Chegaram à ilha no inverno. Já era noite e a costa se mostrava “esbranquiçada e altíssima,Confieso que he vivido (Barcelona, Seix Barral, 1974). Doze anos depois, Matilde Urrutia acrescenta às lembranças de Pablo Neruda desses dias em Capri, a sua própria emoção. Em Mi vida junto a Pablo Neruda (Barcelona, Seix Barral, 1986), relata que estava de cama e febril. Havia perdido o filho que esperava e que ambos tanto desejavam. Em meio a sua preocupação, Pablo Neruda, de repente, se põe a escrever. Seus olhos brilhavam, diz Matilde Urrutia, de “esperança e triunfo” e ao terminar, disse “- Neste dia em que nos sentimos derrotados vou lhe dar um filho que acaba de nascer, irá se chamar Las uvas y el viento”. Era em fevereiro de 1952. Dia 10, precisa Margarita Aguirre (Las vidas del Poeta, Santiago, Zig-Zag, 1967), acrescentando que no discurso “A la paz por la poesia”, pronunciado por Pablo Neruda no Congreso Continental de la Cultura” que se realizou, em Santiago, em março de 1953, ele menciona que no livro, ainda sem o título, recolhe “o que mais amou da antiga e nova Europa” (por nova Europa considera a Europa socialista) e desejando que seja a sua contribuição para a paz. No ano seguinte, Las uvas y el viento é publicado (Santiago, Nascimiento) e dele fazem parte poemas que escrevera a partir de 1949, uma espécie de diário poético de viagem, diz Emir Rodríguez Monegal (El viajero inmóvil, Buenos Aires, Losada, 1966), quando impedido de voltar ao Chile onde ainda vigorava o mandato de prisão do dia 5 de fevereiro de 1948, promulgado pela Ministério de Justiça de seu país, para castigá-lo, pelos textos em que acusa o presidente do país de traidor. Perambula pela Europa e pela Ásia. É recebido por amigos e por países e, também, perseguido pela polícia política, por instâncias do governo do Chile. Prêmios lhe são outorgados, suas obras são editadas. E ele viaja com os olhos abertos e o coração receptivo à solidariedade e à esperança.desconhecida e calada”. Depois, foram as descobertas, nos longos passeios, o trabalho de cada manhã, compondo esse “tempo inesquecível” de que fala o Poeta em
Las uvas y el viento possui vinte e um cantos, compreendidos entre um “Prólogo” e um “Epílogo”. O “Prólogo” tem por título “Tenéis que oírme” (“Tendes que me escutar”) também o último verso do poema, só que antecedido do advérbio “ahora” (agora), enfatizando esse pedido (ou ordem) que o Poeta justifica: foi pela Europa “entre as uvas” e pela Ásia “sob o vento”, recolhendo “o melhor da vida”, “o melhor de uma terra e outra terra” com o seu canto. “El canto compartido” (“O canto compartilhado”) é o epílogo. Pablo Neruda está de volta ao Chile nesse 12 de agosto de 1952 e o poema foi escrito entre a cordilheira e o mar para dizer que voltou, cantando, sem um resquício de ódio no peito – dir-se-ia que o desterro e as perseguições de que foi vítima o justificariam – e a espalhar as uvas e o vento. E que, renascido no sangue de seu povo, para todos é o seu canto. Como é fruto das vivências que o enriqueceram desde que saiu, fugido de seu país, até a tão almejada volta depois de mais de três anos. No primeiro canto, “Las uvas de Europa” e no segundo, “El viento en el Ásia”, oferece, na visão do Velho Mundo e do Novo Mundo Asiático, o sentido do título. A seguir, se sucedem os cantos que dedicou a Polônia, Espanha, Checoslováquia, Rússia, Itália, Mongólia, Grécia, Estados Unidos, Alemanha, Coréia, Inglaterra, Vietnã, Hungria, França, Romênia.
O décimo quinto canto, “La lámpara marina” (“A lâmpada marinha”) é dedicado a Portugal e se compõe de cinco poemas: “El puerto color de cielo” (“O porto cor de céu”), “La cítara olvidada” (“A cítara esquecida”), “Los presidios” (“Os presídios”), “El mar y los jazmines” (“O mar e os jasmins”) e “La lámpara marina”. Neles, se entrelaçam as impressões que Lisboa lhe causou anos antes e a situação política do país na época em que escreve os versos. Nas memórias que publica na revista O Cruzeiro Internacional (Rio de Janeiro, janeiro-junho,1962), sob o título “Las vidas del Poeta”, lembra no capítulo terceiro, “Los caminos del Mundo”, a sua primeira viagem à Europa de onde seguiria para assumir as funções consulares em Rangum. Partiu, “um dia de junho de 1927” de Buenos Aires, no “Baden”, um barco alemão que, entre uma escala e outra, aportaria em Lisboa: “Aquela Lisboa alegre daqueles anos com pescadoras nas ruas e sem Salazar no trono”, como a definirá. Uma cidade que o encheu de assombro com suas casas coloridas, seus velhos palácios. Nos poemas, escritos mais tarde, estarão presentes as cores do céu, das casas, do oceano, das janelas, das ruas, dos montes; e os aromas e o rumor dos cantos. Portugal se desenhando como “cesta de frutas e flores”, reminiscência das “grandes bandejas de frutas” a coroar a mesa no pequeno hotel em que esteve no longínquo ano em que desembarcou na Europa.
