domingo, 23 de outubro de 1988

Crônica de uma morte anunciada

            Já há alguns meses exibido nas telas européias, o filme baseado na obra de Gabriel García Márquez, Crônica de uma morte anunciada.

            Publicado após um silêncio de seis anos e lançada como objeto de consumo, haja visto o imenso aparato publicitário que o cercou antes e no momento de sua aparição, é um romance que somente admite uma leitura ininterrupta.

            Dizer isto, aliás, até pode causar estranheza pois foi dito tantas vezes - e já é lugar comum repetir -  que é um livro que se inicia desvendando o seu final: No dia em que o iriam matar, Santiago Nasar se levantou às cinco e trinta da manhã... Nada mais preciso, então, do que o título dessa narrativa de fatos presenciados por outros que não o narrador que apenas recompõe, vinte e sete anos depois, o que lhe é contado.

            A morte anunciada no título e nas primeiras linhas da narrativa é a de Santiago Nasar. Duas horas antes de que se levantasse para assistir à chegada do bispo na cidade, já era voz corrente a ameaça que pesava sobre ele. Concretizada, morreu na condição de um triângulo amoroso que ele próprio ignorava, em nome de uma honra que não foi ofendida, pelas mãos de quem, verdadeiramente, não desejava matar e diante de uma pequena cidade atônita.

            Da narrativa cronológica de seus passos, na explicação de cada uma de suas omissões e verdades, se entremeiam as informações sobre o assassinado ( jovem, rico, religioso, caçador, mulherengo, habituado ao sangue dos bezerros que castrava) e sobre os tipos que o rodeiam, figuras imutáveis que a Literatura recria e torna a recriar ( Balzac e Eça) e que, de repente, ou repetidamente, a vida faz existir e a sociedade atuar: o delegado, o padres, o militar, a prostituta, o prefeito, a criada, a mãe, a noiva. E sobre as outras duas figuras, partes do triângulo que, talvez, tenha existido. São tipos que sobressaem em meio a outros quarenta. Todos eles apresentados nominalmente, alguns pela sua função na narrativa, outros pela sua função  na micro-sociedade do pequeno povoado. Com exceção dos dois personagens masculinos principais, os outros se definem por uns poucos traços, umas poucas palavras e, principalmente, por suas ações: o general Petrônio San Román, usando o barco de cerimônias do Congresso Nacional para ir ao casamento do filho; as famílias colocando os enfermos na passagem do bispo para receber a bênção e curar-se; a exibição do lençol na manhã seguinte à noite de núpcias.

            Mais do que nada, são a cristalização de uma sociedade tradicional onde as autoridades, as crenças, os costumes não apenas se prestam, mas até exigem um traço mais forte, caricatural como  o aparecimento, na autópsia, de uma medalha da Virgem do Carmo que Santiago Nasar havia engolido aos quatro anos, entre o lodo do conteúdo gástrico.

            Construído em idas e vindas, num ritmo circular, aparentemente, lento porém cheio de surpresas, Crônica de uma morte anunciada parece ter sido escrito para a linguagem cinematográfica. Se essa linguagem conseguir, como o romance, diluir o trágico que seria a inocência de Santiago Nasar e se permitir a emergência do cômico estará fiel à intenção primeira de uma obra que se presta ao riso.

            Ao espectador caberá, como coube ao leitor, entender esse riso que está longe de ser inocente.

domingo, 16 de outubro de 1988

Diana Morán: entrelaçar de amores

            No início de 1987, morria na cidade do México onde vivia exilada, a poetisa Diana Morán. Deixara inédita uma tese de doutoramento, apresentada em 1979 no Colégio de México, que foi publicada pela Universidade Autônoma Metropolitana, após sua morte: Cien Años de soledad, novela de la desmitificación é um trabalho crítico ente os melhores que trataram da obra de Gabriel García Márques não somente pela firme e rigorosa análise como por ter se afastado de caminhos críticos já trilhados.

