sexta-feira, 19 de dezembro de 1986

Sobre Resistências

            No Chaco argentino existe uma cidade de nome Resistência. Está situada na planície, na terra vermelha. Suas ruas, arborizadas, muito largas, têm largos canteiros que, um dia, receberam uma função hedonística. Neles, pousam, hoje, peças de pedra e madeira e concreto e bronze que artistas argentinos modelaram e mecenas pagaram para ostentar na frente de suas casas o belo e, eventualmente, o testemunho da riqueza. Foi Algo Boglietti quem idealizou esse museu sem portas e que  uns anos antes havia dado vida a uma velha casa da rua Brown que foi se tornando ateliê de artistas, um espaço para reuniões informais, para encontro de amigos.

            Das tertúlias que, então, se promoveram, dos encontros e amizades, do gosto pelas coisas e da capacidade de nelas ver significados, surgiu “ El fogón de los arrieros”. Uma casa de moradia, receptáculo de livros, fotos, discos, um teatro de marionetes, armas antigas, tecidos, um piano, terracotas de Victor Marchese, flechas, cuias, cachimbos, artesanato indígena : uma infinidades de objetos, os mais díspares que representam um valor artístico ou um rasgo de humor, numa dualidade significativa. Entre muitas outras coisas, a hesitação que, eventualmente,  pode tocar – e hoje cada vez mais freqüente e profundamente, - o intelectual, o artista latino-americano que se debate entre as suas (não ) raízes e a influência do colonizador que por superposição lhe moldou os gostos. Prova desse dualismo é a presença, numa das paredes da casa-museu, entre a de  outros remetentes, igualmente emolduradas, de uma carta de Jean Paul Sartre. Vem datada de Paris, um 18 de novembro de 1949, resposta a alguém que, de Ël fogón de los arrieros”  pede permissão para representar as suas peças. Em papel timbrado de Les temps modernes, escritas à máquina, as palavras: “ Senhorita. Agradeço-lhe a amável  e longa carta e o interesse que demonstra, assim como os seus amigos do “Fogón de los arrieros” pelas minhas peças. Dou, com prazer, a minha autorização para que representem qualquer de minhas peças na sua cidade de tão belo nome de Resistência. Desejo a todos muito sucesso e lhes envio minhas melhores amizades. Jean Paul Sartre.” Nada mais formalmente cordiais do que essas palavras. Ao subscrevê-las, Sartre tinha quarenta e quatro anos, importante obra publicada e seu teatro se constituía de Les mouches, Huit clos, Morts sans  sepulture, Les mains sales. Nesse ano de 1949, ele dirigia Les temps modernes e para ele se voltam os olhos dos intelectuais e beletristas que, no “ El fogón de los arrieros”, querem fazer teatro.

            Quatro anos se tinham passado desde o término da Segunda Guerra Mundial. Ex-prisioneiro dos alemães, certamente para Sartre, a palavra resistência não poderia deixar de ter a conotação precisa, pejada de atos heróicos, de vidas oferecidas a uma liberdade que fora ceifada pelas ideologias norteadoras do conflito mundial de 39-45. O significado que ainda conserva nos dias de hoje para os europeus que viveram a guerra e para aqueles  que tentam preservar a lembrança dos que se opuseram à opressão e optaram pela difícil luta subterrânea contra as ideologias extremistas. E é provável que Sartre tenha ignorado sempre que o tão belo nome de Resistência se originou de atos colonizadores ou seja de um ato governamental ao nomear a Comissão Exploradora  com o objetivo específico de escolher um lugar para fundar uma povoação e da luta de um grupo de colonizadores contra os aborígenes ao se instalarem próximo ao local onde existira a redução de São Fernando. Foi essa luta bravia pela posse da terra chamada de resistência ( os homens brancos resistindo aos índios) e em seu louvor, denominado Resistência o novo núcleo urbano que nascia. E é provável que Sartre tenha, também, ignorado que ao redor da cidade em que reviviam  (terão revivido) suas palavras existia  uma outra resistência: a dos povos espoliados. A resistência vencida. Aquela que os aculturados esquecem. Cujo final trágico as cifras – sem possibilitar a reconstrução do massacre, a evidência da extinção de um povo, a descrição dantesca do detalhe, do sacrifício de inocentes que eram os donos da terra – friamente comprovam.

            Dessas resistências passivas da América entregue, da América dessangrada, estariam conscientes os repetidores latino-americanos de Sartre? Na verdade, nesta América de fabulosas ditaduras, grandiosas matanças, formidáveis torturas, longuíssimas prisões, exílios eternos e mortes prematuras, irreversíveis ignorâncias, carências atávicas, fomes demolidoras, muitos anos passaram. Mas, para  que o advento de um novo olhar sobre a vida e sobre a morte no Continente americano, enfim, surgisse, foram necessários esse tempo transcorrido, os muitos livros, as muitas mutações. Resistência novas, latentes em indivíduos ou germinado em grupos, então se delineiam:possíveis ou impossíveis, violentas ou pacificamente bem intencionadas, expressas pela palavra ou pelo silêncio. Resistências que não defendem, apenas e primitivamente, o território geográfico infestado mas talvez, antes de mais nada, o direito de se opor à ocupações quaisquer que sejam elas. Isto é todo um processo de amadurecimento de exasperante lentidão cujos resultados, como redenção de uma maioria sufocada são esperados, desejados, procurados por aqueles que a custo de muito esforço estão tentando ou conseguiram se descolonizar.

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