sexta-feira, 19 de dezembro de 1986

Sobre Resistências

            No Chaco argentino existe uma cidade de nome Resistência. Está situada na planície, na terra vermelha. Suas ruas, arborizadas, muito largas, têm largos canteiros que, um dia, receberam uma função hedonística. Neles, pousam, hoje, peças de pedra e madeira e concreto e bronze que artistas argentinos modelaram e mecenas pagaram para ostentar na frente de suas casas o belo e, eventualmente, o testemunho da riqueza. Foi Algo Boglietti quem idealizou esse museu sem portas e que  uns anos antes havia dado vida a uma velha casa da rua Brown que foi se tornando ateliê de artistas, um espaço para reuniões informais, para encontro de amigos.

            Das tertúlias que, então, se promoveram, dos encontros e amizades, do gosto pelas coisas e da capacidade de nelas ver significados, surgiu “ El fogón de los arrieros”. Uma casa de moradia, receptáculo de livros, fotos, discos, um teatro de marionetes, armas antigas, tecidos, um piano, terracotas de Victor Marchese, flechas, cuias, cachimbos, artesanato indígena : uma infinidades de objetos, os mais díspares que representam um valor artístico ou um rasgo de humor, numa dualidade significativa. Entre muitas outras coisas, a hesitação que, eventualmente,  pode tocar – e hoje cada vez mais freqüente e profundamente, - o intelectual, o artista latino-americano que se debate entre as suas (não ) raízes e a influência do colonizador que por superposição lhe moldou os gostos. Prova desse dualismo é a presença, numa das paredes da casa-museu, entre a de  outros remetentes, igualmente emolduradas, de uma carta de Jean Paul Sartre. Vem datada de Paris, um 18 de novembro de 1949, resposta a alguém que, de Ël fogón de los arrieros”  pede permissão para representar as suas peças. Em papel timbrado de Les temps modernes, escritas à máquina, as palavras: “ Senhorita. Agradeço-lhe a amável  e longa carta e o interesse que demonstra, assim como os seus amigos do “Fogón de los arrieros” pelas minhas peças. Dou, com prazer, a minha autorização para que representem qualquer de minhas peças na sua cidade de tão belo nome de Resistência. Desejo a todos muito sucesso e lhes envio minhas melhores amizades. Jean Paul Sartre.” Nada mais formalmente cordiais do que essas palavras. Ao subscrevê-las, Sartre tinha quarenta e quatro anos, importante obra publicada e seu teatro se constituía de Les mouches, Huit clos, Morts sans  sepulture, Les mains sales. Nesse ano de 1949, ele dirigia Les temps modernes e para ele se voltam os olhos dos intelectuais e beletristas que, no “ El fogón de los arrieros”, querem fazer teatro.

            Quatro anos se tinham passado desde o término da Segunda Guerra Mundial. Ex-prisioneiro dos alemães, certamente para Sartre, a palavra resistência não poderia deixar de ter a conotação precisa, pejada de atos heróicos, de vidas oferecidas a uma liberdade que fora ceifada pelas ideologias norteadoras do conflito mundial de 39-45. O significado que ainda conserva nos dias de hoje para os europeus que viveram a guerra e para aqueles  que tentam preservar a lembrança dos que se opuseram à opressão e optaram pela difícil luta subterrânea contra as ideologias extremistas. E é provável que Sartre tenha ignorado sempre que o tão belo nome de Resistência se originou de atos colonizadores ou seja de um ato governamental ao nomear a Comissão Exploradora  com o objetivo específico de escolher um lugar para fundar uma povoação e da luta de um grupo de colonizadores contra os aborígenes ao se instalarem próximo ao local onde existira a redução de São Fernando. Foi essa luta bravia pela posse da terra chamada de resistência ( os homens brancos resistindo aos índios) e em seu louvor, denominado Resistência o novo núcleo urbano que nascia. E é provável que Sartre tenha, também, ignorado que ao redor da cidade em que reviviam  (terão revivido) suas palavras existia  uma outra resistência: a dos povos espoliados. A resistência vencida. Aquela que os aculturados esquecem. Cujo final trágico as cifras – sem possibilitar a reconstrução do massacre, a evidência da extinção de um povo, a descrição dantesca do detalhe, do sacrifício de inocentes que eram os donos da terra – friamente comprovam.

            Dessas resistências passivas da América entregue, da América dessangrada, estariam conscientes os repetidores latino-americanos de Sartre? Na verdade, nesta América de fabulosas ditaduras, grandiosas matanças, formidáveis torturas, longuíssimas prisões, exílios eternos e mortes prematuras, irreversíveis ignorâncias, carências atávicas, fomes demolidoras, muitos anos passaram. Mas, para  que o advento de um novo olhar sobre a vida e sobre a morte no Continente americano, enfim, surgisse, foram necessários esse tempo transcorrido, os muitos livros, as muitas mutações. Resistência novas, latentes em indivíduos ou germinado em grupos, então se delineiam:possíveis ou impossíveis, violentas ou pacificamente bem intencionadas, expressas pela palavra ou pelo silêncio. Resistências que não defendem, apenas e primitivamente, o território geográfico infestado mas talvez, antes de mais nada, o direito de se opor à ocupações quaisquer que sejam elas. Isto é todo um processo de amadurecimento de exasperante lentidão cujos resultados, como redenção de uma maioria sufocada são esperados, desejados, procurados por aqueles que a custo de muito esforço estão tentando ou conseguiram se descolonizar.

