Neste
mar de loas que vem se levantando para comemorar, em 1992, a chegada dos
espanhóis na América, entre vozes
esparsas, apenas uma voz oficial dissonante no Continente: a de Cuba. Como
todos os demais países americanos, teve sua terra dilacerada pela Conquista e
violentados os seus indígenas. Parece, ser, no entanto, o único país do
Continente que possui o dom de não esquecer e, principalmente, não deixar que a
História Oficial elimine as demais.
Sabe-se,
desde há alguns poucos anos, que o acontecido no passado pode ser contado ou
explicado ou entendido de várias maneiras. E que a narrativa histórica, quase
sempre, tem sido norteada por interesses bem específicos. Sobejamente
conhecidos são aqueles que nutrem a Histórica da América.
Este
fazer a História a seu bel prazer é o que constata o Amo, personagem de Concierto
barroco. Nascido e criado entre pratarias, na cidade do México, empreende
uma viagem ao Velho Mundo em busca das maravilhas que os antepassados lhe
contavam sobre as terras da Espanha. Seus olhos, acostumados às cores e à
exuberância do Novo Mundo, se detiveram
no “sujo”, no estreito, no apertado
de Madrid do século XVIII onde as pousadas lhe pareceram más e piores as
comidas, onde as feiras não lhe provocaram interesse por desanimadas, as lojas
por pobres e os jogos por lhe faltarem garra. A cidade triste, sem graça e pobre deixou sem utilidade o
dinheiro que levara para gastar. Aborrecido nessa terra de seus avoengos, parte
para Veneza onde os festejos carnavalescos atraíam gente de toda a Europa.
Na
cidade dominada pelo carnaval, onde somente as prostitutas não usavam máscaras,
o Amo vestido de Montezuma, participa da festa. Numa pausa, entre a balbúrdia
reinante e copos de vinho, encontra um frade compositor, Antonio Sachini a quem
conta a História da Conquista do México. O frade, já bastante alegre, acaba por
entendê-la assim: um rei de escorpiões
gigantes que tinha vivido há pouco tempo atrás, entre vulcões, templos e lagos
e dono de um Império que lhe fora arrebatado por um punhado de espanhóis
ousados com a ajuda de uma índia namorada do chefe dos invasores. Pensando na ciência dos cenaristas que
possibilitaria a presença de montanhas lançando fumaça, aparições de monstros e
terremotos e casas a se derruírem, para o compositor a história se mostrou
estupenda. A partir da visão que dela teve, de seu gosto e do interesse que o Novo Mundo provocava,
então, o libreto foi escrito, a música foi composta e a ópera colocada em cena.
Estarrecido,
o Amo vê desfilar, no palco, uma extraordinária
história que nada tem a ver com o que ele sabia ou pensava ter
acontecido no México, durante duzentos anos atrás. O cenário combinava ou
provocava desacertos usando os elementos
mais díspares e distantes. Os trajes, inspirando-se, uns no de Semirâmis,
outros nos dos personagens pintados por Ticiano ou nos dos próprios modelos espanhóis para vestir o Imperador dos Incas,
tornavam mais estranhos os personagens. Alguns que não haviam sido citados
pelos cronistas da conquista eram donos da trama que por sua vez albergava
ações e feitos nunca dantes relatados. Para finalizar, a felicidade de um
casamento e do perdão de Hernán Cortés que dilui o que havia de definitivamente
trágico no seu encontro com os povos do México.
O
Amo, indignado, no meio dos aplausos grita “falso”, diante do Compositor
espantado que vai, então, desenrolando explicações para cada mudança efetuada e
acaba perdendo a paciência e dizendo: Não
me aborreça com a História. Em matéria de teatro o que conta é a ilusão poética.
Mais
tarde, refletindo sobre a extravagante ópera que assistira, o Amo percebe o
quanto teria desejado um impossível desenlace: que o triunfo da luta ficasse
com os mexicanos. A seu criado, ele confessa: Eu tinha a impressão que o cantor estava representando um papel que me
pertencia e que eu, por molenga e tolo, tinha sido incapaz de assumir. E, de
repente, me senti como que fora de situação, exótico nesse lugar, fora de
lugar, longe de mim mesmo e de tudo o que é realmente meu.
A
História da Conquista que a Europa lhe oferecera, desfigurada, desrespeitada,
conduzira o personagem de Alejo Carpentier a uma auto-descolonização.
Afetivamente
e intelectualmente, ele passara a ser um homem do Continente.



