domingo, 30 de abril de 1989

O brilho do rio

            O sol batendo no rio ou nas ruas de Buenos Aires. Mancha luminosa que acompanha a trajetória de Silvestre e Milo. Um, velho solitário de poucas falas; outro, solidão de adolescente de muitos silêncios.

            São dois seres que vivem de parcos recursos e de parcas comodidades numa casa de cômodos de um  Buenos Aires das décadas passadas cujos recantos provincianos são fixados em rápidas imagens. Pequenas descrições que acompanham a narrativa onde um minucioso e lento descrever mostra um zoológico de grades,  jaulas e de animais tristonhos. Neles a  mangusta , vindo quem sabe, das margens  dos rios africanos, sem saber o que fazer com as patas, a costumadas a uma existência errante, nem com os olhos habituados à complicada profundidade dos bosques. Espécie de cão, como aquele que Silvestre tivera um dia, puseram-lhe o nome de Ajeno. Foi o terceiro elemento de um triângulo de afetos estabelecidos a  partir de encontros casuais.

            De janeiro a julho, o tempo flui numa continuação do outubro anterior quando encontraram a mangusta pela primeira vez. Os dias encurtam e mudam de cor; o tom das folhas, caindo como chuvas a cada soprar mais forte do vento, não é o mesmo. Os cinamomos estavam amarelos, os plátanos, castanhos; o salgueiro tinha se reduzido a um esqueleto negro e retorcido que escorria umidade. Na cidade em que, juntamente com o verão, desaparecem as bancas dos melões e das melancias, Silvestre envelhece e gradativamente, vai perdendo as forças. No aprendizado da ausência, da solidão, obedecendo ao ciclo da vida, Milo cresce.

            A luz que envolve a paisagem e as pessoas e que envolve as copas  das árvores, como que anuncia os destinos. Silvestre com o rosto  na sombra, Silvestre escuro e quieto como uma das tantas sombras,  Silvestre, sombra suada que arrastava sua outra sombra. Milo correndo, pulando na luz, mergulhado na luz, olhando para a mangusta,  ainda no escuro da jaula.
Banhando-se em luzes e em sombras, sob céus nublados de inverno, sob essa cor solitária de outono ou no brilho quieto e transparente que tem as coisas em janeiro, são traçados os caminhos.

             Um deles, a morte de Silvestre. O outro, o da autodeterminação de Milo ao enfrentar a perda e compreender que o tempo em que haviam passado juntos não voltaria jamais. Essas tristezas e aquela, imensa, que reina entre as grades do zoológico não impedem que nas páginas de Al rededor de la jaula de Haroldo Conti, (Buenos Aires, Sudamericana,1967) perpasse um sutil frêmito de alegria. Como aquele que agita a mangusta quando sente a aproximação de Milo.

            Ou porque é a história de um adolescente que renasce, apoiando-se no carinho da mangusta ou porque forçando a jaula para libertá-lo entrelaça felicidade e liberdade. Ou, simplesmente porque Milo, o quase menino e a mangusta  livre do cativeiro podem contemplar, sem amarras, o rio ao amanhecer.

domingo, 23 de abril de 1989

Imagens (quase superpostas)

            Em 1981, quando se realizou, em Paris, o Colóquio sobre o conto latino-americano, falava-se, entre esperanças e dúvidas, da chegada de Haroldo Conti, desaparecido de Buenos Aires por obra e graça da repressão que ali imperava.

            Duas décadas antes, seu romance Sudeste havia sido premiado pela Fabril Editora, uma, entre as várias distinções que sua obra recebera.

            Nascido em Chacabuco, Argentina, em 1925, foi assistente de direção cinematográfica e piloto civil antes de terminar  seu curso de Filosofia na Universidade de Buenos Aires. Autor de Todos los veranos, Alrededor de la jaula, Con otra gente, em Sudeste ( Buenos Aires, Fabril Editora, 1969) ele fala do delta   do rio Tigre e daqueles tipos que habitam as duas margens. Um mundo regido pelas leis da natureza. Ciclo das águas e dos ventos. Luz e sombra. Inverno e verão, som  rumores. Vozes de pássaros e murmúrio do rio. Noite e luminosidades.

            Boga, o personagem, é feliz quando vive no rio. Num minúsculo barco, ele viaja, quase sempre, sem destino, ignorando o tempo marcado pelo relógio e submetendo-se ao frio e à força do sol nas mudanças das estações. Marcado o seu corpo pelos elementos, é estranho a afetos ou se força a ignorá-los. Ao abandonar a solidão – as circunstâncias assim  dispuseram – será destruído.

            Sudeste  narra seus dias. E, assim como navega em meandros, assim a narrativa se arrasta. Detém-se a registrar diálogos ou a cor dos dias, o tremer das águas. Para registrar gestos e o movimento do peixe arrancado da água e debatendo-se na surpresa do anzol.