sexta-feira, 12 de dezembro de 1986

Sobre romances e romancistas

            Guiados por editores que procuram refazer no Brasil  o sucesso conseguido em outros países de obras que muito pouco ou nada tem a ver com a nossa realidade, a grande massa do leitor brasileiro tem se alimentado de leituras de inquestionável mediocridade e que o tem mantido incapaz de possuir parâmetros para reconhecer qualidades inclusive, também, em outras manifestações artísticas como o teatro e o cinema, por exemplo.

            Assim, é de ótimo  augúrio ter acontecido, em  curto espaço  de tempo, como o testemunham as matérias sobre o assunto,  que apareceram em Leia e em Senhor,  o que se poderia chamar a descolonização espontânea do leitor brasileiro.

            E, nesse sentido, o livro O romance hispano-americano da professora Bella Josef,  em boa hora foi publicado.  Ao afirmar que hoje se inscrevem na Argentina, Brasil, México, Venezuela, Peru alguns dos romances mais importantes da Literatura Universal está anunciando uma verdade conhecida já há muitos noutros países mas, que, infelizmente, é ignorada pela maioria dos leitores brasileiros. Pois não é segredo para ninguém que a informação sobre o que se passa na América Latina e no resto do mundo, nós a recebemos através de agências noticiosas, em sua grande parte, pertencentes aos países industrializados que, ou ignoram o que aqui se passa no âmbito da cultura ou, o que é mais provável, não têm o menor interesse nas sua  divulgação. A publicação de autores do Continente americano que se inicia ao sul do Rio Grande não proporcionaria aos donos do poder, do saber e do possuir o lucro que se origina da venda  dos seus ( na grande maioria) nefastos “best-sellers”.

            Daí, se constituiu algo de muito importante essa visão abrangente de vários autores e obras que expressam diferentes épocas e diferentes espaços, proporcionada pela obra da professora Bella Josef. Ao oferecer o panorama do romance hispano-americano ou apresentar a sua evolução das origens até os dias de hoje, fica, também, evidente que estamos diante de momentos ficcionais – o romance políticos, histórico, “costumbrista”, sentimental, lírico, psicológico,  preciosista-escapista, indianista, regionalista, gauchesco, “ çriollista”- que se elaboram, desenhando contornos cada vez mais nítidos do homem e do espaço latino-americano.

            Dentre os autores que analisa, são  conhecidos no Brasil (uns mais, outros menos) porque já traduzidos: Miguel Angel Astúrias, Juan Rulfo, Gabriel Garçía Márquez, Mario Vargas Llosa, Julio Cortazar, Juan Carlos Onetti, Alejo Carpentier, Manuel Scorza, José Donoso, Augusto Roa Bastos, Manuel Puig, Carlos Droguett, Ernesto Sábato. Quase em igual número, outros (apenas uma presença feminina, a mexicana Rosário Castellanos) aos quais somente tem acesso um reduzido número de especialistas ou interessados na cultura Hispano-americana.

            Professora de Literatura Hispano-americana na Universidade Federal do Rio de Janeiro, conferencista e com vasta produção na Imprensa brasileira e do exterior, autora de História da Literatura Hispano-americana (Vozes, 1971) e de O Jogo mágico (José Olympio, 1980), ao publicar O romance Hispano-americano (Atica, 1986) Bella Josef não somente enseja a leitura de um excelente texto crítico sobre obras latino-americanas mas, oferece, também, aquele leitor já suficientemente amadurecido para realizar suas próprias escolhas ( desde que estas lhe sejam, é evidente, possibilitadas), um guia de leitura imprescindível para o conhecimento de um universo que devemos reconhecer, de uma vez por todas, que é o nosso.

sexta-feira, 21 de novembro de 1986

Estrela luminosa: Julia de Burgos

            A maior parte da população é mestiça, descendendo de negos e de espanhóis em Puerto Rico. Depois de pertencer quatrocentos anos à Espanha, em 1898, a Ilha foi cedida aos Estados Unidos do qual passou a ser, desde 1952, um estado Associado. Um status que lhe permite ver assimilados pelo rico país do Norte os seus muitos desempregados. Além dos empregos, tão necessários, os portoriquenhos recebem dos cidadãos norte-americanos, a alcunha de “cucarachas” (baratas) porque são escuros, sujos e prolíferos. Um termo que, segundo Henfil no seu livro Diário de um cucaracha   passou, por extensão, a designar,  também, a todos os demais latino-americanos. Então, é de algum modo surpreendente  ter existido alguém  que foi poupado desse rótulo: Julia de Burgos, nascida em 1914, um caso raro e efêmero de poeta. 
            .
 