            O estudo do que a autora chama de imagens primárias – nascimento, desenvolvimento e morte – é o ponto de partida de sua pesquisa que enfocará o tempo, o espaço, os personagens, elementos integradores do romance. O enclausuramento dos personagens e o isolamento de Macondo levaram a pesquisadora à constatação de que no romance está, implicitamente, contida a condenação do individualismo e da incomunicação, causadoras do desgaste progressivo que aniquila a família Buendía e o espaço em que vivem.

             Desde muito jovem, como profissional e como cidadã, Diana Morán comprometeu-se com o destino de seu povo. Um compromisso que lhe norteou os atos ao longos dos anos, fazendo da poetisa o reverso das figuras que analisou na ficção   e lhe conferindo um lugar de destaque no Continente.

            Professora, poetisa, figura proeminente nos movimentos nacionais e socialistas panamenhos e latino-americanos, nunca esteve à margem do que se passava a seu redor. Sua poesia amorosa como aquela de Pablo Neruda, esteve sempre entrelaçada a uma preocupação social .

            Em “ Eva difinida”, seu primeiro poema longo, publicado em 1957, se misturam as mais perfeitas sensações femininas e um ideário de lutas. Compõe-se de dez poemas de estruturas diversas que introduzem o espanhol panamenho numa expressão lírica em que a mulher se nutre de um amor-seiva que pacifica  e alimenta: “de tua silvestre pele de hortelã-pimenta / brota a aurora da pátria pura” (poema II); “Ah! Simbiose de pátria e beijo” (poema VI); “Início de minha luz foram tuas mãos / tuas amplas mãos...latitude de pátria”( poema IX). Mesclas de sensações e sonhos aninhados num ser feminino que não se alheia na felicidade da mulher desabrochada mas vive também para a esperança de chegar ao tempo da farinha comum/ da terra prometida ( poema IV).

            Diana Morán viveu com os olhos fixos num horizonte que no Continente é, muitas  vezes, distante e noutras tantas inatingível,  para conseguir apenas o direito de retornar à sua terra. Após dezoito anos de exílio, morta, volta para nela ser enterrada. Concessão, talvez, pequena e pouca para quem legou ao Panamá um momento ímpar da poesia latino-americana que se inscreve, belíssima, no amor e no construir do Continente.

domingo, 9 de outubro de 1988

Para pensar o 12 de outubro

          Da conquista da América sabe-se de atos heróicos. Extraordinárias ações que submeteram mil seres, destruíram outros tantos e que foram imortalizadas em monumentos e pinturas e textos, cantando loas ao domínio que, então, foi estabelecido no Continente.

         Da multidão  que acompanhou os executores da vontade real, pouco se conhece. Do cotidiano, anseios e tristezas desses homens que a península ibérica, exaurindo-se relegou,  tudo se ignora.


          E a História se conta sem as nuanças da vida, sem os detalhes do dia a dia. Abstrata. Fria. Impessoal. Para que os que a fizeram possam viver, para que nos convençam de que viveram é preciso buscá-los na Literatura. A História da Conquista da América é ajudada a se reconstituir  com a leitura dos romances e, entre eles, Supay el Cristiano, Cien gotas de sangre y docientas de sudor, El hombre que trasladaba las ciudades de Carlos Droguett, romancista chileno.  Baseia-se em documentos  e imagina as esperanças e as desilusões dos que vieram para conquistar e destruir.

      No terceiro volume da trilogia, El hombre que trasladaba las ciudades, a presença desses conquistadores será fixada em rápidos traços: mãos cuidadas e envelhecidas, rosto golpeado e velho. A presença dos soldados e dos índios serão indicadas por ações: derrubar árvores, serrar madeiras, desembainhar espadas.

          No ar, os ruídos do Continente a se misturar aos ruídos dos recém-chegados. Da natureza são os sons do bosque, das cascatas, da chuva e do vento. São as vozes dos animais: o cantar dos pássaros, o grasnar dos abutres, o zumbir das moscas. Com a chegada dos conquistadores, a essas vozes se acrescentarão o ladrar dos cães, o relinchar dos cavalos e os muitos tons das vozes humanas. Serão acompanhadas pelos ruídos dos homens no seu labutar; golpes de martelo, ranger das carretas, ruídos das ferramentas e dos disparos perdidos. Em meio a esse novo universo de sons, o barulho das espadas e armaduras que se punham e se tiravam.

