domingo, 30 de agosto de 1987

De algumas inquietações femininas


             Em La Paloma, uma pequena praia do Atlântico, chega a mulher no dia do seu quadragésimo nono aniversário. Na casa alugada com vistas para o mar denso e azul, chega para uma pausa que lhe permita refletir no momento em que se dá conta ser indispensável estudar porque a vida nos conduz,  efetivamente, com mão suave mas firme, para uma época em que estamos demais sobre a terra. Chega para, entre os quadros que pretende pintar e a monografia sobre Manet que pretende escrever, realizar o aprendizado da solidão.

            Diante dela, cento  vinte dias nos quais pretende enfrentar  essa solidão que teme, tanto quanto as reuniões de família. Opção e aceitação, dois pólos de um novelo de ambigüidades que tentará desfazer.

            Nas inquietações e questões expressas por uma voz feminina, a solidão adquire matizes: envolve a mulher que, ao se tornar viúva, perde, também o amante, agora temeroso de envolvimento e compromissos outros; torna-se vulnerável aos assédios masculinos que não levam em consideração a vontade feminina; ou, simplesmente, se dissolve ou se aguça diante das necessidades filiais que também ignoram quaisquer desejos de isolamento e dispõem, a seu bel prazer, do tempo materno. 

            Vivendo entre as filhas que a surpreendem em meio a esse veraneio que deseja reflexão e trabalho, entre as eventuais e despretenciosas conversas com as pessoas do lugar, vai registrando, dia a dia, as suas considerações. Sobre o significado do envelhecimento para a mulher, o que pode ou não se permitir: expor o corpo? Conceder-se um relacionamento amoroso com um homem mais jovem? Pensar naquilo a que se dedicou  (amor, amores eventuais, sucessos profissionais, apenas  rede ou para quedas para as filhas) no longo espaço de tempo transcorrido ?

            Nesse registro cabem, também, as questões sobre a difícil arte de conviver com a família. O egoísmo  das gerações, cada qual a lutar por seus próprios valores que, finalmente, parassem ser, sempre, apenas materiais. Discussões, silêncios, reprovações que se sucedem nas reuniões consideradas obrigatórias e em que à euforia inicial se alongam as recriminações e, sempre, o desejo de partir.

            Entremeadas, e, por extensão, as constatações sobre a classe social a que pertence (pertenço a essa classe social da qual saem os cônsules, os embaixadores, os adidos culturais) e da qual tem uma idéia muito clara. Seja para perceber suas incongruências, impertinências, hipocrisias e ridículos, seja para , nela inserida, situar-se entre os demais – para ela, certamente inferiores – e julgá-los quando reagem de forma diferente daquela a que está acostumada.

            Escritora dos dramas (pequenos) da assim chamada burguesia Argentina, Silvina Bulrichneste seu romance, Mañana digo basta, como nos inúmeros outros que escreveu representa no panorama da uma Literatura alimentada, sobretudo, por textos assinados por nomes masculinos, um momento, uma voz impecavelmente feminina para a expressão dos temores e inseguranças.

            Publicado em 1968,  pela Sudamericana de Buenos Aires ( a edição brasileira Amanhã digo basta, da Record apareceu sem data), Mañana digo basta em 1975 já havia alcançado a décima quinta edição. Exito que não foi uma exceção entre as demais obras da autora. Ao falar sobre  esse  seu romance, Silvina Bulrich diz que nele  tudo está contado com dissimulação num tom ligeiro; embora aborde problemas graves. Na verdade, mundano e macio é o tom, salpicado, apenas, de leves ironias. Perfeito para a expressão dos temores e inseguranças daquela minoria que nos longos verões  à beira mar pode se dedicar a buscar-lhes as razões. Então,  Mañana digo basta, poderia propiciar uma leitura lúdica, não isenta de momentos que espelham certezas e dúvidas de uma geração, de uma classe.  Sobre  os que não possuem e nunca possuíram privilégios, os temores e inseguranças sempre advém de circunstâncias – ou desemprego, ou doenças, ou falta de aceitáveis condições de vida – das quais não podem escapar e com o agravante de que, tampouco, lhes    são dadas esperanças de soluções apropriadas nada foi dito. Os problemas graves que o romance  aborda, cabe, então,  ao leitor percebê-los.

             Quem sabe,  nas entrelinhas.