            Como soe acontecer  na América Latina, onde a vontade de um poucos prevalece e faz com que o Continente se empobreça na perda de seus melhores filhos, Puerto Rico expulsou Julia de Burgos. Extirpada de sua terra, ela, a semente de tantos bons frutos, morre com trinta e nove anos. Em 1938, havia publicado Poemas en veinte surcos e no ano seguinte, Canción de la verdad sencilla. Quinze anos depois de sua morte, foi publicado El mar y tu.
 
            Em seus versos se misturam o lirismo amoroso com o patriótico, o protesto social com o político. Voz feminina que não se enclausura no detalhe bizarro, no onamatopáico, na temática do homem preto injustiçado pela escravidão ou cercado pelas suas seqüelas quando livre, impedido de possuir, de usufruir tudo o que os que possuem julgam apenas para si mesmo imprescindível. São poemas da negritude que extrapolam o modismo que marcou certa poesia latino-americana entre os anos 20 e 40. Poemas que explodem em infinitos pontos de luz . Um d eles que, criteriosamente, poderíamos chamar antológico, é o seu poema “ Ay ay ay de la grifa negra”. Inicia-se, inocente, a voz feminina a dizer de sua cor, de seus lábios, de seu nariz, de seus cabelos: mi estatua es toda negra. Simplesmente palavras que esboçam uma mulher negra, nada mais. Não necessariamente bela, nem necessariamente infeliz. Tampouco exótica ou perigosa ou fascinante. Apenas estátua negra, pedaço de noite onde relampejam os dentes brancos.  Num contar de histórias de outros tempos, principia a terceira estrofe: Dicen que mi abuelo fue el esclavo / por quien el amo dio treinta monedas. Para o cidadão de qualquer país escravagista (no passado ou no presente, pouco importa) onde a História Pátria não faz segredos destas compras e vendas, trata-se de uma leitura anodina, talvez prazerosa, que se prolonga ainda nos dois versos seguintes. Porém, logo, expressão de um sentir individual, afetivamente ligada a um antepassado,  se amplia, se quer parte de um espaço  chamado pátria: Si hubiera sido el amo, sería mi vergüenza: / que en los hombres, igual que en las naciones, / si el ser siervo es no tener derechos, / el ser el amo es no tener conciencia. Nesta passagem, em que resultam paralelos os destinos dos homens e das nações, como em tantos outros textos latino-americanos, há aquele claro anseio de justiça e de integridade. E, também, esperança, embora hesitante, de um novo povo para a América: raça negra fundindo-se em água clara, raça branca ensombreando-se na raça negra. Anseios que, um meio século depois, se estão concretizando-se nessas nuances, frutos da mestiçagem latino-americana,  nascidas espontaneamente ao sul to Rio Bravo.  Onde a América corre a ser trigueña: / a ser la del futuro: / Fraternidad de América.

sexta-feira, 6 de junho de 1986

Sobre um texto amoroso e mordaz


            Já estava correndo o mundo hispânico, editado pela Bruguera de Barcelona e El amor en los tiempos del Cólera quando foi publicado no Brasil na tradução de Antonio Callado.

            Na capa azul, tanto na edição da Bruguera como na da Record, incrusta-se  pequeno quadro

de uma paisagem tropical e vegetação densa. Em primeiro plano, iluminado, um cupido estira, sorrindo, a corda de seu arco, pronto para lançar a flecha na direção paralela à rota do pequeno navio que, no segundo plano, navega seguido de espuma e de abundante fumaça. Fumaça que o vento conduz para a esquerda da gravura, assim como conduz a bandeira amarela que aparece, então desfraldada. E’a bandeira da cólera, interditando o barco, afastando-o da margem. A bordo, Fermina Daza e Florentino Ariza, isolados para o prolongamento da vida que se atribuíram ao se conceder, finalmente, o amor.
            Digamos que este último romance de García Márquez seja, principalmente, um livro sobre o amor. Também poderia ser um livro sobre amores se eles não se desvanecessem diante do amor maior que nasceu de uma visão, cresceu de esperanças, fortificou-se de ausências e enfraqueceu para renascer, definitivo.           

            Tinha treze anos Fermina Daza quando emoldurada pela janela, foi entrevista por aquele que, dominado pelo olhar casual que recebeu, iria segui-la ao longo da vida. Caminhos paralelos, cruzados, interditados num  tempo  minuciosamente registrado por Florentino Ariza que, então, após esses  cinqüenta e três anos, sete meses e onze dias com suas noites, pode, por fim, acreditar que a viagem fluvial e amorosa não se limitaria a ser somente o desejo realizado, mas o início de algo que sempre desejou eterno, imenso,  para  a vida inteira.

            É o encanto da história de amor num relato prenhe de acontecimentos. Um narrador convencional que, por vezes, se deixa surpreender por um nós. Um narrador que assume, como seu, o mundo descrito, denunciando-se  em algo de seus personagens. Uma narrativa conturbada, de meandros e de aspirais que se desenovelam para mostrar-se sem segredos. Alguma vez uma situação imprevista, mudando a direção da narrativa; outra,  um vagar, lembrando Proust; ainda, um detalhe  a remeter a textos já conhecidos. Ao conto “ El amor más allá de la muerte”, por exemplo.
 
