domingo, 28 de outubro de 1990

Quando o monólogo é preciso


            Isabel e Idolina, Julia e Mercedes. Quatro destinos privados de horizontes numa estrutura social extremamente conservadora e religiosa.

            Ciudad Real se encrava no vale, fundada por espanhóis na Península de Yucatán, próximo à Guatemala. Apesar do nome, é uma pequena cidade, orgulhosa dos que nela nascem e da língua que falam. Suas mulheres, modestas e castas, se encerram nos solares avoengos e os dias amanhecem e anoitecem sem que suceda outra coisa senão suas mudanças de luz. O quê pouco importa para as mulheres que olham a vida através dos cristais das janelas e evitam o sol para preservar a brancura da pele. E, assim pouco importa, também, para Isabel ou Idolina.

            Isabel Zebadua pertence àquelas famílias cujo nome é “um talismã”. Usá-lo, significa prescindir de qualidades pois a sua posse, de per si,  tudo garante: nenhuma crítica pode alcançá-la, nenhum elogio enaltecê-la ainda mais.

            Sem o amor do marido, interessado em qualquer outra, sem o amor da filha, criada por uma ama, ela prefere estar no  quarto de costura, pensando nas suas desditas.Quando delas fala para a filha, não obtém resposta; quando delas fala para o marido, acaba calando. Então, murmura consigo mesma sobre a humilhação de ser  traída com as índias  ou com uma branca sua igual para concluir que, finalmente, nada está a perder porque, há muito, o marido já não lhe pertencia e que, tanto faz que delapide o seu capital porque dela não irá obter ajuda, mais tarde, quando vier pedir.

            Idolina é a filha enferma que jamais abandona o leito. As confidências que a mãe faz, buscando consolo e perdão pelo abandono a que a havia condenado, só obtém, como resposta,  o silêncio. No íntimo, se regozija pelo fracasso amoroso da mãe e se sente vingada de suas ausências, de ter sido delegada a uma índia que não somente a amamentava como lhe dava todos os cuidados . E seus próprios medos e angústias – deseja se queixar, protestar – não têm a quem se dirigir. Enche uma página e outra com sua letra grande e desgovernada, daqueles acostumados a outros afazeres. E’um grito tumultuoso, uma confissão infantil, o último grito de quem se afoga. Quando termina, está ofegante como se tivesse feito um grande esforço físico. Dobra os papéis e os guarda num envelope. Somente então, se dá conta que não tem a quem dirigi-los. Por isso, o destrói na chama da vela.

            Julia é a forasteira que chega na cidade. Não é casada com o homem com quem vive e aspira pertencer ao círculo das senhoras ricas e respeitáveis. Não o consegue nem com a simpatia, nem com a insistência. Somente uma complicada “rede de evoluções e táticas” lhe fazem chegar as visitas que desejara. Mas, nos seus salões, as mínimas normas sociais são desrespeitadas e ela, a anfitriã, mantida fora do círculo das conversações. Quando pretende rompê-lo, aventurando-se numa pergunta, a resposta lhe é dada vagamente ou com impaciência como se a sua curiosidade não fosse lícita nem oportuna. Ao sair a última convidada, Julia mensura, então, seus esforços e os resultados e, sozinha, se pergunta se vale a pena se empenhar tanto  em penetrar num mundo tão fechado, galgar uma hierarquia tão inacessível.

            Mercedes, que na sua juventude ofertava seus favores dentro  de casa, como uma rainha, vai envelhecendo e se perdendo. Um dos homens a quem iniciou nos jogos amorosos, agradecido, a mantém como alcoviteira o que não impede que esteja marginalizado de tudo. Mesmo aqueles que, ainda, a cumprimentam, em lembranças de antigos tempos, o fazem medrosos de serem vistos. O temperamento alegre de Mercedes, porém, não se habitua a esses silêncios, impostos pelas circunstâncias  e, para espantá-los inventa um vago auditório a quem vai contando seu passado e comentando coisas do presente.