             

 

 

 

 

 

 

 

 

 

           

domingo, 23 de agosto de 1987

Das origens


            Há muitos anos, já Ricardo Latchamn falava do nosso grande continente mestiço, expressão que inspirou o título de um livro de Mario Benedetti: Letras del Continente mestizo (Arca Montevidéu, 1967, 1970). Ao endossar-lhe a expressão, Mario Benedetti o faz perfeitamente convicto de que a mestiçagem da América Latina, certamente, contribuiu para a riqueza de seus temas, de seus enfoques, de seus estilos.

            LITERATURA DO CONTINENTE, cuja proposta é tratar dos textos desse nosso Continente mestiço que as políticas editoriais impedem de atravessar fronteiras, não repete, apenas,  na sua rubrica  uma expressão contida no  título da obra de Mario Benedetti . Sobretudo,   estará impregnada  das lições que esse professor uruguaio, afastado de sua cátedra pelo exílio, foi espalhando numa obra que abarca vários gêneros ( poesia, conto, romance, teatro, critica, ensaio) e cuja leitura – desculpe-se o chavão – resulta imprescindível, seja pela qualidade dos textos ficcionais, seja pela agudeza das idéias expressas nos seus textos de critica.

            Letras del continente mestizo é composto de vários trabalhos sobre autores contemporâneos – importante leitura para quem se interessa pela Literatura latino-americana – e de quatro breves ensaios  (“Ideas y actitudes en circulación”, “ Situación del escritor en América Latina”, “ Sobre las relaciones entre el hombre de acción y el intelectual”, “El boom entre dos libertades”) cujos assuntos embora escritos há quase duas décadas, se revestem de grande validade e de grande pertinência  para  a compreensão dos fenômenos literários do Continente e dos espaços que os abrigam.  Um Continente que, na ótica de Benedetti, ao abrigar analfabetos e famintos  irá exigir do escritor uma dupla responsabilidade: aquela relacionada com a sua arte e a outra, com o meio no qual se insere a sua vida . Para enfrentar tais responsabilidades, caberá ao escritor uma vigilância sem trégua que lhe garanta a liberdade artística e de opinião. Porque não é raro que a hipotética linha divisória que separa a expressão criativa da  responsabilidade humano do escritor se mostre um tanto quanto diluída. Assim,  o escritor latino-americano, – habitante de territórios cujos governos são avaros  na concessão de direitos do cidadão – deve estar apto para mensurar conceitos de liberdades e suas práticas. Assim, para mencionar dois caminhos,  ou ele usufrui da liberdade vigiada, concedida pelo Estado, aquela que permite, apenas, a veiculação de determinadas idéias e de determinadas atitudes; ou, insubmisso a tais diretivas, por qualquer mínima infração, recebe as sansões de praxe. Então, há os que recebem subsídios para a realização de tarefas intelectuais de entidades que reconhecidamente representam modelos de penetração cultural  ou se comprometem com programas oficiais que reafirmam a marginalização das classes. E, há os que, pelo delito de não se curvarem às orientações cerceadoras, são passíveis de serem condenados ao desemprego, à prisão, ao exílio, à morte como todo  habitante contumaz de um espaço  onde imperam a ditadura e o subdesenvolvimento.

            São matizes que adquirem, sem dúvida, inegável presença na discussão sempre vigente sobre as funções do intelectual, do artista, do escritor na sociedade na qual ele deve se constituir um elemento de vanguarda.

sexta-feira, 14 de agosto de 1987

Caminhos do Continente

            Digamos que, no princípio, tudo devesse ser compartilhado; que o conhecimento, como um bem incomensurável, se constituísse de algo, realmente, a ser transmitido: uma aula, o espaço aberto aos que dela necessitam, um texto acessível a todo e qualquer leitor. Utopia que somente poderia ser realizada se a classe que detém, também, o saber – e que já possui muito além daquilo que necessita – aquiescesse em proporcionar condições às outras para que pudessem resolver os seus problemas. Fossem eles elementares problemas de sobrevivência ou algo tão simples, aparentemente tão sem importância, como ter condições reais de escolher suas leituras.

