorna sempre. Com exceção das aves que nunca mais se libertaram dos danos sofridos no conto “As meias dos flamingos” e do quati, vítima  da picada de uma cobra do conto “História de dois filhotes de quati e dois filhotes de homem”, todos os demais têm final feliz.

            O que, no entanto, não significa uma visão de mundo idealizada, simplista ou ingênua.

            Certamente, Horacio Quiroga desejou dar lições a seus filhos. Então, fez falar os animais, fez com que valessem para eles as virtudes que se espera encontrar nos homens. Mas, debatendo-se entre as normas que regem o cotidiano dos homens, solitário  entre os humanos, vencendo, poucas vezes, a muralha da solidão, sobretudo, ele inventou um mundo no qual a gratidão, a fidelidade e o altruísmo fogem das barreiras do impossível para existir na ficção dos animais que falam.

            Refúgio em um mundo desejado.

domingo, 18 de novembro de 1990

"Nada do exterior me acontece"

            O mundo não o deixou ficar indiferente. Tanto fez, tanto insistiu que Mário Quintana foi obrigado a percebê-lo e escreveu: Não sei por que diziam que uma humilde cidadezinha / Tinha, por exemplo, umas quinze mil almas.../ Almas? Hoje, o que elas têm são quinze mil bocas ,/ Loucas de fome.  O título desse poema é “Censo demográfico”. Como o primeiro verso de “Um simples lugar comum”  assim, tão incisivo sobre a fome do Continente (Todos esses roubos, todos esses assassinatos vem apenas da fome) é um momento incomum na obra do poeta.  Esses dois poemas, inéditos como os outros setenta e três, formam o livro Velório sem defunto que a Mercado Aberto, de Porto Alegre, acaba  de publicar.
 
            Dos poemas, alguns são muito pequenos, como “Amanhecer”, feito de dois versos: O sol derrama, na calçada ,/ A sua bela, matinal urinada.  Outros, são mais longos, variam entre nove e doze e, só excepcionalmente, quinze versos. Como, por vezes, se formam de versos  longos (mais de vinte sílabas) inspiraram, sem  dúvida, essa composição gráfica que rompe com o esquema tradicional de leitura uma vez que, para realizá-lo, o livro deve ser folheado de baixo para cima ao invés  de sê-lo da direita para a esquerda. E apenas nas suas páginas ímpares.

            O gesto, prazerosamente inusitado para o ato de ler, busca, no entanto, o conhecido gosto da poesia de Mário Quintana e o encontra. A poesia que ele arranca do cotidiano  ampliada em lembranças e em descobertas – como sempre tem feito – e continua a se contaminar de interrogações e de certezas que são as interrogações e as certezas dos humanos ou de alguns privilegiados humanos.

            É uma mesinha de pinho;  a empada de camarão, sem camarões; é a perda de um amor adolescente; a figura do avô para os olhos infantis;  Aquela janela acesa/ No casario/Sou eu..., uma descoberta acaso flaubertiana que irrompe no poema “Noturno”;  as perguntas sobre a vida  e sobre o seu sentido;  a curiosidade em saber qual é o seu melhor poema; e aquela relacionada com o outro ou com si mesmo: E como fazer para que não me esqueças/ (ou eu não te esqueça...).

            E, as incertezas. Onde cabem Deus, Cristo e o amor. Um Deus que, para o poeta nunca existiu e que, de vez em quando, lá está, presença viva, num verso. Um Cristo que, partindo da terra a libertaria de proibições. Amores que são ausências, abandonos.

            Um mundo espiritual (alguém diria) de negativas. Para fazê-lo viver, a poesia. Nela, o tempo não existe diz Mário Quintana. Nela, tudo permanece, ele diz. E nessa Arte Poética que se insinua de vez  em quando nos poemas, ele constata: Esses poetas que tudo dizem / Nada conseguem dizer: / Estão fazendo apenas relatórios....

            Mestre de ligeiros tons, de palavras poucas, de expressão ironicamente ingênua, Mário Quintana, um terremoto na alma, afirma que Nada do exterior me acontece.

            E, desse mundo que nos rodeia,  ele nada (ou quase nada) conta. As vezes, apenas diz de um tom argentino:

                        Nos solenes banquetes de próceres internacionais
                        - em especial sobre desarmamentos -
                        O aparte mais espontâneo
                        É’ o riso de prata de uma colherinha
                        Que por acaso tombou no chão.

domingo, 11 de novembro de 1990

Miguel Cara de Angel

           No ano de 1967, o guatemalteco Miguel Angel Astúrias recebia o Prêmio Nobel de Literatura
com o romance El Señor Presidente, um livro perfeito e terrível como poucos. Em se tratando da Literatura do Continente, tão pródiga em textos que expressam a violência, trata-se de uma obra que contém, talvez, os textos mais sombrios e cruéis sobre os meandros de uma ditadura e sobre a desintegração física e moral de um cidadão dessa ditadura.

            Entre os muitos personagens do romance, destruídos pela vontade onipresente e absoluta do presidente, um deles, Miguel  Cara de Angel é aquele que  sofre todas as degradações a que podem estar sujeitos os que habitam esses espaços que se constituem “territórios de ninguém”, porque, afinal, são territórios que pertencem a uns poucos. Ele  é belo, rico e tem nas mãos o poder fácil, irresponsável daqueles que aceitam ser cognominados favoritos.