            Ou porque não se submetem aos deveres familiares – Isabel não assume os encargos maternos, Idolina ignora o afeto filial – ou porque as normas sociais impedem o acesso ao círculo dos eleitos àquelas considerados marginais – Julia por não ser casada, Mercedes por seu “ofício”- são mulheres condenadas à solidão.

            Personagens de Oficio de tinieblas ( México, 1962), romance que mesclando a ficção e a crônica fala de um mundo que tem sido sempre o mundo dos latino-americanos, dividido  em pobres e ricos, em brancos e índios, em trabalhadores e ociosos. Nesse mundo, os personagens femininos também estão impregnados dessas dicotomias e, ainda,  daquelas  advindas das estruturas familiares e sociais e das relações que nela se estabelecem.

            Qualquer que seja a cor de sua pele, a classe a qual pertence, o poder econômico que possua  esse personagem feminino será mantido, embora tenha voz e queira usá-la, com as palavras na garganta.

            No seu romance, Rosário Castellanos, romancista do Continente, quis livrá-las  do silêncio.

domingo, 21 de outubro de 1990

Da marginalidade e do escrever


            E’na Universidade de Poitiers, a 340 quilômetros de Paris, que se inscreve um dos mais prestigiosos centros de estudos sobre literatura latino-americana. Em 1981, continuação de um programa que já havia sido dedicado a Pablo Neruda, Juan Carlos Onetti, Augusto Roa Bastos, César Vallejo, Graciliano Ramos e Machado de Assis, foi realizado um Colóquio Internacional sobre a obra de Carlos Droguett.

            Extremamente importante pelo número e pelo nível dos trabalhos apresentados e pela documentação sobre o autor, presente ao evento, realizada em vídeo, representou, sobretudo, a partir de uma presença efetiva na Universidade francesa, um marco para a história literária do romancista chileno no que se refere ao que a Literatura Comparada chama “fortuna” de uma obra.

Na verdade, um acréscimo pois textos de Carlos Droguett há muitos anos, já haviam chegado na França. Seus primeiros contos que passaram despercebidos no Chile como, de certo modo e durante muito tempo, todos os seus romances, foram traduzidos por Francis de Miomandre que os considerava admiráveis e os publicou em revistas literárias francesas.

            Mais tarde, em  1977, foi a vez de Eloy, romance publicado na Espanha antes de sê-lo no Chile, ser traduzido para o francês e publicado pela Maspero. E, em 1983, pela Denoël, numa tradução verdadeiramente brilhante de Jean Marc Pelorson, apareceu Patas de perro. E, anunciada para breve, a tradução de El Compadre.

            Até certo ponto, seguindo os passos  dessa trajetória da obra de Carlos Droguett no circuito comercial francês e, logo o acompanhando, a crítica universitária se faz presente. Em 1980, Ana Maria Díaz-Moreno defendeu uma tese sobre Eloy e, agora, bem recentemente ( o trabalho não trás data), uma nova tese é defendida, desta vez sobre Patas de perro, romance considerado por muitos como a obra-prima de Carlos Droguett: Une étude de la marginalité dans Patas de perro, de Carlos Droguett. Seu autor, Jean Paul Audoin, se debruça sobre a marginalidade de Bobi, o personagem principal do romance, num mundo hostil em que prevalecem as normas e as leis. Procura mostrar como a marginalidade é ligada à sociedade da qual o marginal procura fugir e como essa sociedade está na origem do processo de marginalização e com as conseqüências que lhe são inerentes.             Antecedido por um estudo sobre a gênese da história, sobre a solidão que alimenta os dois personagens principais e sobre as buscas de Bobi, uma orientada para a religião, outra para a política, “Escrita e marginalidade” a quarta parta do trabalho se detém em dois aspectos que são de suma importância na obra de Carlos Droguett: o procurar transgredir as normas vigentes na construção do romance e o oferecer um universo romanesco fragmentado através de explosões de palavras que, aparentemente, podem parecer caóticas. Sobretudo, porque nem sempre, os tempos verbais se justapõem e as frases começam onde parecem estar terminando. Este contrariar da lógica, diz Jean Paul Audoin, permite reviver do interior do personagem este fluxo de paixões que nascem e desmaiam, que são gravadas e apagadas. Assim, as impressões  criadas são mais próximas de uma verdade emocional do que qualquer outra escrita em que os esquemas estejam previstos de antemão. Uma desordem que, de certa maneira, se inscreve na natureza e na sociedade: desordem de idéias e de sentimentos que, no entanto, frisa o estudioso francês, são o suporte dessa sociedade normalizada e intolerante. Razão de sobra para que nela existam os oprimidos, os marginalizados.

