Já
há alguns meses exibido nas telas européias, o filme baseado na obra de Gabriel
García Márquez, Crônica de uma morte
anunciada.
Publicado
após um silêncio de seis anos e lançada como objeto de consumo, haja visto o
imenso aparato publicitário que o cercou antes e no momento de sua aparição, é
um romance que somente admite uma leitura ininterrupta.
Dizer
isto, aliás, até pode causar estranheza pois foi dito tantas vezes - e já é
lugar comum repetir - que é um livro que
se inicia desvendando o seu final: No dia
em que o iriam matar, Santiago Nasar
se levantou às cinco e trinta da manhã... Nada mais preciso, então, do que
o título dessa narrativa de fatos presenciados por outros que não o narrador
que apenas recompõe, vinte e sete anos depois, o que lhe é contado.
A
morte anunciada no título e nas primeiras linhas da narrativa é a de Santiago
Nasar. Duas horas antes de que se levantasse para assistir à chegada do bispo
na cidade, já era voz corrente a ameaça que pesava sobre ele. Concretizada,
morreu na condição de um triângulo amoroso que ele próprio ignorava, em nome de
uma honra que não foi ofendida, pelas mãos de quem, verdadeiramente, não
desejava matar e diante de uma pequena cidade atônita.
Da
narrativa cronológica de seus passos, na explicação de cada uma de suas omissões
e verdades, se entremeiam as informações sobre o assassinado ( jovem, rico,
religioso, caçador, mulherengo, habituado ao sangue dos bezerros que castrava)
e sobre os tipos que o rodeiam, figuras imutáveis que a Literatura recria e
torna a recriar ( Balzac e Eça) e que, de repente, ou repetidamente, a vida faz
existir e a sociedade atuar: o delegado, o padres, o militar, a prostituta, o
prefeito, a criada, a mãe, a noiva. E sobre as outras duas figuras, partes do
triângulo que, talvez, tenha existido. São tipos que sobressaem em meio a
outros quarenta. Todos eles apresentados nominalmente, alguns pela sua função
na narrativa, outros pela sua função na
micro-sociedade do pequeno povoado. Com exceção dos dois personagens masculinos
principais, os outros se definem por uns poucos traços, umas poucas palavras e,
principalmente, por suas ações: o general Petrônio San Román, usando o barco de
cerimônias do Congresso Nacional para ir ao casamento do filho; as famílias
colocando os enfermos na passagem do bispo para receber a bênção e curar-se; a
exibição do lençol na manhã seguinte à noite de núpcias.
Mais
do que nada, são a cristalização de uma sociedade tradicional onde as
autoridades, as crenças, os costumes não apenas se prestam, mas até exigem um
traço mais forte, caricatural como o
aparecimento, na autópsia, de uma medalha da Virgem do Carmo que Santiago Nasar
havia engolido aos quatro anos, entre o
lodo do conteúdo gástrico.
Construído
em idas e vindas, num ritmo circular, aparentemente, lento porém cheio de
surpresas, Crônica de uma morte
anunciada parece ter sido escrito para a linguagem cinematográfica. Se essa
linguagem conseguir, como o romance, diluir o trágico que seria a inocência de
Santiago Nasar e se permitir a emergência do cômico estará fiel à intenção
primeira de uma obra que se presta ao riso.
Ao
espectador caberá, como coube ao leitor, entender esse riso que está longe de
ser inocente.