            Pouco se conhece de sua vida a não ser que tem caminho livre junto ao presidente. Também se ignora se é feliz. Porém, no momento em que toma consciência do sentimento por  Camila e em que presencia o seu sofrimento, a sua aproximação da morte, presa no terrível círculo que a envolve, aceita, finalmente, a lucidez da qual, por interesse, até então fugira.

            Passa  a ser, então,  intensamente, dominado pela angústia mas, apenas, nos raros instantes em que o amor lhe permite voltar-se para algo que lhe seja estranho. Ou seja, a angústia que o atormenta é pelo ser que ama, pelo medo de perdê-la, de ter a própria felicidade destruída. O que se passa a seu redor continua a perceber  apenas  como sombra e névoa.

            Ao imaginar a possibilidade de fugir,  apenas pensa em correr, voar, salvar-se. Mas, prisioneiro daquele a quem uma vez salvara a vida, é torturado, atirado sobre o esterco num trem cuja viagem não tem retorno.         Passa anos  no calabouço, incomunicável. Seu corpo sem ar, sem movimento, reumático, padecendo nevralgias errantes, quase cego, se desintegra. A angústia do espaço limitado, da irremediável falta de liberdade, da solidão, não consegue, no entanto, tirar-lhe o alento, mantido pela esperança de rever Camila. Mas, não  apenas essa esperança lhe é arrancada, como a própria imagem que restava dela é enlameada, ultrajada, conspurcada.

            Na imundície, na desolação, no desamparo total do homem que em meio a uma incomensurável miséria, ainda recebe algo para torná-lo mais miserável, - a certeza de uma traição – Miguel Cara de Angel morre.

            O ciclo degradante do usufruto do Poder para a condição de vítima desse mesmo Poder,  se completara.

domingo, 4 de novembro de 1990

A casa


            Ela tinha sessenta e oito anos quando começou a morrer. Era  muito bela, faustosa, rica, imponente. Fora construída por um senador da República, de bela voz e dominado por um incontido fraco pelas mulheres. No jogo da conquista amorosa, lhe era igual recitar os versos de Espronceda para a mulher de um colega do Senado ou para  uma criada. Na casa, ele viveu e seu filhos e netos.

            Das mãos cuidadosas que a planejaram e adornaram com objetos caros e preciosos, a casa passou para outras, indiferentes, que a venderam a estranhos. Começa, então, o seu fim. Arrancam-lhe o mármore das escadas, vendem-lhe a suntuosa porta da entrada, fazem cair o teto e as paredes. Nesses dias que antecedem o seu desaparecimento, em que os operários a invadem, martelando, golpeando, desfazendo, a casa quer falar. Contar dos anos que já passaram, de suas alegrias e tristezas e sustos que  são, também, aqueles sentidos pelos membros da família que nela vivera.

            A partir das peças que descreve – o saguão, os quartos, a sala de jantar – aparecem os personagens e, com eles, as cenas, os hábitos, os dramas, algum fato impossível de esquecer.

            O luxo do casarão se apresenta como o cenário perfeito para o papel que aqueles que o habitam representam: o senador a treinar os seus discursos, diante da estátua do velho fauno, no jardim. O filho Gustavo, formando com a mulher o casal mais chique de seu tempo; Francis, o neto,  que trás a elegância dentro da alma.   E Clara, a mulher, linda e obesa. Fechada, depois de viúva, no quarto japonês cujo estilo, ditado pelos Goncourt irá provocar, anos depois, o desprezo de Francis, a solidão a fará buscar consolo num sem fim de imagens católicas que, então, se acoplam a esse cenário oriental. No amontoado de figuras de gesso, estampas, oleografias,  talhas da Virgem Maria, São José, São Roque, São Judas Tadeu, São Pedro de Alcântara que a aproxima da religiosidade latina, se encontra a única expressão de um sentir próximo do Continente.

            Porque a casa, na sua concepção e nas suas linhas e nos seus detalhes,  copia alguma outra ou algo de alguma outra do Velho Continente  E’como se estivéssemos em Paris, exclamam os visitantes. Impressão que se prolonga nos jardins onde se erguem, entre as plantas, estátuas de inspiração clássica e nas escadarias ornadas de um nicho a abrigar uma cena bíblica;  também, na sala de jantar, magnífica, onde sempre um conviva, ao levantar os olhos para o teto, admirado,  observa: Mas... é um teto italiano!.

            E aí, nessa submissão ao gosto ou ao que se presume ser o gosto de além-mar, estaria contido um dos traços mais profundos dessa elite alienada e a  procurar, alhures, a sua identidade. E a voz do casarão da “calle Florida”, ao esboçar-lhe o perfil no relato dos sucessos que, ao longo dos anos presenciou, espelha à perfeição, as suas imagens ridículas e ultrapassadas  (mas ainda vigentes), sugerindo, então,  umas quantas perguntas a induzir a outras tantas respostas. E, fazendo   com que La casa de Manuel Mujica, publicado em 1954,   seja, na verdade bem mais do que  um  simples livro  “singular e atraente” da Literatura Argentina.