sexta-feira, 12 de junho de 2015

Pablo Neruda e Portugal 2

           Chegaram à ilha no inverno. Já era noite e a costa se mostrava “esbranquiçada e altíssima,Confieso que he vivido (Barcelona, Seix Barral, 1974). Doze anos depois, Matilde Urrutia acrescenta às lembranças de Pablo Neruda desses dias em Capri, a sua própria emoção. Em Mi vida junto a Pablo Neruda (Barcelona, Seix Barral, 1986), relata que estava de cama e febril. Havia perdido o filho que esperava e que ambos tanto desejavam. Em meio a sua preocupação, Pablo Neruda, de repente, se põe a escrever. Seus olhos brilhavam, diz Matilde Urrutia, de “esperança e triunfo” e ao terminar, disse “- Neste dia em que nos sentimos derrotados vou lhe dar um filho que acaba de nascer, irá se chamar Las uvas y el viento”. Era em fevereiro de 1952. Dia 10, precisa Margarita Aguirre (Las vidas del Poeta, Santiago, Zig-Zag, 1967), acrescentando que  no discurso “A la paz por la poesia”, pronunciado por Pablo Neruda no Congreso Continental de la Cultura” que se realizou, em Santiago, em março de 1953, ele menciona que no livro, ainda sem o título, recolhe  “o que mais amou da antiga e nova Europa” (por nova Europa considera a Europa socialista) e desejando que seja a sua contribuição para a paz. No ano seguinte, Las uvas y el viento é publicado (Santiago, Nascimiento) e dele fazem parte poemas que escrevera  a partir de 1949, uma espécie de diário poético de viagem, diz Emir Rodríguez Monegal (El viajero inmóvil, Buenos Aires, Losada, 1966), quando impedido de voltar ao Chile onde ainda vigorava o mandato de prisão do dia 5 de fevereiro de 1948, promulgado pela Ministério de Justiça de seu país, para castigá-lo, pelos textos em que acusa o presidente do país de traidor. Perambula pela Europa e pela Ásia. É recebido por amigos e por países e, também, perseguido pela polícia política, por instâncias do governo do Chile. Prêmios lhe são outorgados, suas obras são editadas. E ele viaja com os olhos abertos e o coração receptivo à solidariedade e à esperança.
desconhecida e calada”. Depois, foram as descobertas, nos longos passeios, o trabalho de cada manhã, compondo esse “tempo inesquecível” de que fala o Poeta em 

            Las uvas y el viento possui vinte e um cantos, compreendidos entre um “Prólogo” e um “Epílogo”. O “Prólogo” tem por título “Tenéis que oírme” (“Tendes que me escutar”) também o último verso do poema, só que antecedido do advérbio “ahora” (agora), enfatizando esse pedido (ou ordem) que o Poeta justifica: foi pela Europa “entre as uvas” e pela Ásia “sob o vento”, recolhendo “o melhor da vida”, “o melhor de uma terra e outra terra” com o seu canto. “El canto compartido” (“O canto compartilhado”) é o epílogo. Pablo Neruda está de volta ao Chile nesse 12 de agosto de 1952 e o poema foi escrito entre a cordilheira e o mar para dizer que voltou, cantando, sem um resquício de ódio no peito – dir-se-ia que o desterro e as perseguições de que foi vítima o justificariam – e a espalhar as uvas e o vento. E que, renascido no sangue de seu povo, para todos é o seu canto. Como é fruto das vivências que o enriqueceram desde que saiu, fugido de seu país, até a tão almejada volta depois de mais de três anos. No primeiro canto, “Las uvas de Europa” e no segundo, “El viento en el Ásia”, oferece, na visão do Velho Mundo e do Novo Mundo Asiático, o sentido do título. A seguir, se sucedem os cantos que dedicou a Polônia, Espanha, Checoslováquia, Rússia, Itália, Mongólia, Grécia, Estados Unidos, Alemanha, Coréia, Inglaterra, Vietnã, Hungria, França, Romênia.