            E’por eles que o romancista chileno escreve. Em Patas de perro como o demonstrou Jean Paul Adouin, ele modelou a escrita à imagem do seu personagem: marginais ambos. Na sua concepção revolucionária do mundo – de um mundo que ele anseia diferente – a rigidez da escrita deve ser quebrada como devem ser quebrados os laços que aprisionam o homem. E, Jean Paul Adouin cita as palavras que, em 1981, Carlos Droguett pronunciou em Poitiers: ser marginal significa ser livre.

domingo, 14 de outubro de 1990

Os Conquistadores.3


Sou um simples instrumento de umas mãos altas  e distantes, de uma garras, talvez.
                                                                                                          Carlos Droguett           

            Obedeciam às ordens do Rei e inventavam as próprias. Dispunham da vida e dos sonhos dos soldados que comandavam: os capitães.

            Don Juan Núñez de Prado, partindo de Potosi se internara pelas terras do Continente para fundar uma cidade. Duzentos homens o acompanhavam e alguns índios.

            Quando, no desejo de defender a cidade dos ataques dos espanhóis, vindos do Chile ele a mudou de lugar três vezes, teve que enfrentar dissidências dos que não queriam partir, mas se enraizar, simplesmente cuidar de uma árvore, construir os próprios móveis. Capitão, governador da cidade, ele e seus capitães são os instrumentos da Coroa Espanhola e nela buscam as razões para aplicar a justiça. Então, ao desejar refazer a cidade espanhola nas terras da América – vislumbrá-la com as ruas calçadas onde  passem  carruagens cheias de risos femininos e mantilhas  e leques, com as casas de sacadas feitas de ferro e ornadas de  flores – lhes é permitido ignorar os sofrimentos e prender e matar e condenar à morte àqueles que a isso se opõem. Não podemos compreender ninguém, diz o capitão Vásquez. E diz o capitão Juan Núñez de Prado: eu não quero, nem quer o rei, espanhóis sedentários e sim aventureiros, seres infelizes e desenraizados, ardentes, fortes, orgulhosos. E, assim eles deverão permanecer – os doentes, os feridos, os medrosos serão destruídos -  até que a sua vontade determine o assento da cidade quando, então, os sonhos dos soldados e os seus próprios sonhos poderão ser os mesmos. Enquanto tal não acontece, apenas ele, o que ordena, é dono da razão. Uma razão em que se mesclam a obediência às ordens recebidas do Vice-rei, isto é da Coroa, com as ambições e os sonhos que levam Juan Núñez de Prado a ver-se e a seus capitães como a futura nobreza da nova cidade por eles criada.

            Se, no Velho Mundo, interesses temporais bem  precisos se entrelaçaram sempre aos interesses espirituais que procuraram torná-los justificáveis, assim continuou a sê-lo também no Continente pois Deus e o rei vão junto na Conquista desta terra.  Para explicar seus atos, diz Juan Núñez de Prado: estas são as mãos do rei. Para negá-lo, lhe responde o capelão:  e estas são as mãos de Deus . E um e outro se apóiam no verdugo, no garrote, no Santo ofício. Apóiam-se numa justiça que se proclama de origem real e divina.

