sábado, 16 de janeiro de 1988

Eu, o supremo: da epopéia ao burlesco

            Editado em 1974 pelo Siglo XXI de Buenos Aires, Yo el  supremo de Augusto Roa Bastos ( Paraguai, 1917)  foi traduzido por Galeano de Freitas e publicado pela Paz e Terra.  Em 1959, seu romance Hijo de Hombre recebia o   Primeiro Prêmio do Concurso Internacional Losada e, em 1961, o Primeiro Prêmio Municipal de Buenos Aires. Em 1965, em tradução de Marlene de Castro Correa, foi publicado pela Civilização Brasileira. A revista Status, no seu número especial  11/A, publicou uma antologia do conto latino-americano. De Augusto Roa Bastos foi o conto “La tijera”( A tesoura) do livro El Baldio publicado em 1966. Eis o  que o leitor brasileiro, de sua obra, pode conhecer, em português. Hoje, o  escritor paraguaio leciona Literatura na França onde prolonga um exílio de mais de trinta anos, a maior parte passados em Buenos Aires. Como poeta, seu primeiro livro, El ruisenõr de la aurora data de 1942, quando estreou, também, com o romance Fulgencio Miranda. Em 1945, publica Mientras llega el dia (teatro) e seu primeiro livro de contos, El trueno entre las hojas.

            Yo el supremo  foi publicado no mesmo ano que El recurso del método, isto é, um ano antes do aparecimento de El otoño del patriarca. Embora geograficamente tão afastados uns dos outros, as motivações de Roa Bastos, Alejo Carpentier e Gabriel García Márquez, ao se interrogarem sobre os detentores do poder são bem óbvias. E tanto que até pode ser considerado estranho que os demais países da América Latina ainda não possuam os seus déspotas imortalizados pelo ridículo como foi o ditado Francia no livro de Roa Bastos ou pelo  estigma ferro em brasa que é o romance de Miguel Angel Astúrias em que o ditador Estrada Cabrera é o não nomeado Presidente. Porque no dizer de Alejo Carpentier, em entrevista a Any Bourrier, publicada n’ O Globo de 23 de julho de 1979,os países do Caribe tinham tido, até então,vinte e sete ditadores e, cada país do Continente, uns vinte cada um. Assim, quando cria o seu ditador, ele é um amálgama de quatro deles:Estrada   Cabrera, Porfírio Dias, Guzman Blanco e Gerardo Machado.

            O livro do autor paraguaio trata de José Gaspar Rodriguez de Francia (1814-1840) o r aro (haverá outros?) governante que nos temos modernos assumiu oficialmente a ingrata designação, como diz Décio de Freitas, de ditador.

            Sob a forma de ensaio ou romance, se lhe cabem, ou não, todas as classificações eventadas pelo tradutor ou se é, simplesmente, inclassificável, no momento,  parece ser de somenos importância. Longo monólogo ( e poderia ser de outro modo? ) do ditador: memórias, circulares perpétuas, anotações no caderno particular, pesadelos, alucinações, lembranças difusas  aos quais se inserem outras vozes: a do pai, a de seu secretário Policarpo Patiño, a de seu cão, a de uma caveira falante, a de André-Legar. Um caminhar de idas e vindas pra o tempo que já foi, que é, que sempre será: exploração estrangeira na América, alianças políticas, história fantasiada ou fantasia histórica ( a verdade é importante?),  evangelização. O fantástico, o real ( ou, igualmente fantástico?), o testemunho, a ficção. Leitura imprescindível. Pelo prazer do texto. Pelo que nos leva à reflexão mais do que nunca necessária, que mais não seja, sobre a prática do poder; sobre o ofício do escritor, sobre a ambigüidade da linguagem. De como a tirania esquematiza a educação, anula a cultura para fortalecer o seu poder e se auto-justifica na delegação da vontade de um povo livre, independente e soberano; de como o poder tem por base a ignorância e a mansidão do povo e o medo, de como se acompanha de guardas, tambores, oficiais e armas para esconder o seu verdadeiro rosto. E nas inquietudes do tirano, as interrogações/afirmações sobre a Literatura, sobre o escritor. Escrever não significa converter o real em palavras mas sim fazer com que a palavra seja real. O irreal só está no mal uso da escritura. Diante dos pasquins (discutem seus atos?) e dos rumores (expressam esperança de ver chegar o seu fim?) Doutor Francia define, sarcasticamente, os que vão defender a verdade: Corrompidos corruptores.Vadios. Malandros. Truões, rufiões da letra escrita.. E na diatribe contra o estilo de Patiño (Labiríntico beco empedrado de aliterações, anagramas, idiotismos, barbarismos, paranomásias da espécie paróli/parulis: imbecis anástrofes para deslumbrar a invertidos imbecis que experimentam ereções sobre o efeito das violentas inversões da oração [...], está contida, também, aquela que dirige aos plumitivos e que nada mais é do que a desmitificação de  uma língua morta. Que, aliás, ele revive por um uso incomum ao pontilhar as suas circulares perpétuas, seus cadernos particulares, seus diálogos de um vocabulário onde se mesclam termos do mais puro vernáculo, termos específicos de zoologia, neologismos, termos populares e guaranis. Ou, ao elaborar combinações inesperadas de palavras num emprego inusitado que lhes confere novos significados.

            Do narrador (narradores) de Hijo de Hombre ao narrador (narradores ) de Eu o supremo há uma distância. Como se Miguel Vera (memórias, diário e/ou o narrador onisciente dos capítulos pares) narrasse uma saga. Importante por ela mesma:clamor contra a opressão em que vive o povo paraguaio. O narrador de Eu o supremo volta-se para si mesmo, se recita, se explica, repudia os textos de seus biógrafos, dos historiadores numa dialética verdade/invenção que pode ser  definida como a dialética da burla.

            Da grandeza de um Cristiano Jará de Hijo de hombre para a miséria do Ditador perpétuo; da linguagem que faz de pobres vítimas, heróis àquela que destrói o ditador todo-poderoso; da criação de belas figuras de retórica à recriação trocista de significados. Há um passar da epopéia para o cômico. E, diante da imensidão dos fatos, um mundo injusto que é o cotidiano de uma grande parte dos latino-americanos hoje, este cômico burlesco que passou a ser uma presença na Literatura Latino-americana é uma opção. Opção na qual Eu o supremo é um dos grandes momentos: burla corrosivo dos conceitos tradicionais, das verdades eternas, do saber inconteste.

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