domingo, 23 de abril de 1989

Imagens (quase superpostas)

            Em 1981, quando se realizou, em Paris, o Colóquio sobre o conto latino-americano, falava-se, entre esperanças e dúvidas, da chegada de Haroldo Conti, desaparecido de Buenos Aires por obra e graça da repressão que ali imperava.

            Duas décadas antes, seu romance Sudeste havia sido premiado pela Fabril Editora, uma, entre as várias distinções que sua obra recebera.

            Nascido em Chacabuco, Argentina, em 1925, foi assistente de direção cinematográfica e piloto civil antes de terminar  seu curso de Filosofia na Universidade de Buenos Aires. Autor de Todos los veranos, Alrededor de la jaula, Con otra gente, em Sudeste ( Buenos Aires, Fabril Editora, 1969) ele fala do delta   do rio Tigre e daqueles tipos que habitam as duas margens. Um mundo regido pelas leis da natureza. Ciclo das águas e dos ventos. Luz e sombra. Inverno e verão, som  rumores. Vozes de pássaros e murmúrio do rio. Noite e luminosidades.

            Boga, o personagem, é feliz quando vive no rio. Num minúsculo barco, ele viaja, quase sempre, sem destino, ignorando o tempo marcado pelo relógio e submetendo-se ao frio e à força do sol nas mudanças das estações. Marcado o seu corpo pelos elementos, é estranho a afetos ou se força a ignorá-los. Ao abandonar a solidão – as circunstâncias assim  dispuseram – será destruído.

            Sudeste  narra seus dias. E, assim como navega em meandros, assim a narrativa se arrasta. Detém-se a registrar diálogos ou a cor dos dias, o tremer das águas. Para registrar gestos e o movimento do peixe arrancado da água e debatendo-se na surpresa do anzol.

            O mundo  de Boga, entre areias, juncos, água, peixe, vento é como se fosse um mundo a parte daquele outro no qual ele teve que penetrar. Ao perceber a doença do homem com quem trabalha,  ajuda a levá-lo para o hospital. E se vê diante de uma das trágicas realidades do Continente: o encontro do trabalhador que não ganha para o seu sustento com a Instituição que deveria atendê-lo.

            - Bem, o que há, - o médico perguntou à enfermeira, não a eles, a dotando esse pequeno tom impessoal de funcionário público.
- E vou saber? – disse a mulher encolhendo os ombros. Não consigo entendê-los.
 -Falem vocês! – disse então o médico, voltando-se para eles.
 O Boga começou de novo, ainda mais lenta e trabalhosamente, certo de que não iriam entendê-lo...

Sérgio Bianchi, um cineasta brasileiro, no seu curta metragem “Divina Providência” de 1985, mostra como que uma imagem desta cena. E ninguém ignora que ela pode ser igual a muitas e muitas outras, iguais ou semelhantes,acontecendo nos desvãos do Continente.

Diante da incapacidade de comunicação de Boga, seguem-se intenções de mofa por parte do médico, um inesperado ar de bondade lhe perpassa pelo rosto talvez explicando o internamento apressado e sem diagnóstico entre enfermos que se levantaram como animais na espreita, conduzindo a uma situação que se prolonga sem causa ou explicações, ainda a dificuldade tristonha em deixar o doente sozinho, e, também,  a intenção de incutir ânimo a quem já não mais entende o que se passa.

Breves palavras do romancista; breves imagens do cineasta cristalizando um cruel cotidiano que não consegue ser alterado pelos que dele sofrem as incongruências, que não é percebido pelos que poderiam mudar-lhe as leis. Como diria Pablo Neruda: son campanas de madera las razones de los pobres.

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