            Um mimético do real latino-americano, criando um mundo de maravilhas por meio de achados estilísticos   praticamente ancorados no uso sapientíssimo do adjetivo.

            Nas costas do caribe, a cidade de Fermina Daza e de Florentino Ariza é, como tantas vezes acontece na América, um misto de fragância de jasmins e de pestilência. Cidade dividida em castas – trabalhadores  mulato, sobrenomes sonoros – onde uma parte da população chafurda na lama e a outra imita a Europa, usando casaco de pele na canícula, obedecendo a mesma etiqueta do velho mundo nas noites dos espetáculos líricos. Costumes e ritos, anotados por um observador crítico e mordaz a fazer da leitura de Amor em los tiempos del cólera, caminhos de descobertas abrangentes e multifacetadas,trazendo no seu bojo um universo colombiano onde se  podem  mirar os outros universos  do Continente. No demais como sempre, García Márquez.

sexta-feira, 9 de maio de 1986

Maria Rosa e o Cometa

            O Cometa, Maria Rosa e Gaspar Mora. Um longínquo e estranho triângulo amoroso. Maria Rosa, amando doidamente Gaspar Mora. Gaspar Mora, alheio a tudo, preso na muralha de sua doença, morrendo na beira de um riacho seco.  E o Cometa. Impassível como parecem os astros diante da dor dos humanos, cumprindo, ao passar, nada mais do que o seu ritualístico destino.

            Foi no tempo em que o Cometa apareceu no céu e aproximou, ameaçadoramente da terra sua imensa cauda de fogo. No Continente, a terra seca, o sofrimento, a lei dos homens. Também, sobretudo, um entrelaçar de ódios, amores, crenças e enganos.

            Hijo de hombre, o primeiro romance de Augusto Roa Bastos, foi publicado em 1960. Na época, o romanista paraguaio tinha quarenta e três anos. Nascera sete anos depois da passagem do Cometa . Seu personagem narrador, contando a história do carpinteiro Gaspar Mora e de Maria Rosa, lembra do espanto de seus cinco anos, profundamente comovidos pela presença terrível da víbora de fogo que ia engolir o mundo. Perplexo, também, diante da figura do leproso, músico e escultor, escondido do mundo, no meio do mato, cuja enfermidade não foi suficiente para afastar dele o amor das mulheres, o amor de Maria Rosa e a admiração dos homens.

            Maria Rosa, amando à distância, levando-lhe oferendas de pequenos  pães, das bananas maduras, da água do manancial. Isso, até a chegada do Cometa. Era o anúncio resplandecente do fim do mundo. A notícia terrível do castigo se amplificava na igreja, entre os lamentos e as rezas. Depois, começou a seca, era como se o monstro tivesse acabado com a água da terra e do céu. Foi quando Gaspar Mora desapareceu. Dele ficou o Cristo na Cruz, esculpido na madeira, as manchas de pus maculando a forma criada à imagem e semelhança do artista.
            A imagem, carregada nos ombros, foi levada para a igreja, numa estranha procissão que avançava sem rumo, sem lar, sem destino, pela solitária, vasta pátria dos deserdados e dos tristes. E lá ficou no átrio, esperando pelo padre durante vários dias pois ele só vinha a Itapé em raros domingos.  E’obra de um lazarento disse o padre ao chegar. Há o perigo de contágio. A casa de Deus deve estar sempre limpa. E’o lugar da saúde... Mas o argumento sobre os bacilos e os riscos da contágio não possuía validade  para a multidão que escutava com os olhos vazios fixos no Cristo, na lembrança daquele que o fizera: o carpinteiro leproso que liquidava as dívidas dos agricultores prejudicados pelo granizo ou pelos gafanhotos: o mesmo  que ofertava agasalhos para as viúvas e para os órfãos e que fizera a escolinha. Nunca ele pisara na Igreja. Um herege, dizia o padre. O velho Macário dizia, um puro. De seu rosto limpo, forte e moreno, ossudo, dos seus olhos mansamente verdes ainda continuava apaixonada Maria Rosa. Maria Rosa, parte de um universo de pó e de miséria como ela própria. Universo submisso ao

sexta-feira, 4 de abril de 1986

Exílios


Volto sem luto e tem chovido tanto
na minha ausência, nas minhas ruas, no meu mundo
que me perco nos nomes e confundo
a chuva com o pranto.

Mario Benedetti











 


             Os sentimentos não se diluem, não se esgota o horror da última guerra. Peças de teatro. Filmes. Poemas. Romances. Há sempre um desejo de entender que renasce num multiplicar-se de visões, de fatos, de situações.

            Em fins de fevereiro de 1933, quando arde a Reichstag, muitos alemães se sentiram ameaçados pela polícia nazista e fugiram para a França que além de ser um país fronteiriço com a Alemanha possuía, ainda, a reputação de ser  um país liberal, hospitaleiro, tolerante.

