Em
1981, quando se realizou, em Paris, o Colóquio sobre o conto latino-americano,
falava-se, entre esperanças e dúvidas, da chegada de Haroldo Conti,
desaparecido de Buenos Aires por obra e graça da repressão que ali imperava.
Duas
décadas antes, seu romance Sudeste havia sido premiado pela Fabril
Editora, uma, entre as várias distinções que sua obra recebera.
Nascido
em Chacabuco, Argentina, em 1925, foi assistente de direção cinematográfica e
piloto civil antes de terminar seu curso
de Filosofia na Universidade de Buenos Aires. Autor de Todos los veranos,
Alrededor de la jaula, Con otra gente, em Sudeste ( Buenos Aires, Fabril Editora, 1969)
ele fala do delta do rio Tigre e
daqueles tipos que habitam as duas margens. Um mundo regido pelas leis da
natureza. Ciclo das águas e dos ventos. Luz e sombra. Inverno e verão, som rumores. Vozes de pássaros e murmúrio do rio.
Noite e luminosidades.
Boga,
o personagem, é feliz quando vive no rio. Num minúsculo barco, ele viaja, quase
sempre, sem destino, ignorando o tempo marcado pelo relógio e submetendo-se ao
frio e à força do sol nas mudanças das estações. Marcado o seu corpo pelos
elementos, é estranho a afetos ou se força a ignorá-los. Ao abandonar a solidão
– as circunstâncias assim dispuseram –
será destruído.
Sudeste narra
seus dias. E, assim como navega em meandros, assim a narrativa se arrasta. Detém-se
a registrar diálogos ou a cor dos dias, o tremer das águas. Para registrar
gestos e o movimento do peixe arrancado da água e debatendo-se na surpresa do
anzol.
O
mundo de Boga, entre areias, juncos,
água, peixe, vento é como se fosse um mundo a parte daquele outro no qual ele
teve que penetrar. Ao perceber a doença do homem com quem trabalha, ajuda a levá-lo para o hospital. E se vê
diante de uma das trágicas realidades do Continente: o encontro do trabalhador
que não ganha para o seu sustento com a Instituição que deveria atendê-lo.
- Bem, o que há, - o
médico perguntou à enfermeira, não a eles, a dotando esse pequeno tom impessoal
de funcionário público.
- E vou saber? – disse a mulher encolhendo
os ombros. Não consigo entendê-los.
-Falem vocês! – disse então o médico,
voltando-se para eles.
O Boga começou de novo, ainda mais lenta e
trabalhosamente, certo de que não iriam entendê-lo...
Sérgio Bianchi, um cineasta brasileiro, no
seu curta metragem “Divina Providência” de 1985, mostra como que uma imagem
desta cena. E ninguém ignora que ela pode ser igual a muitas e muitas outras,
iguais ou semelhantes,acontecendo nos desvãos do Continente.
Diante da incapacidade de comunicação de Boga,
seguem-se intenções de mofa por parte do médico, um inesperado ar de bondade lhe perpassa pelo rosto talvez
explicando o internamento apressado e sem diagnóstico entre enfermos que se levantaram como animais na espreita,
conduzindo a uma situação que se
prolonga sem causa ou explicações, ainda a dificuldade tristonha em deixar o
doente sozinho, e, também, a intenção de
incutir ânimo a quem já não mais entende o que se passa.
Breves
palavras do romancista; breves imagens do cineasta cristalizando um cruel
cotidiano que não consegue ser alterado pelos que dele sofrem as
incongruências, que não é percebido pelos que poderiam mudar-lhe as leis. Como diria Pablo Neruda: son campanas de madera las razones de los pobres.

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