            O décimo quinto canto, “La lámpara marina” (“A lâmpada marinha”) é dedicado a Portugal e se compõe de cinco poemas: “El puerto color de cielo” (“O porto cor de céu”), “La cítara olvidada” (“A cítara esquecida”), “Los presidios” (“Os presídios”), “El mar y los jazmines” (“O mar e os jasmins”) e “La lámpara marina”. Neles, se entrelaçam as impressões que Lisboa lhe causou anos antes e a situação política do país na época em que escreve os versos. Nas memórias que publica na revista O Cruzeiro Internacional (Rio de Janeiro, janeiro-junho,1962), sob o título “Las vidas del Poeta”, lembra no capítulo terceiro, “Los caminos del Mundo”, a sua primeira viagem à Europa de onde seguiria para assumir as funções consulares em Rangum. Partiu, “um dia de junho de 1927” de Buenos Aires, no “Baden”, um barco alemão que, entre uma escala e outra, aportaria em Lisboa: “Aquela Lisboa alegre daqueles anos com pescadoras nas ruas e sem Salazar no trono”, como a definirá. Uma cidade que o encheu de assombro com suas casas coloridas, seus velhos palácios. Nos poemas, escritos mais tarde, estarão presentes as cores do céu, das casas, do oceano, das janelas, das ruas, dos montes; e os aromas e o rumor dos cantos. Portugal se desenhando como “cesta de frutas e flores”, reminiscência das “grandes bandejas de frutas” a coroar a mesa no pequeno hotel em que esteve no longínquo ano em que desembarcou na Europa.

            Se nas suas memórias, como lembrará mais tarde, Salazar ainda não pontificava, nos poemas não mencionará o seu nome. Indica-lhe a presença em comparações e metáforas que dizem de seu poder absoluto, como o fizera em 1945, no poema “Dura elegia”, em que homenageia Luís Carlos Prestes, preso na ditadura de Getúlio Vargas: “tirano”, “aranha implacável”, detentor de um “silêncio de rato” e de ”pequenas asas de morcego frio”. Claramente, Pablo Neruda testemunha sobre os atos que preservam o totalitarismo em Portugal: “Lápide” significa a opressão, ampliada no símile “como tumba”; ou “como túnica de clerical morcego”, numa aproximação inusitada quanto à relação substantivo/adjetivo (“clerical morcego”) e, óbvia, ao sugerir a figura do déspota português, reconhecidamente religioso. O que é reafirmado no poema seguinte, quando, outra vez, surge o adjetivo “clerical”, determinando “pó”, um pó “acumulado em Coimbra”, em cuja universidade Salazar havia feito seus estudos e onde fora professor. Porém, mais do que atacá-lo e a seus asseclas – “carcereiros de luta, retóricos, corretos”, “polícia”, “cúpulas de sombras” – indicados, sobretudo, por verbos (escutam, rondam, arreiam presos para as ilhas, condenam ao silêncio, procuram portugueses, cavoucam o chão, destinam os homens à sombra), Pablo Neruda, criando um mundo em que as cores e a luz se transformam em luto e em sombras, desenha Portugal. Com imagens de flor e de mar: “esplendor de roseiras e racemos”, “luz matutina de cravo e de espuma”. Principalmente, se fixando no significado de seu papel na História, ligado, fortemente, ao mar: “Portugal, navegante,/descobridor de ilhas,/inventor de pimentas”.Um significado que lhe impõe a tarefa de continuar a servir os valores que o conduziram no passado glorioso – “embarcação valente”, “Proa da Europa”, “descobridor de auroras”, “pai do horizonte” –, mas, visando o presente, já, então, feito de um “novo homem” e da presença “do pão sobre a mesa”.

            Um caminho de transformações a percorrer. O Poeta, peremptório, o ordena a Portugal, no vocativo, que inicia o quinto poema, num suceder de verbos: torna, mostra, não escondas, descobre, rompe. O verbo tornar, remetendo ao passado de mar e de navios, da terra, do marinheiro, do pensar livre; mostrar, remetendo ao tesouro humano que lhe pertence e à capacidade de ultrapassar o mar escuro; descobrir, ao novo homem e seu direito ao alimento; romper, às teias de aranha que o encobrem. Nos últimos versos, mais incisivos, os imperativos e outra vez o vocativo Portugal: “Navega, Portugal, a hora/chegou, levanta/tua estatura de proa/e entre as ilhas e os homens torna/a ser caminho./Nesta idade agrega/tua luz, torna a ser lâmpada:/aprenderás de novo a ser estrela.”