O estudo minucioso dessa imigração, compreendida entre 1933 e 1934, foi tratado por germanistas e historiadores da Universidade de Paria VII, Vincennes, que ouviram testemunhos, examinaram documentos nem sempre completos ou de fácil acesso, muitos deles inéditos e reunidos num livro intitulado Les barbelés de l’éxil (Presses Universitaires de Grenoble, 1979).

            Trata-se de uma obra informativa e precisa. Mas, ao evocar a sorte individual e coletiva desses imigrados que tentaram fugir dos campos de concentração da Alemanha e acabaram, em 1939, atrás dos arames farpados  do país que os havia acolhido, é também  amiúde, um texto comovente. De forma objetiva, trás respostas a perguntas bem simples: quem emigrou, quando e por que. Respostas que dão ensejo a outras perguntas: quais as condições de vida desses emigrantes que saídos às pressas de seu país levaram consigo apenas o essencial, umas poucas roupas e algum dinheiro? Quais suas possibilidades de sobrevivência num país economicamente em crise onde era muito fácil tornar-se xenófobo diante do inimigo “hereditário”e da propaganda de uma imprensa preocupada em achar bodes expiatórios? Delineiam-se, então, destinos (sofrimento, dor, miséria) à mercê do Estado que ,demiúrgico, os condena. E’quando o livro não mais pode responder mas, levar à reflexão, à escolha.

            Judeus, operários, intelectuais, moços, velhos, políticos de esquerda, militantes comunistas ou simplesmente, todos aqueles que se opunham ao nacional-socialismo começaram a chegar nas fronteiras pelos primeiros dias de março de 1933. Nas suas diferenças de credos religiosos e de convicções políticas, nas suas diferenças de classes sociais, de nível cultural ou, simplesmente de idade, um denominador comum: todos acreditavam que o exílio seria breve.

            Na França, os grandes jornais que enviavam seus correspondentes à Alemanha, registravam a chegada ao poder dos nazistas, o incêndio da Reichstag, as perseguições aos partidos e às organizações de esquerda e, por vezes, apresentavam Hitler como um personagem ridículo e grotesco. Nesse momento, a opinião pública francesa é hostil aos nacionais socialistas e  a seus dirigentes, mas não chega a entender o porquê da necessidade de um alemão abandonar o seu país. Entre os partidos políticos, apenas os da esquerda irão manifestar simpatias pelos adversários de Hitler. Os da direita, discretamente (ou secretamente)  admiram  o homem forte do Terceiro Reich.

            A incompreensão, a desconfiança que se  manifesta em relação aos primeiros migrados de 1933, vai-se transformando, com o passar do tempo  e dos acontecimentos para e, em 1939,  levar  à  uma xenofobia brutal. E o desemprego, as péssimas condições de vida  e a solidão em que vivem os imigrantes, na verdade pouco representam se comparados aos campos de concentração franceses e às viagens sem volta para os campos de extermínio na Alemanha que se seguiram a esses primeiros tempos.  Então, nos  longos dias sem trabalho e sem diálogo  apenas uma única realidade existia,  a insegurança. Impedidos de trabalhar pelas  regulamentações  que, sucessivamente, os foram marginalizando cada vez mais, impedidos de  se comunicar, antes de mais nada pela  diferenças de idiomas e, muitas vezes, por uma situação psicológica que induzia a se afastar de seus conterrâneos e impedido de ter uma existência legal pois jamais conseguia estar em regra com a polícia. Como diz Gilbert Badia, na eterna busca de uma carteira de identidade, de um documento qualquer que fosse mas que o protegesse de uma expulsão repentina e sem motivo. Houve o tempo dos suicídios; também, para uns poucos, uma viagem de pesadelo para chegar à América e viver. São estes testemunhos conhecidos. Restava, porém, contar a  resistência anti-nazista feita através de livros impressos em caracteres minúsculos e sobre papel muito fino e que eram introduzidos na Alemanha em embalagens de xampu ou sob capas nas quais eram impressos títulos que se referiam a assuntos inofensivos como jardinagem, por exemplo. Ou de artigos em francês publicados nos jornais franceses ou de livros publicados em alemão na França.

            Ns anos de 1935, 1936 e 1937 o Terceiro Reich não cessa de se afirmar.  A participação dos alemães nos Jogos Olímpicos, na Exposição Universal de Paris, em 1937, a adesão do povo alemão ao governo, um equilíbrio financeiro para substituir a bancarrota prevista tornam cada vez mais difícil para o exilado a elaboração de um programa visando a democratização da Alemanha  o quê, a medida em que passam os dias, mais e mais significa uma utopia. Um esforço contra a opressão e o terror existiu. Foi, porém, uma resistência que fracassou. Não conseguiu se unificar, não constituiu um governo no exílio, não conseguiu derrubar Hitler, nem mesmo mobilizar contra o regime nacional-socialiesta uma facção numericamente importante do povo alemão.

