domingo, 26 de agosto de 1990

Uma história da Conquista


            Neste mar de loas que vem se levantando para comemorar, em 1992, a chegada dos espanhóis na América, entre  vozes esparsas, apenas uma voz oficial dissonante no Continente: a de Cuba. Como todos os demais países americanos, teve sua terra dilacerada pela Conquista e violentados os seus indígenas. Parece, ser, no entanto, o único país do Continente que possui o dom de não esquecer e, principalmente, não deixar que a História Oficial  elimine as demais.

            Sabe-se, desde há alguns poucos anos, que o acontecido no passado pode ser contado ou explicado ou entendido de várias maneiras. E que a narrativa histórica, quase sempre, tem sido norteada por interesses bem específicos. Sobejamente conhecidos são aqueles que nutrem a Histórica da América.

            Este fazer a História a seu bel prazer é o que constata o Amo, personagem de Concierto barroco. Nascido e criado entre pratarias, na cidade do México, empreende uma viagem ao Velho Mundo em busca das maravilhas que os antepassados lhe contavam sobre as terras da Espanha. Seus olhos, acostumados às cores e à exuberância do Novo Mundo, se detiveram  no “sujo”, no estreito, no apertado  de Madrid do século XVIII onde as pousadas lhe pareceram más e piores as comidas, onde as feiras não lhe provocaram interesse por desanimadas, as lojas por pobres e os jogos por lhe faltarem garra. A cidade triste, sem graça e pobre deixou sem utilidade o dinheiro que levara para gastar. Aborrecido nessa terra de seus avoengos, parte para Veneza onde os festejos carnavalescos atraíam gente de toda a Europa.

            Na cidade dominada pelo carnaval, onde somente as prostitutas não usavam máscaras, o Amo vestido de Montezuma, participa da festa. Numa pausa, entre a balbúrdia reinante e copos de vinho, encontra um frade compositor, Antonio Sachini a quem conta a História da Conquista do México. O frade, já bastante alegre, acaba por entendê-la assim: um rei de escorpiões gigantes que tinha vivido há pouco tempo atrás, entre vulcões, templos e lagos e dono de um Império que lhe fora arrebatado por um punhado de espanhóis ousados com a ajuda de uma índia namorada do chefe dos invasores. Pensando na ciência dos cenaristas que possibilitaria a presença de montanhas lançando fumaça, aparições de monstros e terremotos e casas a se derruírem, para o compositor a história se mostrou estupenda. A partir da visão que dela teve, de seu gosto  e do interesse que o Novo Mundo provocava, então, o libreto foi escrito, a música foi composta e a ópera colocada em cena.

            Estarrecido, o Amo vê desfilar, no palco, uma extraordinária  história que nada tem a ver com o que ele sabia ou pensava ter acontecido no México, durante duzentos anos atrás. O cenário combinava ou provocava desacertos usando  os elementos mais díspares e distantes. Os trajes, inspirando-se, uns no de Semirâmis, outros nos dos personagens pintados por Ticiano ou nos dos próprios modelos  espanhóis para vestir o Imperador dos Incas, tornavam mais estranhos os personagens. Alguns que não haviam sido citados pelos cronistas da conquista eram donos da trama que por sua vez albergava ações e feitos nunca dantes relatados. Para finalizar, a felicidade de um casamento e do perdão de Hernán Cortés que dilui o que havia de definitivamente trágico no seu encontro com os povos do México.

            O Amo, indignado, no meio dos aplausos grita “falso”, diante do Compositor espantado que vai, então, desenrolando explicações para cada mudança efetuada e acaba perdendo a paciência e dizendo: Não me aborreça com a História. Em matéria de teatro o que conta é a ilusão poética.

            Mais tarde, refletindo sobre a extravagante ópera que assistira, o Amo percebe o quanto teria desejado um impossível desenlace: que o triunfo da luta ficasse com os mexicanos. A seu criado, ele confessa: Eu tinha a impressão que o cantor estava representando um papel que me pertencia e que eu, por molenga e tolo, tinha sido incapaz de assumir. E, de repente, me senti como que fora de situação, exótico nesse lugar, fora de lugar, longe de mim mesmo e de tudo o que é realmente meu.

            A História da Conquista que a Europa lhe oferecera, desfigurada, desrespeitada, conduzira o personagem de Alejo Carpentier a uma auto-descolonização.

            Afetivamente e intelectualmente, ele passara a ser um homem do Continente.

domingo, 19 de agosto de 1990

Compromisso com o homem


            A obsessão da morte tem sido assinalada como uma constante na obra de Carlos Droguett. No Prólogo que acompanha o seu primeiro romance, o crítico Juan Luigi, depois, tantas vezes citado, dizia que a morte inteira, sobretudo a violenta em suas distintas formas, floresce no romance: a dos assassinos de arma branca, a dos suicidas, as do assassinato, a da guerra, a dos fuzilamentos e, principalmente, a do massacre ocorrido em pleno centro de Santiago, cerne da obra.