            O mundo  de Boga, entre areias, juncos, água, peixe, vento é como se fosse um mundo a parte daquele outro no qual ele teve que penetrar. Ao perceber a doença do homem com quem trabalha,  ajuda a levá-lo para o hospital. E se vê diante de uma das trágicas realidades do Continente: o encontro do trabalhador que não ganha para o seu sustento com a Instituição que deveria atendê-lo.

            - Bem, o que há, - o médico perguntou à enfermeira, não a eles, a dotando esse pequeno tom impessoal de funcionário público.
- E vou saber? – disse a mulher encolhendo os ombros. Não consigo entendê-los.
 -Falem vocês! – disse então o médico, voltando-se para eles.
 O Boga começou de novo, ainda mais lenta e trabalhosamente, certo de que não iriam entendê-lo...

Sérgio Bianchi, um cineasta brasileiro, no seu curta metragem “Divina Providência” de 1985, mostra como que uma imagem desta cena. E ninguém ignora que ela pode ser igual a muitas e muitas outras, iguais ou semelhantes,acontecendo nos desvãos do Continente.

Diante da incapacidade de comunicação de Boga, seguem-se intenções de mofa por parte do médico, um inesperado ar de bondade lhe perpassa pelo rosto talvez explicando o internamento apressado e sem diagnóstico entre enfermos que se levantaram como animais na espreita, conduzindo a uma situação que se prolonga sem causa ou explicações, ainda a dificuldade tristonha em deixar o doente sozinho, e, também,  a intenção de incutir ânimo a quem já não mais entende o que se passa.

Breves palavras do romancista; breves imagens do cineasta cristalizando um cruel cotidiano que não consegue ser alterado pelos que dele sofrem as incongruências, que não é percebido pelos que poderiam mudar-lhe as leis. Como diria Pablo Neruda: son campanas de madera las razones de los pobres.

domingo, 9 de abril de 1989

O amor no tempo de Rosas

            José Mármol tinha trinta e quatro anos, estava exilado em Montevidéu, fugindo da ditadura de Rosas quando, em maio de 1851, publicou Amalia, “romance histórico americano”. Um sub-título que, não somente define a obra, como esclarece que existiu um tempo em que o termo “americano” nomeava, também, um espaço do sul do Rio Bravo.

            Como é sobejamente conhecido, o romance histórico inscrito no romantismo europeu – O Bobo de Alexandre Herculano, Ivanhoé de Walter Scott, O Corcunda de Notre Dame de Victor Hugo – inspira-se no mundo medieval.

            Na América, ele se volta para os primeiros habitantes do Continente (Iracema, O Guarani de José de Alencar, Cumandá do equatoriano Juan León Mera, Enriquillo do dominicano Manuel de Jesus Galván, Guatimozin da cubana Gertudris Gomes Avellaneda) ou por aqueles que trazidos a ferro vieram para habitá-lo ( A cabana do pai Tomás de Harriet Beecher Stove, Cecilia Valdes de Cirilo Villaverde).

            Mas, não foi a exótica descrição dos índios ou a crítica da escravidão, o tema do primeiro romance argentino e sim a história contemporânea.

            Embora usando tempos do passado o quê, segundo José Mármol, estaria em harmonia com a leitura das gerações vindouras, Amalia testemunha a história argentina daquele momento. Assim, ainda que o título da obra , como outros da época, seja um nome de mulher, a grande presença no romance é a ditadura. Entre as tantas do Continente, essa que submeteu a Argentina de 1829 a 1852 quando se digladiavam os “federais”, adeptos de Rosas e os “unitários” seus opositores.

            Entre eles se dividia a sociedade argentina. A “plebe ignorante”, o povo mais humilde, o pessoal de serviço serviam à Federação. A elite, constituída pelos intelectuais, pelas famílias tradicionais, pela “gente ilustrada e culta” era toda ela unitária. Chamados por Rosas de selvagens unitários, cada vez mais perseguidos e massacrados, muitos buscaram o exílio de onde pretendiam voltar, em breve, para combater.

            Numa tentativa de fuga para a outra margem do Rio da Prata, Eduardo Belgrano é ferido. Para escondê-lo e curá-lo levam-no para a casa de Amalia, jovem rica, bela e viúva. Na convivência diária e no sentir dos mesmos ideais, eles se apaixonam e acreditam poder ludibriar a polícia de Rosas. O cerco, porém, aumenta e Amalia se dispõe a partir também.

            Até o momento em que devem esperar para a travessia do Rio da Prata, vivem medos, sobressaltos, traições e, também gestos de lealdade.

