domingo, 2 de abril de 1989

O romper da lógica

            Dizia Tzvetan Todorov, em 1970, e, naturalmente, se referia à Literatura européia, que o fantástico – sonho ou paroxismo  da imaginação – é uma fissura numa ficção que mimetiza a realidade. Afirmação que se invalida diante dos contos fantásticos de escritores do Prata, nascidos entre 1935 e 1949. Neles, vão caber bruxas e vampiros, mortos que atuam, expressões de loucura, alterações da casualidade, seres que se transformam. Elementos que não provocam na realidade ficcional um fissura, mas se constituem momentos dessa realidade.

            No conto “La casa de brujas”de Roberto Iglesias Sicardi, a bruxa é, apenas, um dos elementos estranhos do conto. Loira, bico dos seios que se situam no antebraço, capaz de ler pensamentos, participa de conciliábulos  para onde se dirige montada numa vassoura. De Eduardo Mignona, Guillermo é personagem do conto que tem por título o seu nome. Ele é degolado pelo filho do patrão que leva sua cabeça numa bandeja para a festa de Natal. E, então, a cabeça fala. Em “Los muertos”, conto de Sylvia Lago, eles parecem jovens e perfeitos no cemitério onde dançam e se unem à mulheres para dançar e amar. Pelos do corpo que crescem e matam ou membros estranhos surgindo num corpo humano são manifestações psicológicas de desequilibrados e estãopresentes nos contos “De lamis y pythonicis mulieribus” e “Este lugar tan oscuro y tan solo”, respectivamente de Eduardo Gudiño Kieffer e Orlando Barone.  Depois de naufragar, o navio emerge com todas as luzes acesas e navega no conto de Alfredo Zitarroza “El desnaufragio”, divertida alteração da casualidade.

            Nas metamorfoses – homens transformados em animais, piano transformado em pantera – há uma forte presença de antropoformismo. Um gato que ri ou ratos que se vestem para um ritual se encontram nos contos “El robo”, “La octava nota”, “Aventura marítima”, “Las ratas” de Daniel Samoilovich, Morge de Paola, Elvio E. Gandolfo e Sylvia Lago.

            Um anti-natural alimentando duas linhas possíveis de um texto ficcional: a fuga da realidade e a acusação das mazelas dessa mesma realidade.

            Prisioneiros de seus conflitos interiores e da opressão. Opressão que existe, também, a  partir de uma situação exterior e que envolve, não somente o indivíduo, mas todo o grupo social. E expressa o que se poderia chamar do mundo reprimido do nós. Não apenas conflitos individuais, mas aqueles sofridos por toda uma coletividade. Nos contos mencionados, a opressão está representada pela pressão, aniquilação e neutralização de alguns indivíduos ou de um grupo de indivíduos.

            No conto “Las ratas”, há projetores de luz e um ritual de tortura comandado por ratos; em  “Guillermo”, um homem é morto com uma facada nas costas por um latifundiário bêbado e que se atribui o poder divino  na medida em que decide a morte do peão: porque para viver assim, sozinho no meio do campo, era preferível não viver.

            No entanto, a presença da bruxa num velho hotel e atuando com todos os seus poderes é menos estranha do que as condições de sua morte; as torturas ministradas pelos ratos são mais terríveis do que a constatação de seu antropomorfismo;  o assassinato de Guillermo, mais absurdo do que a sua cabeça decepada  falar com naturalidade.

            Num mundo que permite tais paralelismo, a leitura do conto fantástico exigiria também o conhecimento do contexto no qual ele foi elaborado. Contexto este, desconhecido  (ou tido por desconhecido) não somente dos europeus mas, também, ou sobretudo e pelas tão conhecidas razões,  dos próprios habitantes do Continente.
 

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