            Para o organizador da obra, o tradutor de Brecht na França,   professor Gilbert Badia  assim como os demais autores, escrever a história dessa resistência, dessa oposição a Hitler no interior e fora das fronteiras da Alemanha, é completar a História do Terceiro Reich. Les barbelés de l’’exil contém os primeiros resultados de uma pesquisa que se quer mais extensa. No momento, estes vários trabalhos que o compõem, além do próprio interesse que os impulsiona – preencher uma lacuna da História Alemã Contemporânea – alcançam já um momento muito importante ao se constituírem, sobretudo, a afirmação de que os fatos podem e devem ser encarados sob diferentes ângulos. E este que abordam, até o presente, tinha sido esquecido pelos historiadores.

            Sob este aspecto, podemos lembrar a posição de alguns latino-americanos cujas colocações sobre a História da América contrariam toda a historiografia oficial, estratificada no esquema colonialista e que, ao longo dos anos, transmitiu verdades discutíveis com a convicção daqueles que detém o Poder ou daqueles cuja visão é limitada pelo dogmatismo mais vulgar. Para esses latino-americanos, vivendo em territórios que permitam ( ou permitem mais ou menos) a abordagem de determinados assuntos, fatos ou personagens, a história dos exílios, dos auto-exilados ( e falemos, apenas, desses últimos ) é um filão inesgotável. Se da Alemanha para a França foi uma emigração numericamente modesta e limitada por datas precisas, a emigração/ imigração na América Latina, coerente com as proporções geográficas e com seu contexto conturbado, atinge  enormes proporções   e diferentes categorias sócio-culturais.

            Estudar, então, essas migrações é completar a História da América, mostrar a sangria que lhe é imposta por um punhado de megalômanos cujo ridículo é tão incomensurável que não lhes permite o discernimento entre governar e auto intitular-se governante. E, sobretudo, mostrar que a História das minorias, ao proporcionar uma visão dialética dos fatos, leva à discussão e à reflexão. Se esta discussão e reflexão são necessárias em países como a França onde a liberdade de pensamento e de expressão é, relativamente, de há muito realizada, em países que ainda não
aprenderam  ou estão em vias de  aprender a pensar e a se expressar, servir-se de tais práticas, torna-se urgente e imprescindível.

sexta-feira, 7 de março de 1986

A trégua

            O Continente americano, espaço de crueldades, ilusões, magias. Na sua imensidão, algumas ilhas de trégua, de esperanças, interregnos do terror. Nelas, delas emergem fontes. Matizes, formas, vozes, textos antes sufocados. Vivências do absurdo, do sangrento. Renovados na escrita procurando uma compreensão do incompreensível, procurando um desabafo do irremediável: textos depoimentos. Não menos fores, profundos, cruéis, igualmente refazendo o que foi como se imaginado tivesse sido, os textos de ficção.

            Da Argentina é Gerardo Mario Goloboff. Poeta, ensaísta, romancista. Criador de palomas  (Buenos Aires, Brughera, 1984) seu romance deste interregno em que vive o país. Interregno que se desejaria muito longo e muito eterno para que nele pudessem respirar e crescer os criadores e os pombos. Os pensadores, os trabalhadores, os artistas e a paz e a ternura. Qual é o latino-americano que não deseja a reconstrução de seu  país e de sua gente?Limpei as macegas que tinham crescido no quintal[...]Pus várias tábuas no galpão desconjuntado. Curei e reavivei a parreira e passei cal nas paredes. Assim começa a última página de Criador de palomas.  Um renascer muito simples, como se fosse natural. Uma fé muito grande e muito boa: Estendi, tremendo, o braço e a pomba se aproximou da minha mão.
            Homem de um Continente que precisa se fazer, se construir, viver e que aproveita momentos de luz para consegui-lo. Seja esse homem Gerardo Mario Goloboff, seja esse menino narrador que atravessam distâncias e sofrimentos para acreditar.
            Criador de palomas é a história de um aprendizado. Aprendizado do amor, da ternura, da dor e da perda. Pedaços de vida registrados com a aguda precisão de um conhecedor da alma humana. Mas, sobretudo, alma adolescente desfazendo-se em silêncios.
            O contar se apóia em fatos acontecidos no passado a um menino de nove, mais tarde de  doze anos: uma festa de aniversário, um almoço de domingo, o incêndio na casa de móveis, um banquete de casamento, a compra de carne no matadouro, a viagem a French e a Cambaceres para vender roupas, a visita ao sonhador de Smith. Costumes e gente, algo do país que se define nas sensações, cheiro das acácias, da terra molhada, dos gravetos de vinha no fogo, o gosto amargo do chimarrão, do sal na carne.
            Mas, o que realmente importa são os pombos. O prazer profundo de tocá-los, o prazer muito grande de amá-los. Imensas presenças femininas. Clara, Verana, Pampeana, Blanca, Muñeca, Carla, a pequena pomba doente. E mais do que elas, presença dominante, a morte. O menino encontra uma das pombas mortas, jogada no meio de uma pocinha de sangue ; outra, com um corte profundo no pescoço, as patinhas cortadas, as asas retorcidas, as penas arrancadas. Ainda outra, com um bala esburacando-lhe o peito. As demais caindo longe. Mortes que acontecem de repente. E, que assim, de repente, são comunicadas ao leitor. Então, o narrador cala. Um silêncio como que originado do pudor ou talvez do acreditar desnecessário falar de uma dor já conhecida, experimentada por aqueles que vivem no Continente massacrado e para os quais tampouco fosse necessário explicar essas mortes. Sim, delas existem indícios, marcando o texto, existem insinuações. Uns e outros diluídos, porém, na apresentação dos momentos vividos pelo menino. Um viver que é feito de pequenas coisas – brincadeiras, risos, convívios – no qual a violência do extermínio se constituiu uma ruptura que, juntamente com o sangue e com o que é definido como esse torneio desproporcional entre a criatura indefesa e os seus raptores  se insere no mundo ficcional depois – e isso o leitor não desconhece – de ter se constituído um cotidiano para muitos.
            Criador de palomas, claros escuros alinhados com a maestria  da simplicidade. Ritmo de vida, marcado pela morte. Um dizer inocente, um “falar sem que se note”. Como que seda e lã envolvendo o leitor. Que sem o sentir fica ferido para sempre.
 .