            Desafio de rebeldia que foi sendo construído em sinuosidades: a cidade, sugerida em cores a contrastar com um ambiente sinistro de delação; o país, que emerge “na beira prateada do oceano” e esconde Álvaro Cunhal, Militão, Bento Gonçalves, “o português mais puro,/a honra de teu mar e de tua areia”, a ilha do Sal e Tarrafal, o cárcere político; o silêncio que não impede a palavra e percorre “não apenas Portugal”, porém a terra inteira; a herança de Camões e de Guerra Junqueiro em cantos que florescem ou são como trovões. E a pergunta, incisiva e escandalizada: “como podes negar-te/ao céu da luz tu, que mostras-te/caminhos aos cegos?” e, próxima das convicções que  norteiam o Poeta, ainda outra pergunta: “como/podes fechar a porta/aos novos racemos/e ao vento com estrelas do Oriente?” Relacionada com o título do livro e o seu significado, reafirma a crença de Pablo Neruda nas dádivas, “novos racemos”, “vento com estrelas” que podem representar a orientação socialista, estabelecida em muitos dos países que visitou na Europa do Leste e na República Popular da China.

            Igualmente sinuoso, vai-se compondo o poema num tom que oscila entre o grandiloquente e a simplicidade coloquial; em palavras que ora se combinam para o metafórico, ora para o prosaico; no entrelaçar de passado e presente a buscar esse futuro de vida harmoniosa e plena e justa que o Poeta almeja para todos e no que há de mais simples: “A súbita/aparição/do pão/sobre a mesa”.