            As delações e os  crimes se sucedem emoldurados pelas festas paroquiais em que o retrato do  ditador é conduzido em procissão pela cidade e pelas igrejas. Sobre Eduardo Belgrano paira a ameaça do punhal da Mazorca, a polícia de Rosas. Sobre Amalia, as tentativas de sedução de um federal. Para todos que são contra a Federação, o terror instaurado pela Mazorca que adquire as mais variadas nuanças. Desde grudar com piche o laço vermelho , insígnia federal, no cabelo das jovens unitárias, até apunhalar e degolar em praça pública.

            Antítese do obscurantismo ditatorial, as figuras luminosas de Eduardo Belgrano, guiado por ideais de pátria que a própria pátria impede de viver e Amalia que lhe segue os passos .

            Perfeitas figuras românticas que são pretextos para a que ditadura de Rosas se evada dos arquivos históricos e seja narrada num texto em que a ficção e o real se entrelaçam para comover e testemunhar. Sobre o tempo em que

            os pais tremiam pelos filhos, os amigos desconfiavam dos amigos e a consciência individual, censurando as palavras e as ações de cada um, inquietava o espírito, enchia de desconfiança o ânimo de todos.

domingo, 2 de abril de 1989

O romper da lógica

            Dizia Tzvetan Todorov, em 1970, e, naturalmente, se referia à Literatura européia, que o fantástico – sonho ou paroxismo  da imaginação – é uma fissura numa ficção que mimetiza a realidade. Afirmação que se invalida diante dos contos fantásticos de escritores do Prata, nascidos entre 1935 e 1949. Neles, vão caber bruxas e vampiros, mortos que atuam, expressões de loucura, alterações da casualidade, seres que se transformam. Elementos que não provocam na realidade ficcional um fissura, mas se constituem momentos dessa realidade.

            No conto “La casa de brujas”de Roberto Iglesias Sicardi, a bruxa é, apenas, um dos elementos estranhos do conto. Loira, bico dos seios que se situam no antebraço, capaz de ler pensamentos, participa de conciliábulos  para onde se dirige montada numa vassoura. De Eduardo Mignona, Guillermo é personagem do conto que tem por título o seu nome. Ele é degolado pelo filho do patrão que leva sua cabeça numa bandeja para a festa de Natal. E, então, a cabeça fala. Em “Los muertos”, conto de Sylvia Lago, eles parecem jovens e perfeitos no cemitério onde dançam e se unem à mulheres para dançar e amar. Pelos do corpo que crescem e matam ou membros estranhos surgindo num corpo humano são manifestações psicológicas de desequilibrados e estãopresentes nos contos “De lamis y pythonicis mulieribus” e “Este lugar tan oscuro y tan solo”, respectivamente de Eduardo Gudiño Kieffer e Orlando Barone.  Depois de naufragar, o navio emerge com todas as luzes acesas e navega no conto de Alfredo Zitarroza “El desnaufragio”, divertida alteração da casualidade.

            Nas metamorfoses – homens transformados em animais, piano transformado em pantera – há uma forte presença de antropoformismo. Um gato que ri ou ratos que se vestem para um ritual se encontram nos contos “El robo”, “La octava nota”, “Aventura marítima”, “Las ratas” de Daniel Samoilovich, Morge de Paola, Elvio E. Gandolfo e Sylvia Lago.

            Um anti-natural alimentando duas linhas possíveis de um texto ficcional: a fuga da realidade e a acusação das mazelas dessa mesma realidade.

            Prisioneiros de seus conflitos interiores e da opressão. Opressão que existe, também, a  partir de uma situação exterior e que envolve, não somente o indivíduo, mas todo o grupo social. E expressa o que se poderia chamar do mundo reprimido do nós. Não apenas conflitos individuais, mas aqueles sofridos por toda uma coletividade. Nos contos mencionados, a opressão está representada pela pressão, aniquilação e neutralização de alguns indivíduos ou de um grupo de indivíduos.

            No conto “Las ratas”, há projetores de luz e um ritual de tortura comandado por ratos; em  “Guillermo”, um homem é morto com uma facada nas costas por um latifundiário bêbado e que se atribui o poder divino  na medida em que decide a morte do peão: porque para viver assim, sozinho no meio do campo, era preferível não viver.

            No entanto, a presença da bruxa num velho hotel e atuando com todos os seus poderes é menos estranha do que as condições de sua morte; as torturas ministradas pelos ratos são mais terríveis do que a constatação de seu antropomorfismo;  o assassinato de Guillermo, mais absurdo do que a sua cabeça decepada  falar com naturalidade.

            Num mundo que permite tais paralelismo, a leitura do conto fantástico exigiria também o conhecimento do contexto no qual ele foi elaborado. Contexto este, desconhecido  (ou tido por desconhecido) não somente dos europeus mas, também, ou sobretudo e pelas tão conhecidas razões,  dos próprios habitantes do Continente.