            O massacre referido ocorreu no dia 5 de setembro de 1938, quando um pequeno grupo de estudantes neonazistas intentou uma ação violenta contra o governo. Encurralados no prédio do Seguro Obrero, em poucas horas, são mortos pelas forças da lei.

            Um ano depois, no dia 3 de setembro, Carlos Droguett publica em La Hora, de Santiago, uma crônica sob o título “Los asesinados del Seguro Obrero” que pretende reavivar a lembrança da tragédia. Para falar no que acontecera um ano antes, ele se  refere aqueles que acreditam que é bom esquecer, os eternos bondosos mas afirma que antes de esquecer um pouco é preciso que se recorde muito, bastante, raivosamente.

            Muitos anos mais tarde, em 1951, ele  tornará a recordar. Reescreve  a crônica  e nela intercala cinco histórias e alguns textos jornalísticos, formando um mundo romanesco cujo título Sesenta muertos en la escalera, sintetiza a matança de 1938  que será a narrativa básica do romance. Premiada pela Editora Nascimento no seu Concurso de 1953,  a obra foi publicada nesse mesmo ano.

            Construída em seis capítulos nos quais se inserem as diferentes seqüências narrativas e o material jornalístico que percorrem caminhos, aparentemente diversos mas que, na verdade, estão a formar um mundo de morte e de misérias onde o dizer individualista dos sentimentos do autor ao expressar a sua experiência, expressa, também  aquela que pode ser a experiência de outros seres humanos.

            E assim será quando uma primeira pessoa inicia o capítulo “Antecedentes”. Um narrador que, desejando refazer os fatos, antes  se detém no aparentemente sem importância: a ida para o trabalho sob o sol do meio dia, dominado pela lembrança da mulher amada, pela lembrança de um amor que é alegria e tormento, que pode querer ser morte mas que, sobretudo, é vida. A profunda e inusitada concepção de um sentimento que, desde sempre, os homens tem querido compreender e o significado que tais palavras podem adquirir na tentativa para decifrar a alma do escritor, nessas páginas de Carlos Droguett sobre o amor  revelam um importante momento de sua vida intelectual e afetiva.
            Talvez não sejam suficientes para conduzir à compreensão de um homem que jamais deixou de reagir contra as agressões de que é tão pródigo o Continente. Mas, sem dúvida, podem ajudar a refletir sobre essa grandeza de alma que leva Carlos Droguett a

domingo, 12 de agosto de 1990

Pelos caminhos do rio


            Entre 1940 e 1969, José Maria Árguedas publicou, regularmente, artigos que giraram, na sua maioria, em torno do índio peruano. Esses artigos de difícil ou impossível acesso para muitos pesquisadores, foram selecionados por Angel Rama e publicados sob o título Senõres e indios, em 1976, pela Arca de Montevidéu e pela Calicanto de Buenos Aires.

            Trinta e oito artigos formam o livro cuja introdução “José Maria Árguedas, transculturador”, assinada pelo crítico uruguaio,  permite, não somente, situá-los no conjunto da obra de José Maria Árguedas mas, sobretudo, compreendê-los como representação de um pensamento profundamente e unicamente comprometido com uma América para aqueles que foram, desde sempre, os seus donos, embora alijados da terra e de seus valores pelos que aqui chegaram e usurparam.

            No entender de Angel Rama, o que distingue o escritor peruano daqueles que se serviram da temática indígena para construir sua ficção  é o enfoque do qual ele parte: a cosmovisão das comunidades indígenas e não a visão do branco sobre elas.

            Em seus ensaios sobre Antropologia e Folclore que formam Senõres e indios, as expressivas descrições de festas, ritos, cerimônias, danças, cantos, de profundo valor documental evidenciam, sempre, o drama de uma comunidade que, desde 1592, resiste à invasão da cultura      dos invasores.

            Comoventes são todas essas imagens da vida andina que José Maria Árguedas fixou. Como intelectual, ele busca a exatidão; como um homem extremamente sensível, percebe essa dualidade estabelecida nas manifestações culturais e religiosas que, na verdade, expressa o processo de destruição dos valores de todo um povo.