Curitiba, junho de 2004



domingo, 7 de junho de 2015

Pablo Neruda e o Capitão *


            No dia 18 de julho de 1943, estava sendo enterrada na cidade do México, Leocádia Felizardo Prestes para descansar de uma vida de amargurada e trabalhosa velhice. O filho preso, Olga, sua mulher, judia alemã, entregue, pelo governo brasileiro aos nazistas e levada, do Rio de Janeiro para Hamburgo, num cargueiro que – assim diz Jorge Amado em Vida de Luis Carlos Prestes: O Cavaleiro da Esperança –, “reproduzia as viagens dantescas dos navios negreiros”.  Logo ao chegar na Alemanha, presa em Barnimstrasse, deu à luz a uma menina que será criada sem alimento suficiente, sem condições de higiene, até pouco mais de um ano. Numa luta ferrenha, ajudada pelos pedidos, protestos, clamores, chegados de todas partes, a avó irá resgatá-la da prisão, mas a luta em prol da liberdade do filho não a deixa, ainda, calar-se. É impedida de voltar ao Brasil. No México, onde foi recebida, vive na incerteza e na angústia de saber que, no Brasil, estão martirizando o seu filho. Quando morre, erguem-se vozes, pedindo ao governo brasileiro alguns dias de liberdade para Luis Carlos Prestes – o general Lázaro Cárdenas, ex-presidente do México, garante com a própria pessoa, a sua volta para a prisão – assistir ao funeral.
Pablo Neruda que, no México, há três anos, representava, como cônsul, o seu país, expressa ao embaixador do Brasil, esse desejo que é de tantos e recebe como resposta – subterfúgio sempre tão usado para denegrir o inimigo político – que Luis Carlos Prestes estava detido por delitos comuns. O poeta polemiza, publicamente, com ele. Era o tempo da França invadida pelos alemães, era o tempo de Estalingrado e na sua intensa atividade criativa e política, já se mostrava evidente que, em Pablo Neruda, o poeta e o combatente eram inseparáveis. Getúlio Vargas se recusa em atender o pedido que lhe fora feito e Pablo Neruda, contrariando conselhos de amigos para que evitasse, como representante de seu governo, de se expor às críticas, comparece ao enterro de Leocádia Felizardo Prestes, levando flores e um poema.
Um longo poema que, no dia seguinte, é publicado na imprensa mexicana e fará parte, como “España em el corazón”, “Canto a Stalingrado”, “Nuevo canto de amor a Stalingrado” “Canto a los ríos de Alemania”, entre outros, de Tercera residencia (Buenos Aires, Losada, 1947), livro que reúne poemas pertencentes ao ciclo da Guerra da Espanha e da Segunda Guerra Mundial e, também, os desafiantes versos em defesa de Tina Modotti, e aqueles que enaltecem a Simon Bolívar e a Luiz Companys. A mãe morta, o filho preso, impedido, pela vontade expressa de um ditador, de estar presente no enterro, a inutilidade dessa prisão para a luta que se trava em prol de mudanças, que nada irá impedir de ocorrer, são inequívocos motivos para o poeta e seus claros, constantes e incansáveis compromissos políticos. E nos versos que, então, escreve, mais uma vez, procurando a justiça, a inspirada qualidade e a profunda dimensão lírica ultrapassam os limites de um simples registro de fatos deploráveis.
            Em Confieso que he vivido, Pablo Neruda narra o episódio que, assim como a tantos, o indignou faz menção a esse poema “em honra de dona Leocádia, em lembrança de seu filho ausente e em execração ao tirano” e se refere à sobriedade dos primeiros versos e do tom violento que a eles se acresce, para designar o “déspota brasileiro”. No título, “Dura elegia”, significados possíveis do adjetivo – áspero, implacável, inexorável – e o gênero poético, “canto plangente”, sob o qual se abriga o poema.
            Nove estrofes de um número desigual de versos, o compõem. Inicia-se com um vocativo, “Senhora” que, não apenas deve ter suscitado emoção entre os presentes da cerimônia fúnebre, ao ser lido, como guarda, ainda, grande potencial lírico que o cruel, injusto e arbitrário desencontro entre mãe e filho torna perene. E, imediatamente, lhe confere o poeta o invejável feito de ter tornado, pelo seu filho, a América bem maior. Dando voz a todos aqueles que desejam tê-la, assume, então, a voz coletiva que lamenta a ausência do filho, testemunha que muitos foram os que vieram para suprir o adeus negado e invoca os libertários da América, estejam eles vivos ou mortos, para ocupar esse lugar vazio. O uso de um nós, que elude o individualismo para compartilhar dessa herança de luta e infortúnio que foi, por ela, “mãe de pranto, de vingança, de flores”, “mãe de luto, de bronze, de vitórias”, deixada; para seguir-lhe o exemplo de “mãe de fogo e de cravos”, de “látegos” e de “espada”; para jurar que não haverá pausa – nem sono, nem sonho – até que seu filho volte. Para reafirmar, no possessivo repetido, serem todos donos do Continente e reiterar que o combate, que se trava, é insubmisso. E para louvar, engrandecido pelo caminho que percorre e pelo ideal que busca, a Luiz Carlos Prestes. Um caminho que obstáculos não cerceiam: “Não há cárcere para Prestes que esconda seu diamante”. Que vontades – a do “pequeno tirano”, “com suas pequenas asas de morcego frio”, com seu “turvo silêncio de rato” ou de “aranha implacável” – não vencem. E um ideal que o situa como “grande irmão”, ao lado dos “pais da América: “heróis coroados de fúria, de neve, sangue oceano, tempestade e pombas” e merecedor das enaltecedoras, encomiásticas qualidades que emergem em metáforas – é um “rio puro de águas colossais”, é uma “árvore de infinitas raízes” – e em símiles para dizer de seu coração a sobressair, “através das grades de ferro da prisão”, “como nas grandes minas do Brasil a esmeralda”, “como nos grandes rios do Brasil a correnteza”, “como brasa de centelha e fulgores”.
Se o poema é incisivo e, sem peias, chama de tirano o governante brasileiro e o compara a seres funestos e se, exasperado, lamenta, a mãe privada de seu filho, na vida e na morte – “Para tua sede negaram a água que criaste” –, esse arbítrio e essa dor se constituem incontestes razões para desalentos. Mas, revelando o amor à vida que nutriu sempre o poeta, como a confiança na felicidade possível, seus versos se iluminam na figura de Luis Carlos Prestes: um condutor de homens, “cheio de luz e de grandeza”, “claro capitão” que, embora ausente e “acorrentado”, conduz o combate. O mesmo combate do poeta e de todos aqueles que se abrigam nesse nós, expressão coletiva , sujeito dos verbos “mudaremos”, “romperemos”(o que machuca e faz sofrer) e dos verbos que prometem um mundo melhor (“inundaremos de luz a tenebrosa cárcere que há na terra”)  e, categoricamente,  a vitória. Ações visando um futuro que o tempo do verbo preconiza e que o advérbio, pleonástico “amanhã” torna certo e próximo. Como certa e próxima a presença do Capitão.
Em 1945, diante dele, que, depois de dez anos, saíra da prisão e das cento e trinta mil pessoas – dizem – que estavam no Estádio Municipal do Pacaembu, Pablo Neruda pede silêncio para as palavras do “Capitão do Povo”. E, Luiz Carlos Prestes, então, falou, recordará o poeta, em Confieso que he vivido, “com a serenidade de um general vitorioso”.

