domingo, 18 de dezembro de 1988

Todos os gatos são pardos

            Carlos Fuentes foi o galardoado de 1988 com o Prêmio Cervantes, recebido do rei da Espanha, em cerimônia realizada no dia 21 d abril, no Palácio do Oriente, em Madrid. Autor de vários romances, alguns traduzidos para o português e publicados no Brasil, escreveu, em 1970, uma peça de teatro, Todos los gatos son pardos que no mesmo ano foi publicada pela Siglo Veintiuno do México.   Antecedendo o texto, um prólogo do autor, explicando as razões que o levaram a escrevê-la: as palavras que lhe disse  Arthur Miller sobre a História da Conquista do México ( o encontro dramático de Montezuma,  um homem que tudo possuiu com outro, Cortez que nada tinha)  e o ter se deparado com uma expressão  de  Jacques Lacan (o inconsciente e o discurso do outro )  e,  as suas próprias interrogações que exigiram uma reposta que fez, então polifônica.

            Todos los gatos son pardos é um texto belíssimo de extraordinário potencial dramático que ensejaria ( até hoje não foi levado ao palco) uma extraordinária montagem: magníficas possibilidades de cenário e de guarda roupa, grande número de participantes e importante  envergadura dos personagens. E, principalmente, pelo tema conduzido por uma ação onde se intercalam momentos de ritmo lento com outros de grande agitação e dramaticidade.

            Um lugar qualquer às margens do mar do México, um acampamento espanhol, um templo indígenas, o palácio de Montezuma  são os diferentes espaços onde  se passa a ação. O esplendor das plumas nas vestes dos indígenas e dos metais nas couraças dos conquistadores, as frutas e as carnes, o grande animal estranho trazido pelo caçador completam o efeito plástico cuja exuberância é, as vezes, quebrada pela nudez dos personagens.

            Os personagens são muitos: Montezuma, os sacerdotes, os deuses, os magos, o jovem sacrificado,  o pastor, o caçador, o mercador; Cortez e seus capitães, algum soldados, Frei Olmedo e Malinche. Ora eles são rodeados por muitos figurantes ( guerreiros, albinos, corcundas, anões, donzela), ora na solidão ou, diante do outro, enfrentam seus fantasmas em  monólogos ou diálogos, verdadeiras sínteses dos sentimentos que nortearam a conquista e a entrega do Continente.

            E as vozes coletivas e os ruídos que acompanham a ação – choros, alaridos, arfares eróticos, sons de tambores e de choque de metais, relinchos de cavalos e zumbidos de gafanhotos – são, por si só, testemunho de como se fez essa conquista.

            Entremeando um discurso que procura entender ou procura explicar, a ação violenta, agressivamente expressiva: guerreiros que obedecem a Montezuma e apunhalam homens desarmados; soldados cristãos que destroem imagens indígenas e cortam as mãos dos emissários do rei inca.

            Se essa ação coloca em dúvida o uso de poder da elite indígena ou espanhola (daí o título da peça), na expressão do indivíduo – Malinche, Cortez, Montezuma, Frei Olmedo – ela enuncia uma História que sendo a dos submetidos é parte de toda a História do Continente.

domingo, 11 de dezembro de 1988

Das amadas

            Falar da amada em verso é descrever, recordar, imaginar. Chorar ausências, desejar. Querer que renasça.

            O corpo da amada é como se lírio fosse, diz Enrique Loynaz. E Pablo Neruda diz: “doce jacinto azul, pequena rosa”. Evocada, muda e pálida, em meio a uma noite de som e de perfumes como no “Nocturno”de José Asunción Silva. Mulher imaginária impregnando tudo –as paredes, o ar, os gerânios – com uma presença irreal e tão plena que provoca o  medo do encontro. Assim conta Lopes Vallencillos no seu poema “as vezes tenho medo de te encontrar na rua”. Também é sofrer da ausência irremediável como Amado Nervo ao longo dos anos que se seguiram à morte da amada. Ainda, como um demiurgo, dar vida à mulher como faz o poeta salvadorenho Roque Dalton: No dia em que morras te enterrarei nua, como quando nasceste de novo entre minhas pernas.

            Mas, falar da amada em versos significa também falar de si mesmo. De angústias e solidão, de desejos inefáveis. Voltar-se para si mesmo e aspirar encontrar-se ou encontrar no outro, na amada, as respostas da vida: amar é somente/  saldar contas / com o que e está mais longe, escreve, temeroso, Teobaldo Noriega.