            Uma responsabilidade que desde sempre vem sendo declinada pelas elites, embora lhes tenha sido atribuída, já no século XVIII por Voltaire e, mais tarde, por aqueles que acreditam ser imprescindível ampliar o seu papel na sociedade  e tornar-se participante do processo das transformações. Isso por lhes ser difícil conviver com as dicotomias de um Continente onde à maior parte da população tudo é negado e à outra, tudo permitido. Lei única a reger o cotidiano e o futuro dos vários universos do Continente.

            Universos que precisam se conhecer e se mensurar e se unir, para fortalecidos, mudar o seu  destino que vem sendo selado em outros hemisférios e por aqueles que somente querem deles usufruir. Daí  ser a sua imagem tantas vezes negada, esquecida, repudiada. Daí os preconceitos e leis desintegrarem o espaço de todos, separarem povos irmãos que tantas misérias e grandezas têm em comum, para forçá-los a se espelhar ( e, assim, se anular) em outra (prejudiciais e estranhas) realidades.

            Assim, falar dos espaços e destinos desse Continente  é tentar refletir e, quem sabe, levar à reflexão. Dizer das palavras nele geradas é desenhar caminhos com à paixão, o quê, talvez,  induza a realizá-los, a percorrê-los.

sexta-feira, 7 de agosto de 1987

Alfonsina Storni, a mulher amorosa

            Numa obra que se espalhou pelo Continente (La inquietud del rosal, El dulce daño, Irremediablemente, Languidez, Ocre), ela cantou quando todas se calavam. Alfosina Storni, uma poetisa que, sem medos, deixou que fluíssem de seus versos o amor. Um amor que pode ser doloroso ao se esgotar em triunfos e tristezas de um viver feminino em dasacordo com a sua época. E que não a deixa cega para o sofrimento que, eventualmente, vislumbra em Buenos Aires: a miséria que sabe existir e contra a qual se reconhece impotente.

            O amor a explodir no corpo de uma mulher  que se queria submissa (vou cair a teus pés sob a lua cheia,  sou um lírio caído aos pés de  uma montanha, caio entre tuas mãos pequenas como pássaro), que se queria perfeita (deusa criada por Afrodite com as flores dos bosques, mármore morno e palpitante ). Para assim, submissa e perfeita, cumprir o eterno ritual feminino (banhei-me na fonte, perfumei-me as mãos, penteei meus cabelos  e para agradar-te me vestirei de branco) e realizar a entrega para a qual  presume-se ter sido criado o ser feminino.

            Uma entrega ansiosa, feita de esperas e de perdas. Uma espera de lírio pisoteado, de pássaro branco, de loba que irá culminar, ao atender o chamado do corpo, naquele fazer-se mãe que os preconceitos repudiam. O que a fará dizer : o ventre que se dá sem reticências / põe um sopro de Deus nos seu pecado . Loba entre as ovelhas temerosas,  pobrezinhas e mansas ovelhas do rebanho, procura o oásis, o descanso, a paz do homem amado: buscarei teu peito para aninhar este peso enorme que levo na alma.

            Entre os amores que passam, que morrem, que enganam vai- se enredando o desprezo que sente por certos homens, por certas leis que a encarceram: o homem que a exige pura, intacta quando, há muito, ele deixou de sê-lo. As leis que regem o relacionamento amoroso dos bem pensantes. Entre a indignação diante dos olhares e risos que acompanham o seu caminho e o anseio do amor e de amar, ela se divide, se constrói ou se descobre um ser  hesitante que ora se mostra fera, ora um sutil e leve ser alado. Porém, sempre, uma certeza. Dessa certeza, a voz que se levanta fala de angústias, de solidão, dos momentos plenos que tanto podem significar um grande amor pela vida, como o êxtase originado de uma carícia ou o sentimento que a faz sustentar no seu ombro a cabeça adormecida do velho que viajava a seu lado no bonde.

            E’um sentir que ampliado de seu mundo para o mundo dos outros, irá dar matizes e poemas que inscreverão Alfonsina Storni entre os poetas que não  apenas são capazes de criar a beleza mas, também, de enunciar conceitos capazes de levar à transformações.                          

                        Homem pequenino / Estive na gaiola, homem pequenino / Homem pequenino, gaiola me dás / Digo pequenino porque não  me entendes / Nem me entenderás. / Tampouco te entendo, mas enquanto isso / Abre-me a gaiola que desejo escapar; / Homem pequenino, te amei meia hora, / não me peças mais.