* Publicado no Jornal da Biblioteca, Curitiba, Ano I, n. 3, Jun-Ago, 2004, p20


sábado, 6 de junho de 2015

Memórias de inverno *

            Ele não tem nome. Por vezes, o chamam de sábio e sábio ele se mostra ao dominar a difícil arte de envelhecer. Na véspera de fazer noventa anos, ao terminar o borrão da nota que escrevia, cada semana, para o jornal, cujo assunto, como vinha prevendo há meses, não desejava que fosse o sólito lamento pelos anos idos, senão o contrário: uma glorificação da velhice, percebe o sol entre as amendoeiras e o som de um barco, entrando no porto. Pensou Ai estão a chegar meus noventa anos e decide, nesse momento, honrar a data. Com esta intenção se inicia Memoria de mis putas tristes, último livro de ficção de Gabriel García Márquez que a Sudamericana, de Buenos Aires, publicou em outubro de 2004. Contrariando o título, a memória é escrita para se contar, a partir desse dia que foi o começo de uma nova vida numa idade em que a maioria dos mortais estão mortos. Porque, à pretensão de comemorar, galhardamente, seu aniversário, se seguiram muitos sentimentos que serpenteiam na sua narrativa. Embora ela se faça na linearidade do presente, episódios de sua infância, juventude e idade madura, assim como aqueles de um passado próximo, se lhe intercalam, conferindo-lhe um movimento sinuoso que, no entanto, não a priva de seu ritmo vivaz. Por ser feita em primeira pessoa – um narrador que possui um conhecimento limitado do que sucede a seu redor – nela sobejam as zonas de sombra, isto é o que deixa, então, de ser referido e se oferecem as reflexões daquele que narra.

Sobre si mesmo, o narrador de Memoria de mis putas tristes dará parcas e esquivas informações que uma ou outra frase, dita por algum seu interlocutor, irá completar. Acredita não ter méritos nem brilhos e que nada teria a legar aos que virão depois dele não fosse a memória de seu grande amor. Da menina, por quem se apaixona, ele dá a conhecer em breves traços que mal lhe desenham um perfil: o nariz altivo, os lábios finos e intensos, os pômulos altos, o cabelo curto e crespo, a pele queimada por sóis de mar bravo; ou, naqueles que apontam para as mudanças harmoniosas conferidas ao corpo adolescente pelo passar do tempo. Mais, ele não diz, porque, sobre ela, tudo ignora, salvo a emoção que sente diante de sua presença adormecida. Desconhece o seu nome e se recusa a ouvi-lo; quando procura por ela, querendo conhecer seu paradeiro, ou como está, algo se interpõe e ele fica sem saber.

 Seu relato, pontilhado de alguma irônica sutileza, de alguma efêmera e ligeira troça, de alguma dúvida que ficou sem resposta, é, também, a expressão do que o seu viver tão longo lhe ensinou: ser um triunfo da vida que a memória se perca para o que não é essencial, mas não para o que tem importância; que a velhice, a gente não sente por dentro, mas de fora tudo o mundo vê; que a idade não é a que a gente tem, mas a que a gente sente. E assim, perfeitamente lúcido e dono de si mesmo, convicto e enamorado, se permite viver a aventura amorosa que irá lhe trazer de volta a primavera.

Imaginar tal história de amor, construí-la sem entraves, é dado somente a quem se revela mestre de seu ofício. O escritor colombiano já demonstrara sê-lo no seu primeiro livro, La hojarasca  (1955) e nos que se lhe seguiram: El coronel no tiene quien le escriba, (1961), La mala hora (1962). E, Cien años de soledad (1967), o fabuloso êxito editorial que, não apenas, lançaria uma imensa luz sobre seu autor, como seria um marco definitivo para consolidar a descoberta da esplendorosa riqueza da Literatura Latino-americana.

            Em 1982, Gabriel García Márquez receberia o Nobel de Literatura. Na sua produção posterior, El amor em los tiempos del colera (1985), Del amor y otros demonios (1994) e Memoria de mis putas tristes serão três esplêndidos e surpreendentes clássicos da expressão do amor. Magnífica expressão lírica de um  romancista no seu itinerário de perfeições.

    * Publicado no Jornal da Biblioteca, Curitiba, Ano 2, n.6, 2005