            E, nesses sentires todos, aqui e ali, no Continente, surge o olhar para além do próprio sentir. Mario Benedetti explica: uma nova linguagem mediante novas maneiras de assumir não somente o amor mas também uma realidade que inclui o amor.
            E, então, Roberto Fernández Retamar, nascido em Cuba, em 1930. Seu poema “Con las mismas manos” se inicia com um verso em que  o elemento erótico-afetivo se entrelaça à uma ação voltada para o dever do homem: Com as mesmas mãos que te acaricio estou construindo uma escola. Nos demais versos, imagens de homens do Continente que esperam um futuro. Diante deles, o poeta para registrar: cheguei quase ao amanhecer, com o que pensei  seriam roupas de trabalho. Os outros, em farrapos, já o esperavam. Não dormem mais sob as pontes ou sob as soleiras. Estão construindo uma escola e não sabem ler.

            Um poema em que se misturam as verdades. A dos que trabalham e cansam. A verdade de um eu que ao compartilhar com os deserdados o trabalho e a refeição, passa a ter os olhos iluminados: Que longe estávamos das coisas verdadeiras, amor, que longe!            Um refletir, um trabalhar que é caminho para a mulher amada. Mulher amada que não se constitui um universo inteiro mas faz parte dele. E numa dimensão em que tão importante quanto amar a amada é guardar a coerência com a própria visão de mundo. Os versos se repetem: Não há momento em que não pense em ti / Hoje talvez mais, e enquanto ajudo a construir esta escola com as mesmas mãos que te acaricio.

domingo, 4 de dezembro de 1988

De ofertas e recusas

            Quando, no Brasil, se publicava Macunaíma, Francisco Espínola escrevia seus primeiros contos. Autor de um romance, hoje um clássico da Literatura Uruguaia, Sombras sobre la tierra e de um livro infantil, Saltoncito, também já um clássico no gênero e de um livro de contos, Cuentos completos ( Montevidéu, Arca,1993). Entre eles,  alguns  se constituem páginas definitivas da Literatura do Continente. Narrativas que se constroem a partir de um eixo: o homem do campo, o criollo uruguayo, um ser humano, encerrado nos seus valores, herança gaúcha que avança no tempo e norteia as ações. Inseridos num universo, fixado em rituais (  a marcação, o enterro) por vezes apenas esboçados num espaço fechado ou na paisagem, são tipos que se definem diante de situações extremas – quando as escolhas surgem de um movimento da alma.

             O homem pálido que chega ao rancho para roubar, diante de Elvira, de seus olhos de um olhar tão doce, tão leal, tão triste, perde a ferocidade. Mata o companheiro para impedir que lhe advenha algum mal; arrombando a porta do quarto na casa da fazenda solitária, os ladrões se deparam com Amélia em trabalho de parto. Tentam ajudar e fogem, não sem antes mandar em busca de vizinhos para socorrê-la; por se sentir desonrada, Maria del Carmem se suicida e o preço  de sua vida é pago com a vida do sedutor: o pai da moça ofendida o apunhala diante de todos. O pai desse nova vítima não reage.  O ritual se cumprira.

            Em meio a esses personagens submissos as suas paixões e as suas verdades, sobressai Rodriguez, personagem título do último conto da coletânea. Brevíssima cena que retoma um tema de tradição judaico-cristã: a Tentação, situando-a em pleno campo e tendo como personagens um gaúcho e o Tentador.

            Foi numa noite de lua iluminando o campo que os dois se encontraram. Rodriguez ( o gaúcho) e o outro que o esperava atravessar o Passo. Voz melíflua, olhar que se humilha diante do olhar do outro. E a voz e o gesto ofertando,  eis o Tentador. Rodriguez, desinteressado, logo aborrecido por tantas palavras, ouve, sem dar resposta, as ofertas: a submissão de mulher desejada, o ouro, o poder que também é bom. E segue o gaúcho no trote, indiferente ao outro que diante de tal silêncio como que havia perdido a fala. Mas, reagiu, exibindo, para convencer, o seu poder: transformou o cavalo negro que montava, em cavalo branco; transformou um galho em víbora, transformou seu cavalo em bagre. Fê-lo dar voltas em torno de Rodriguez que seguia no trote pois bagre, por maior que fosse, não representava perigo para o seu cavalo.

            O Tentador ainda insistiu, chamando a sua atenção para as suas incríveis proezas. Conseguiu a indiferente resposta: Isso? É mágica!  E, então, viu Rodriguez afastar-se sob a luz da lua, deixando para trás possibilidades de riqueza, de sedução e de poder. Imperturbável. Incorruptível...

            Bela história para contar e recontar no Continente!