            Na festa de Tina, um povoado silencioso de ruas estreitas, os homens solteiros saem para passear tocando flauta, vestidos com grande elegância, caminham, orgulhosamente, na praça.  As índias solteiras se vestem ricamente. José Maria Árguedas lhes descreve, com minúcia, a beleza dos trajes indígenas e nobres. Constata que os homens, apesar de seu orgulho, de sua altivez desdenhosa, levam nos sapatos de futebol e nos cintos de couro, a feia marca do traje híbrido e desalinhado do mestiço.

            Talvez no desejo de esquecer essa visão melancólica é que o seu olhar se volta para a paisagem: sob a ponte de Tinta  passam as águas do Vilcanota, silenciosas e transparentes.

            Como que um irreal caminho ainda não conspurcado.

domingo, 5 de agosto de 1990

E houve, uma vez, um rei


            Foi no Haiti que, no século XVII, irrompeu a grande insurreição negra. A Ilha alcançava um alto grau de riqueza. As terras cultivadas pertenciam aos brancos e eram eles que usufruíam de seus frutos. Os negros trabalhavam. De tantos anos de jugo, de humilhações e torturas, o resultado foi  uma revolta que se voltou contra aqueles que impunham  uma vida colmada de penúrias e foi além. Destruíu as plantações e com elas, toda a riqueza. Os chefes da revolta se sucederam – Toussaint L’Ouverture, Jean Jacques Dessaline, Pétion e Christophe que se proclamou rei com o título de Henri I.  Era negro mas seus olhos se voltaram para o mudo dos brancos com tudo o que isso poderia representar de ignomínia em relação a seu povo. Assim, quando na França, a Revolução Francesa já havia efetuado mudanças, concedendo direitos às massas até então exploradas, Cristophe construiu um cenário monárquico repetindo nele os requintes e as mazelas das cortes européias.

            Ti Noel, o personagem de El reino de este mundo ( 1949), de Alejo Carpentier, volta de Cuba para seu país onde, diziam,  reinava a justiça depois de tantas injustiças. Caminhava ao acaso quando chegou ao palácio do Rei. Antes, havia visto negros, trabalhando sob o látego de outros negros. No palácio e seus jardins onde se erigiam terraços, pérgolas, estátuas, leões de bronze e onde corriam riachos artificiais, grande foi sua admiração ao constatar que todos os que aí se moviam eram negros: militares vestidos de branco, ministros de meias brancas, o cozinheiro com arminho no boné, o copeiro com correntes de prata, os atores, os lacaios, os músicos, as mulheres coroadas de plumas e seguindo a moda Império que lhes levantava o busto.

            Não havia, ainda, entendido bem o que estava vendo quando foi preso. Mais tarde, depois de nova escravidão, quando outra vez a revolta dos negros procurou justiça, Ti Noel pode possuir objetos daquele mundo feérico. O palácio foi saqueado e relógios, cadeiras, baldaquins, divans, lâmpadas, bacias passaram a ser propriedade daqueles homens e mulheres e crianças que até então mal possuíam o que vestir e o que comer. Ti Noel passou a ser dono do que pilhara: um  peixe embalsamado, presente da Real Sociedade Científica de Londres a Victor,  filho de Christophe, uma caixa de bombons de vidro verde e espesso, uma boneca vestida de pastora e três tomos da Grande Enciclopédia. Neles, Ti Noel se sentava para comer pedaços de cana de açúcar, ignorando usos e serventias de coisas que, certamente, pouco tinham que ver com a sua terra e com o seu povo.

            Na verdade, tampouco tinham que ver com a família do Rei. Ao fugir da invasão do Palácio, a Rainha, ainda usando sapatos de salto alto à moda francesa, torcera o pé. No dia anterior, diante da doença do Rei, ignorara a etiqueta real para se agachar na própria alcova onde ele repousava e vigiar a fervura de um cozimento de raízes posto para esquentar sobre um braseiro de carvão a lenha.

            Escravo dos brancos e escravo dos negros, Ti Noel se cansou dos homens e se cansou de ser homem.Usando de seus poderes, se transformou em ganso. Mas, quando quis ocupar um lugar no clã, foi hostilizado. E, hostilizado foi também pelas fêmeas, embora lhes mostrasse o lugar melhor para encontra as mais suaves raízes.

            Compreendeu que os anos passariam e que ele jamais seria aceito. Não lhe bastava ser ganso para acreditar que todos os gansos são iguais. Nenhum ganso conhecido havia cantado, nem dançado no seu casamento. Nenhum dos vivos, o tinha visto nascer”. Só restou a Ti Noel voltar a sua condição humana.

            Outro destino teve o Rei. Abandonado pelos súditos quis eludir-lhes a ira,  suicidando-se com uma bala de ouro. Seu belo uniforme, sua larga fita bicolor, símbolo  de sua investidura e todas as condecorações  que lhe enfeitavam o peito não o impediram de ser mortal.