Se nas suas memórias, como lembrará mais tarde, Salazar ainda não pontificava, nos poemas não mencionará o seu nome. Indica-lhe a presença em comparações e metáforas que dizem de seu poder absoluto, como o fizera em 1945, no poema “Dura elegia”, em que homenageia Luís Carlos Prestes, preso na ditadura de Getúlio Vargas: “tirano”, “aranha implacável”, detentor de um “silêncio de rato” e de ”pequenas asas de morcego frio”. Claramente, Pablo Neruda testemunha sobre os atos que preservam o totalitarismo em Portugal: “Lápide” significa a opressão, ampliada no símile “como tumba”; ou “como túnica de clerical morcego”, numa aproximação inusitada quanto à relação substantivo/adjetivo (“clerical morcego”) e, óbvia, ao sugerir a figura do déspota português, reconhecidamente religioso. O que é reafirmado no poema seguinte, quando, outra vez, surge o adjetivo “clerical”, determinando “pó”, um pó “acumulado em Coimbra”, em cuja universidade Salazar havia feito seus estudos e onde fora professor. Porém, mais do que atacá-lo e a seus asseclas – “carcereiros de luta, retóricos, corretos”, “polícia”, “cúpulas de sombras” – indicados, sobretudo, por verbos (escutam, rondam, arreiam presos para as ilhas, condenam ao silêncio, procuram portugueses, cavoucam o chão, destinam os homens à sombra), Pablo Neruda, criando um mundo em que as cores e a luz se transformam em luto e em sombras, desenha Portugal. Com imagens de flor e de mar: “esplendor de roseiras e racemos”, “luz matutina de cravo e de espuma”. Principalmente, se fixando no significado de seu papel na História, ligado, fortemente, ao mar: “Portugal, navegante,/descobridor de ilhas,/inventor de pimentas”.Um significado que lhe impõe a tarefa de continuar a servir os valores que o conduziram no passado glorioso – “embarcação valente”, “Proa da Europa”, “descobridor de auroras”, “pai do horizonte” –, mas, visando o presente, já, então, feito de um “novo homem” e da presença “do pão sobre a mesa”.
Um caminho de transformações a percorrer. O Poeta, peremptório, o ordena a Portugal, no vocativo, que inicia o quinto poema, num suceder de verbos: torna, mostra, não escondas, descobre, rompe. O verbo tornar, remetendo ao passado de mar e de navios, da terra, do marinheiro, do pensar livre; mostrar, remetendo ao tesouro humano que lhe pertence e à capacidade de ultrapassar o mar escuro; descobrir, ao novo homem e seu direito ao alimento; romper, às teias de aranha que o encobrem. Nos últimos versos, mais incisivos, os imperativos e outra vez o vocativo Portugal: “Navega, Portugal, a hora/chegou, levanta/tua estatura de proa/e entre as ilhas e os homens torna/a ser caminho./Nesta idade agrega/tua luz, torna a ser lâmpada:/aprenderás de novo a ser estrela.”
Desafio de rebeldia que foi sendo construído em sinuosidades: a cidade, sugerida em cores a contrastar com um ambiente sinistro de delação; o país, que emerge “na beira prateada do oceano” e esconde Álvaro Cunhal, Militão, Bento Gonçalves, “o português mais puro,/a honra de teu mar e de tua areia”, a ilha do Sal e Tarrafal, o cárcere político; o silêncio que não impede a palavra e percorre “não apenas Portugal”, porém a terra inteira; a herança de Camões e de Guerra Junqueiro em cantos que florescem ou são como trovões. E a pergunta, incisiva e escandalizada: “como podes negar-te/ao céu da luz tu, que mostras-te/caminhos aos cegos?” e, próxima das convicções que norteiam o Poeta, ainda outra pergunta: “como/podes fechar a porta/aos novos racemos/e ao vento com estrelas do Oriente?” Relacionada com o título do livro e o seu significado, reafirma a crença de Pablo Neruda nas dádivas, “novos racemos”, “vento com estrelas” que podem representar a orientação socialista, estabelecida em muitos dos países que visitou na Europa do Leste e na República Popular da China.
Igualmente sinuoso, vai-se compondo o poema num tom que oscila entre o grandiloquente e a simplicidade coloquial; em palavras que ora se combinam para o metafórico, ora para o prosaico; no entrelaçar de passado e presente a buscar esse futuro de vida harmoniosa e plena e justa que o Poeta almeja para todos e no que há de mais simples: “A súbita/aparição/do pão/sobre a mesa”.
Curitiba, junho de 2004