            Senhores absolutos do destino de seus semelhantes e do universo no qual eles adentram para tomar posse, os capitães duvidam e temem. Duvidam das próprias decisões sem, no entanto, a elas se poderem furtar; temem a traição dos seus ou o gesto que irá apunhalar um moribundo. Mergulhados numa solidão tão grande como o espaço que os rodeia, eles transferiram, no desalento ou na alegria, para outras mãos ( certamente, para outras garras) a conquista do Continente.

            Seus feitos – heroísmo e miséria – foram resgatados por Carlos Droguett. Sem se afastar do que narra a crônica da Conquista da América, o escritor chileno, num dia de maio de 1967, decidiu trazer esses conquistadores e o mundo que conquistaram, novamente para a vida. E escreveu um dos mais belos romances de que pode se orgulhar a Literatura do Continente:  El hombre que trasladaba las ciudades ( Barcelona, Noguer, 1973).  

Carlos Droguett, ex-exilado do governo Pinochet, completará 78 anos no dia 15 de outubro, na Suíça.

 

 

 

 

 

 

domingo, 7 de outubro de 1990

Os Conquistadores. 2


O rei precisa soldados, cada vez, mais soldados, mais cruzes.  Carlos Droguett           

            Muitos deles são sentinelas cujos passos ressoam, guardando a cidade e a casa do Governador: batem na terra com negligência, sem olhar para parte alguma como cegos ou adormecidos.  Outros, muitos, presença constante, embora registrada apenas por vozes, gritos, queixas, murmúrios, cantos. São imagens  que se diluem na cor da noite, na chuva, na névoa. Uma e outra vez fixados numa atitude, num gesto, numa expressão. E’um soldados que dobra a bandeira, um outro que dá golpes de martelo na parede de uma casa, ainda o que abate ramos das árvores ou aquele que bebe água na fonte. São mãos agarradas nas espadas e lancas e arcabuzes e punhais e adagas ou simplesmente empunhadas num pequeno gesto dramático e incompleto.  São olhos que riem ou que tem medo,  são dentes ávidos, rostos suados e envelhecidos.

            Eles avançam para conquistar a América. Da Espanha, eles vieram  Cavalheiros empobrecidos e sonhadores, lustrosos de miséria, perseguidos e sozinhos para serem soldados. El hombre que trasladaba las ciudades (Noguer, Barcelona, 1973) é, também,  a sua saga. Uma saga de heróis sem história que, em busca de um futuro, desembarcaram neste outro lado do mar.

            No romance de Carlos Droguett, a crueldade não está, apenas, diante da resistência encontrada no Continente, mas na própria ação empreendida. Parte da expedição formada para fundar uma cidade, o homens-soldado, foi vítima  das agruras do traslado, do choque de ambições daqueles a quem estavam subordinados.

            Entre o riso e a esperança, alimentando-se de sonho e de imagens do passado, repetindo rituais e obediências que trouxeram com eles, percorrem o caminho que lhe traçam. O Continente vai sendo dilacerado por seus instrumentos que abem sulcos na terra, derrubam árvores  e por suas armas.

            Sujos e desamparados, jovens e alegres, os espanhóis vão se perdendo. Houve os que adoeceram, os que foram feridos ou presos ou condenados à morte. E, houve os que passaram frio. Doentes, febris, cheios de dores, cheios de tosses, desfigurados, terrivelmente brancos, olhos enormes, cheios de lágrimas, diante da falta de cuidados em que se encontravam e diante da ameaça de serem abandonados quando da mudança da cidade, só podiam ter esperanças na religião. Feridos, tem o peito ensangüentado no uniforme feito pedaços ou o braço maltratado, escorrendo sangue. Coxos ou cegos, sabem que isso os condena à morte porque para a nova cidade não irão os imperfeitos. Condenados, perto da forca já são incapazes de qualquer esforço, mesmo o de chorar de medo ou de piedade. E, morrendo longe da terra que lhes viu a infância, nela não terão, ao menos uma lápide que lhes guarde o nome.

            São os soldados da Conquista. Carlos Droguett em El hombre que trasladaba las ciudades não apenas os redime do esquecimento como -  sem que nisso esteja contido um perdão – os enumera, também, como vítimas dessa conquista.