           Das páginas desse mundo ficcional, emergem os cenários do Continente, as lutas e o sofrimento dos homens que, embora estejam calcados em textos oficiais, se desvencilharam do esquecimento e da cristalização que o tempo lhes havia conferido.

          Nesse desvencilhar do tempo, obra do romancista, a Conquista se povoou de homens semelhantes aos de hoje. Uma aproximação que não leva ao culto dos heróis - talvez, nem houvessem existido -  nem à lástima das vítimas, embora essas, sim, tenham sido reais. Certamente,  à reflexão  que não convém esquecer   pois  em nome das verdades consideradas perfeitas, a conquista também semeou a destruição e a morte – árvores, animais, seres humanos – no solo do Continente.

domingo, 2 de outubro de 1988

Verdina, um conto de sempre

            Acaba de sair, pela Mercado Aberto, de Porto Alegre, a segunda edição de Contos de sempre de Aldyr Garcia Schlee

            Nascido em Jaguarão, às margens do rio que separa as terras brasileiras das uruguaias, ele é autor de contos que fazem reviver esse gaúcho da fronteira que mais se integra nos campos imensos  que no espaço dos limites oficiais.

            Contos de sempre se compõem de dois grupos de narrativa: “Os de ontem”, episódios das lutas travadas no território disputado pelos portugueses e espanhóis e “Os de hoje”, situados no mesmo espaço geográfico, hoje parte do território rio-grandense. Os personagens, como se fossem sempre os mesmos. Na segunda parte, degradados pelo passar do tempo e pela perda de seus valores.

            Entre as doze narrativas, sobressai, como peça valiosa e única, a primeira da coletânea: “Verdina”. Embora inusual, um nome que anuncia o personagem feminino que, também inusualmente, aparece na narrativa e na vida do gaúcho Pedro: Uma negra de olhos azuis chamada Verdina. E um cumpridor de nome Pedro. Ela, de certo, filha de patrão ou patrãozito do outro lado do rio, filha de mucama manceba do dono, de olhos azuis; ele, sozinho com o rancho, o cavalo, com a divisa que levava no chapéu – sozinho como órfão, como guaxo e como agregado. E o campo verdiando em volta, iluminado de sol e de vida.

            Presença feminina que se agranda pelos olhos e pelo sentir do gaúcho. E, a partir dessa presença, também a ausência e uma solidão que aumenta. Enorme, enexpugnável nesses dois seres sós em que todas as palavras são sepultadas por prudência, por orgulho, consciência de classe e racismo que irão congelar os anseios do homem.

            A narrativa acompanha umas poucas horas – as mais densas, talvez as mais luminosas e cruéis da vida de Pedro e, habilmente, entrelaça o passado e o presente. Passado que se faz presente pela força das emoções. Presente que nas sensações irá se prolongar para sempre. O passar do tempo e a distância percorrida, indicados por uma ação sem  verbos:  os corpos unidos no galope, no trote, na marcha, no galope e no trote, na marcha, no passo....

            Depois, simultâneo com a ação, o dar-se conta do que acontecia, do que lhe acontecia. Pedro, na medida que desensilhava o cavalo, que o libertava dos arreios, ia, ele próprio, se desnudando diante de si mesmo, compreendendo-se entregue. Entrega, porém, que ele não se permite, mesmo vendo a dança amorosa do casal de bem-te-vis no ar e mesmo vendo de perto a cova de  um casal de corujinhas do campo. Embora com o peito apertado, ele recusa o destino sem a solidão.

            Da mulher, de Verdina, pouco se diz: de seu jeito de ser fêmea, de seus olhos: mais  que vermelhos de choro, uns olhos que sorriem, se escondem, se levantam brilhantes na linguagem da conquista.

            “Verdina”, sete páginas emarcadas no primeiros anos da História do Rio Grande do Sul -  e as mortes pela degola, e as lutas, e o destino das mulheres – criando um momento de raro valor na Literatura do Continente. E dois seres que mais do que símbolos de uma época significam o eterno desencontro que pode acontecer entre um homem e uma mulher.