terça-feira, 18 de fevereiro de 1986

Os caminhos do exílio

            Suficientemente conhecidas são as circunstâncias que, na América Latina, colocam e sempre colocaram frente a frente duas minorias que respondem pela maioria: aquela que é detentora de privilégios e a outra que tem voz e se expressa ( e, eventualmente, também goza de privilégios). Esta, busca a palavra; a outra o silêncio. A palavra, perseguindo a mudança; o silêncio, a estratificação. Essas forças desiguais ao se confrontarem, é evidente, levam ao fracasso da mais fraca e que somente possui a voz. Silenciada, parte para construir um destino em outras terras. Um país se esvai; outro, que sabe receber e usufruir, se enriquece.

            Pequenos, longos, intermináveis. Jamais encontram um fim os sofridos caminhos do exílio. Porque dez, vinte, trinta ou mais anos  contando distâncias e ausências podem resultar menos perdas do que o retorno ao que era, ao que foi. Para os artistas, para o escritor latino-americano o exílio se constitui, mais do que nunca, uma realidade, pois embora já existam  espaços libertos, eles são poucos, restritos e imprecisos e a volta à pátria não significa, obrigatoriamente, que o exílio tenha terminado. Muitas vezes, é apenas um outro que se inicia.

            Nas Américas, esse dessangrar é tão intenso quanto a qualidade das obras que, em geral, não chegam (ou chegam por meandros) a serem lidas na maioria do seus países  pois não é segredo para ninguém que, salvo as sempre honrosas exceções, também a política editorial dos paises latino-americanos é colonizada.           Razão suficiente para insistir no fato de que existem muitos  escritores latino-americanos cujas obras ( excelentes) o leitor brasileiro, por uma razão ou por outra, desconhece. Ou tem  condições de conhecer apenas de maneira muito restrita e aleatória.
 
 
A partida
 
            Argentino que vivia em La Rioja, jornalista e professor de violino no Conservatório, autor de cinco livros de contos (Artista de variedades, La lombriz, El fuego interrumpido, Mi música es para esa gente, El estuche de crocodilo) e de cinco romances (Uma luz muy lejana, El oscuro, El trino del  diablo, El vuelo del tigre, La Bahia) Daniel Moyano  há dez anos, desembarcou, com a mulher e três filhos,  em Barcelona, na condição  de exilado. No seu país, um dia fora levado preso e preso permaneceu vários dias. Quando o puseram em liberdade quis saber o porquê de sua prisão. Responderam que não sabiam e que melhor seria se não desejasse respostas. Aquela que obteve de si mesmo foi a decisão de partir para outro país onde pudesse criar seus filhos sem medos.    

            Hoje, em Madrid, voltou a trabalhar como jornalista e depois de uma pausa de quatro anos, voltou a tocar. Sua pena, porém, jamais silenciou. Nos primeiros anos de exílio escreveu um livro de contos que define como um livro sobre o exílio que não seja um lamento. Nessa mesma época, terminou seu romance El vuelo del tigre que iniciara em La Rioja.  El trino del diablo, já traduzido para o inglês, francês e polonês, aguarda decisão de uma editora  brasileira que,  ignorando as leis dominantes do mercado livreiro, vai inovar, publicando uma obra de autor desconhecido no Brasil cuja leitura lúdica será, sobretudo, instigante nos seus meandros.
 

A chegada
 
            Em 1947, com vinte e sete anos, Augusto Roa Bastos já estava exilado na Argentina. Desde então, foram muitos ofícios, foram muitas moradias: Eu tinha sempre que recomeçar, condenado a estas perpétuas migrações. Simultaneamente, o teimoso exercício do trabalho jornalístico e literário a se expressar na poesia ( El naranjal ardiente), no teatro (El niño del rocio), no conto (El baldio, El trueno entre las hojas), no romance (Hijo de hombre, Yo el supremo). Estes, publicados em 1965 e 1977, respectivamente, pela Paz e Terra do Rio de Janeiro

            No entanto, para Augusto Roa Bastos, como para os demais escritores paraguaios, o exílio acontece muito antes do efetivo exílio político: se inicia no momento em  que o escritor deve escolher o idioma em que irá se expressar. Para Augusto Roa Bastos, a Literatura é, fundamentalmente, comunicação e, assim,  a sua escolha foi forçosamente  o espanhol e não o guarani. Mas,  está consciente que ao escrever em espanhol, o ficcionista sente que está traduzindo de outro contexto lingüístico e, ao fazê-lo está ele mesmo se separando desse contexto, ficando sempre com algo por dizer. Isto leva o escritor paraguaio à necessidade de fazer uma literatura que não fique na literatura; de inventar histórias que sejam a transgressão da História Oficial; de minar com um escrita desmistificadora a linguagem carregada de ideologia da dominação.

            Recentemente,  o escritor paraguaio recebeu a cidadania espanhola. No mês de novembro passado, em Madrid, ele dizia: O exílio foi o meu grande mestre, me proporcionou serenidade.

            Serenidade para chegar, finalmente, a um espaço  onde viver o quê sempre lhe foi negado por seu país.


A espera
 
            Salvador Allende assassinado. O Chile se desagregando e se desfazendo um dos momentos socialistas do Continente. Carlos Droguett recolhia testemunhos, depoimentos, histórias de infâmia e de sangue. Até então, havia sempre considerado o exílio como um estado de espírito próprio do artista, do escritor. Incapazes de se adaptar a moldes, padrões, ordens e esquemas e, em conseqüência dessa incapacidade, vivendo continuamente uma diáspora. Todavia, ao sair do Chile como exilado, o exílio, para ele, adquiriu uma nova dimensão: Nossa terra circulada por nossas artérias matiza indelevelmente nossos olhares, embaralha nossas lembranças. Fora do Chile, traz o Chile dentro de si. Porém ao pensá-lo, o faz como se fosse algo que um dia existiu. E que somente tornará a existir, para ele e para tantos outros, quando o terrível pesadelo trágico chegar ao fim.

            Na Suíça, onde vive agora, Carlos Droguett escreve furiosamente. Nada quer deixar sem dizer: Não devem existir lembranças mortas, mas a voz massacrada dos que se foram, vozes saídas do silêncio que devem ser escutadas. Porque há também outro exílio. Aquele que sofrem os chilenos que não souberam ou não puderam sair do país. O exílio dos que, sucessivamente, enfrentaram a delação, a prisão, a tortura o desaparecimento, o assassinato e deixaram testemunhos  escritos ou falados de sua passagem pela terra, de sua vertiginosa agonia na cela e no leito de tortura que também eram a sua pátria.
 
            De sua obra,vasta, densa, dura, apenas Eloy foi traduzido para o português e publicado pela Codecri, em 1982. El compadre (premiado na Espanha e impedido pela censura franquista de ser publicado), El hombre que trasladaba las ciudades, El hombre que habia olvidado, Todas esas muertes, Patas de perro (uma das obras primas da Literatura do Continente) continuam desconhecidas no Brasil.

 
O regresso

            Em 1977, num ciclo de palestras sobre a Crítica latino-americana, realizado em Caracas, Mario Benedetti dizia que estavam longe os tempos em que o imperialismo queria  apenas neutralizar  os intelectuais latino-americanos e o fazia oferecendo-lhes regalias das Fundações. Que tal estratégia havia sido mudada para outra, mais eficiente e rápida, a dos esquadrões da morte. Conseqüência lógica da própria transformação dos intelectuais e artistas aferrados a frágeis conceitos de liberdade e que acabaram assumindo ou, pelo menos, compreendendo a liberdade revolucionária. E o argumento maior para confirmar essas palavras seriam os trinta poetas latino-americanos mortos pela repressão e as centenas de escritores e intelectuais exilados.
            O exílio de Mario Benedetti se iniciou na Argentina e depois de uma permanência de um ano em Cuba, ainda se prolongou na Espanha. Em Montevidéu, ele dirigia o Departamento de Literatura Hispano-americana da Faculdade de Humanidades e Ciências. A docência e o gosto pelo livro levaram-no a possuir uma biblioteca de mais de sete mil volumes que deixou para trás ao sair do Uruguai. Sofrimento menor diante dos outros que enfrentava. Pois não trocaria (entre outras trocas) nesses meses de exílio, dois Shakespeare   e três Balzac por um entardecer na praia de Malvin?

            Crítico literário (Letras del Continente Mestizo), contista (Montevideanos), dramaturgo ( Pedro y el capitán), romancista (La trégua), colaborador da  revista Marcha desde 1945 até a sua clausura em 1974 pelo governo militar, Mario Benedetti está de volta a seu país. Para rever as ruas, sentar-se num café  (melhor ainda se estiver chovendo torrencialmente), dar uma olhada no Palácio Salvo. Para reencontrar-se com a sua biblioteca (no caso dela ter sobrevivido à sua ausência e a possíveis  buscas pelo Sistema). E, para sofrer um pouco mais com esses reencontros. Volto e peço perdão pela demora.